TransWinter

Breve Conto para Domingos


Salete Rêgo Barros*










Imagem: Reprodução


Chegando aos noventa, Isadora ainda mantinha os arroubos de uma juventude vivida entre as cercanias de uma cidadezinha do interior pernambucano e as constantes idas à capital.

Doze irmãos, pai abastado, mãe exímia dona de casa e diversos remanescentes das senzalas, eram as pessoas com quem ela mais convivia no dia a dia, exceto na época do plantio e da colheita, quando a movimentação de trabalhadores se intensificava bastante, e durante os festejos religiosos.

A jovem sonhadora, ao cair da tarde, costumeiramente refugiava-se no alto de um cajueiro imaginando o dia em que viria, de muito longe, um príncipe montado num alazão, para pedir a sua mão em casamento, a exemplo dos finais felizes das histórias contadas por sua mãe, na hora de dormir.

Certo dia, divisando do seu observatório, o movimento da folhagem e dos animais que procuravam abrigo nos galhos das árvores, Isadora vê, ao longe, um minúsculo vulto que, aos poucos, vai tomando a forma de um homem a cavalo - Deus escutara as suas preces. No entanto, a miopia acentuada a impedia de reconhecer o padre substituto do falecido padre Estanislau, que vinha se hospedar na fazenda para as celebrações da Semana Santa, e a missa do domingo de Páscoa na capela da casa-grande.

A decepção logo se transformaria em esperança, na medida em que a moça imaginava como seria o jovem sem aquela batina, que o transformava num representante de Deus e, como tal, proibido de povoar a sua imaginação. No entanto, sentia-se livre, porque ninguém poderia descobrir o que se passava em sua cabeça.
Uma mesa farta aguardava o ilustre hóspede naquele final de tarde, que prometia ser cheio de novidades. A fila para o beija-mão ia se formando. Isadora escolhe o último lugar aparentando timidez. Ao invés do tradicional beijo, a jovem suga, sofregamente, com a língua e os lábios molhados, a mão do padre que, surpreso, sente um arrepio percorrer-lhe o corpo inteiro.

Na cabeceira da mesa o Coronel aguarda, de pé, que o padre tome assento do seu lado direito; dona Sinhá e a filha mais velha, do outro lado. Na cozinha, a criançada e a criadagem se banqueteiam com bolos e doces entre risos e sussurros.

Durante a refeição, o Coronel e o padre, que evitava, a contragosto, olhar na direção oposta, conversam sobre política e religião, e dona Sinhá dá ordens para que os quitutes sejam trazidos à mesa na sequência previamente combinada com as amas. De repente, o dono da casa expõe o problema de visão da filha, na esperança de que o padre Domingos, que tem livre trânsito entre médicos e farmacêuticos da capital, possa indicar algum especialista da área. O sangue sobe, instantaneamente, ao rosto de Isadora, quando o padre refere-se a ela dizendo que terá todo o interesse em resolver o seu problema, levando-a para uma consulta, a ser marcada em breve.

Na escuridão, recostada em sua velha cadeira de balanço, Isadora recorda os momentos que marcaram definitivamente a sua vida, quando uma carta pôs fim à angustiante espera de dois meses: dentro de uma semana, o padre Domingos viria buscá-la para a prometida consulta ao oculista da capital. Confiante e extremamente sensibilizado pelo interesse, o Coronel entrega a sua filha mais velha ao sacerdote, que parte a cavalo com Isadora na garupa, tal qual ela havia sonhado no alto de um cajueiro.


*Salete Rêgo Barros escritora, editora e produtora cultural





Poemas de Lula Côrtes, Natanael Lima Jr, Frederico Spencer, Douglas Menezes e Ivan Marinho




Sobre o último dia
Lula Côrtes
(09/05/1949 – 26/03/2011


Foto: Adriano Sobral













As águas paradas
não movem nada
marés viciadas são negras

Tão cheias de morte
de ossos, de trastes
de porcos refrescando as tetas

Parece que a calma que emana
o espelho intocado
onde o céu se espelha
é tão inflamável, tão inevitável
ver tudo explodir com
uma simples centelha

“O apartamento mergulhou no silêncio para sempre”

Candeias, Jan/2000





Inumeráveis as noites
Natanael Lima Jr


Imagem: Reprodução












da janela do quarto
vejo a noite transfigurar-se bela
sutilmente bela
única, tímida, frágil
refletindo-se negra
alma, canção, poesia

inumeráveis as noites!

o universo se move
e as estrelas parecem imóveis
renegadas, esquecidas, abandonadas
nas madrugadas do teu corpo

inumeráveis as noites!

quis possuí-las
e as vislumbrei despidas
reveladas de corpo e alma
translúcidas vidas

inumeráveis as noites!

(In À espera do último girassol e outros poemas, 2011, p. 49)



A felicidade
Frederico Spencer


Imagem: Reprodução












Mesmo que o dia te moa
e na noite não encontres
no teu lençol, as estrelas
no céu te esperam
para se completar
e formar essa constelação
quando chegas, inundando
de luz o nosso dia
tomadores de luz e ópio
retornaremos sempre à noite
em busca das estrelas
que trazes entre os dentes.
Só, não esqueça que na noite
soltamos nossos bichos
em busca da felicidade.

*Do livro Código de Barras, ainda inédito




Um momento
Douglas Menezes*


 
Imagem: Reprodução














Eu não queria ver só de relance
uma lua cheia digitada
um sol net que a gente fabrica.
Eu não queria dedos nervosos
mas mentes tranquilas
fabricando sons e luzes.
Eu não queria me ver assim
frente a um brilho que me ofusca os olhos
e buscando crianças perdidas,
nunca achadas.
Mundo que se vê e ouve
mas não se pega, não se cheira, não se sente.
Mundo de amigos de superfície
de imagens maquiadas
e piadas sem graça.
O que quero, enfim
é a graça do bêbado na feira
é a molhada terra da chuva.
O que quero, enfim
é o sol quente da praia que não vejo mais
ou uma lua natural de namorados
e astronautas.
Quero sim, me livrar da mentirosa luz
que me afasta da vida
e cega esses olhos cansados de olhar
o que não querem.

*Douglas Menezes é escritor e membro da Academia Cabense de Letras





Desmunde
Ivan Marinho*


Imagem: Reprodução














Como é tolo acreditar nas palavras!
Como é tolo acreditar!
A vida é beijo, é esquiva
depois do almoço, o jantar.
Quem reza o terço da vida
não conta a mesma conta
e se o faz cativa
do mundo, sequência pronta.
Trinca de ás, sonho besta
quando o garçom traz a nota
da conta.

*Ivan Marinho é poeta e membro da Academia Cabense de Letras







“Eu sei, mas não devia” de Marina Colasanti*

Imagem: Reprodução

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora.
 A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À luta. À lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
 Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito.

 A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.


(In Eu sei, mas não devia, Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.)

*Marina Colasanti é escritora e jornalista. Em 2010, recebeu o Prêmio Jabuti pelo livro “Passageira em Trânsito”.



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