A vida é um circo
por Fátima Quintas*
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Reprodução
O palco é imenso, pleno de simulações;
corresponde ao espetáculo do mundo. Somos todos atores de uma realidade nem
sempre atraente. Mas a persona grega ajuda a compor o teatro, embora os
personagens ganhem uma identidade tão forte que vale a pena repetir Fernando
Pessoa: “Quando quis tirar a máscara / Estava pegada à cara / Quando a tirei e
me vi ao espelho / Já tinha envelhecido”. Os dias passam, amadurecemos, e
aprimoramos os disfarces. Alegres ou tristes, dificilmente nos revelamos a nu.
Semana passada fui ao encontro de uma
amiga que discretamente chorava numa mesa de bar. Avistei-a, respeitei o
momento, sentei-me ao seu lado em silêncio. Havíamos combinado um bate-papo,
mas entendi a necessidade do mudo desabafo. Ela chorou, chorou, palavra alguma
foi pronunciada. Após uma hora de completa acídia, despediu-se: “Precisava
chorar com alguém. Desculpe”.
Continuei sentada, mergulhada na dor
que me transmitiu. Já era noite e as pessoas começavam a adentrar o recinto,
falantes e alegres. Com parcimônia perquiri os rostos visitantes daquele lugar
transitório. Vozes se cruzavam em biografias diferentes: um casal se beijava, a
garota aguardava por alguém, jovens contavam piadas, a criança, quase de colo,
dormia, a mãe oferecia a chupeta, ela aceitava com gozo, uma senhora conversava
com a neta, duas gerações distintas interligavam-se, havia gáudio na voz de uma
e de outra... a vida ali se fazia sob a ode do riso.
Entre trapezistas, palhaços,
malabaristas, o espetáculo do mundo não cerra suas cortinas; não existe
intervalo, tampouco ensaio. Poucos vão aos camarins e, quando vão, retocam
apenas a maquiagem: ruge em maior quantidade, batom, sobrancelhas bem
alinhadas, base para reluzir à pele – a máscara a aderir ao rosto anônimo. De que
somos feitos, se a sociedade regula condutas artificiais? Perdemos a
espontaneidade em nome de uma razão arbitrária? O choro da minha amiga traduzia
um sentimento que devia ser escondido ou pelo menos recolhido a espaços menos
visíveis. O choro carrega o pudor de revelar-se, ocultando-se. Rimos mas não
podemos chorar em público. Salvo raras ocasiões, explícitas no código vigente.
Demorei a refazer-me. Aproveitei para
refletir sobre o espetáculo do dia e da noite. Lembranças acorreram-me, uma
narrativa que só eu sabia, a poucos importava, na verdade, a ninguém importava,
afinal estamos ocupados em demasia para prestar atenção a sensações íntimas.
Não há tempo para estancar o frenesi de uma competitividade que se faz
galopante numa arena de exibições: vitórias, vaidades, orgulhos, soberbas...
Ah, meu Deus, a quem interessará o choro da minha amiga? O circo da vida
reclama falsas aparências. De que é feita a minha máscara? Estarei pronta para
enfrentar olhares diversos de reprovação, de aplausos, de omissão?
Levantei-me. Saí. Na calçada, uma
mendiga estendia a mão. Perguntei-lhe o nome; receosa, não me disse. De pronto,
o vigilante afastou-a. Fui ao seu encontro, dei-lhe uma esmola, agradeceu-me,
assustada. Olhos grandes, pele maltratada, lábios carnudos, uma mulher bonita.
Observei-a em detalhes. A roupa maltrapilha cobria um corpo magro, esguio, de
manequim. Cabelos presos em um coque desgrenhado não a beneficiavam, mas era
bonita a mulher mendiga. Como gostaria de conhecer sua origem, sua vida, sua
rotina! Percebi que se sentia acuada, melhor acatar seu retraimento. Usava a
máscara do medo.
Mãos vazias, rosto triste, abafada
pela inutilidade, entrei no carro. Rasguei a minha máscara; duraria pouco,
contudo, o ato de desprendimento. Bem sei que o circo continua e faço parte do
jogo que me oprime. Que mundo é esse que rouba a espontaneidade de ser,
manipulando sentimentos e nobres revelações? Minha amiga, estou por aqui, basta
telefonar.
*Fátima Quintas é antropóloga, escritora, ensaísta, cronista e atual presidente
da Academia Pernambucana de Letras.
A vida é um circo
Reviewed by Natanael Lima Jr
on
11:02
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Belo texto, me fez lembrar Nelson Rodrigues em A vida Como Ela é. Parabéns!!!
ResponderExcluirObrigado pela visita, realmente um texto belíssimo.
ResponderExcluirFátima Quintas, ao ler seus textos, transporto-me a outros mundos, visitando-os, nos paradoxos de mim mesma. Chego ali, onde a noite e o dia se encontram, para ensaiarem a beleza do amanhecer. Amei o texto!
ResponderExcluirLígia Beltrão
Adorei esse texto. Diz exatamente o que penso. Fiz um ensaio literário sobre a beleza a um tempo atrás. E tem um ponto de vista parecido sobre usarmos máscaras.
ResponderExcluirOlá Valéria, que bom que sua visita. Se desejar publicar seu ensaio aqui, estamos à sua disposição.
ExcluirBelíssimo texto e muito sincero! Parabéns!!!
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