UMA VIAGEM COM CELINA DE HOLANDA
por
Ivan Marinho*
Celina de Holanda
Foto: Divulgação
A poeta Celina de Holanda
Cavalcanti de Albuquerque nasceu no engenho Pantorra - fundado antes da invasão
holandesa -, no Cabo de Santo Agostinho, a 19 de junho de 1915.
Segundo a Doutora em
Estudos Literários na Universidade de Paris VII, Luzilá Gonçalves, “Enquanto
ela era viva, a poesia dela não recebeu a atenção que devia. Apesar de termos
outras grandes poetas mulheres, ela, junto com Deborah Brennand, é uma das duas
maiores de Pernambuco”. “Celina nos ajuda a ler o mundo e a nós mesmos, seu
olhar sobre as coisas, lúcido e crÃtico é, entretanto, pleno de simpatia e
ternura humana. A poetisa alcançou e nos transmite aquela ‘clara simplicidade
de existir’ que buscava Alberto Caeiro”.
Aldálio Alves, jornalista,
advogado, bacharel em letras e poeta diz que “nela o sopro elegÃaco se inicia
com a publicação, em 1976, do seu livro A Mão Extrema, onde, pela proximidade
do calendário anÃmico, condicionador do nosso canto, a sensibilidade de Celina
nos dá a dimensão que o seu verso poderá assumir no decorrer da frase
iniciada”.
João Bigotte Chorão,
escritor, publicista, crÃtico literário e ensaÃsta português declara que “em As
Viagens, de Celina de Holanda, fui à s fontes de sua poesia, uma poesia lÃquida
e mansa, apesar de sua violência subterrânea. Por todo o livro se houve uma
música tão Ãntima que parece composta de palavras que mal pousam no papel”.
O jornalista e poeta,
eleito membro da Academia Pernambucana de Letras em 2014, José Mário Rodrigues,
defende que “os poemas de Celina de Holanda são precisos. DifÃcil escolher o
melhor. Mais difÃcil ainda retirar uma palavra. Cada palavra sua é uma
estrutura firme, uma coluna mestra. (‘um Deus reina comigo’).
O advogado e bacharel em
letras, membro da Academia Cearense de Letras e eleito, em 1985, prÃncipe dos
poetas cearenses, Artur Eduardo Benevides, declara: “É uma poesia que dói, que
comunica muita coisa bela e encerra confidências de longo espectro filosófico:
‘Necessariamente sou a lágrima de outro’. O livro todo é assim, rico em
conteúdo, de substância, de fluidez lÃrica, de transparência e leveza.
Já Armindo Trevisan, doutor
em filosofia pela Universidade de Fribourg na SuÃça, diz que “seu estilo é
simples – a maior qualidade de estilo. As palavras possuem uma limpidez que
encanta. Não há superficialidades em Celina de Holanda. A emoção vem de dentro,
das profundezas, como esses fios de água que atravessam pedras e folhas”.
Por fim, Carlos Drummond de
Andrade arremata: “Não sei de muitas vozes poéticas femininas que se equiparem
à sua, pela limpidez do sentimento reflexivo e pela discrição da palavra”.
Fiz questão de introduzir
este artigo com declarações de notórios conhecedores do gênero poético, a fim
de que possamos nos aproximar da dimensão alcançada pela poetisa cabense. No
entanto, o que mais impressionou aos que conviveram com Celina, foi seu desejo
de encontro, com as pessoas e com a palavra! Neste sentido, e por ter tido o
privilégio de provar um pouco da doce relação com aquela que se alegrava em ser
chamada de Cecé, assumo a responsabilidade de tentar expor seu perfil, no
aspecto de maior relevância em seu discurso poético, o afetivo. Para isto,
conto, declaradamente, com a memória afortunada de Andréa Mota, sobrinha-neta
da poeta, Alberto da Cunha Melo, admirador e admiração de Cecé, e Manoel
Constantino, discÃpulo apaixonado.
Andréa, como se sondasse o
germe poético que revelaria o gênio de Celina, nos encanta com a bela história
de seu ancestral Filipe Cavalcanti, egresso de Portugal por causa de contendas
com os Borgeas. Entrara em Pernambuco com as Bandeiras, em busca de ouro, tendo
seu grupo capturado e devorado por aborÃgenes canibais. Filipe, grisalho e de
olhos azuis, virou objeto de admiração da filha do cacique Arcoverde, que o
pediu como animal de estimação (Andréa nos relata isto com um largo sorriso).
Apaixonaram-se, formaram famÃlia e deram origem a arvore brasileira que
frutificaria Celina de Holanda Cavalcanti.
No Engenho Ipiranga, ainda
criança, perdeu sua mãe, e foi levada pelos avós, com sua irmã e seus dois
irmãos, para o Engenho Pantorra. Aos 10 anos de idade contraiu Poliomielite, da
qual conseguiu se curar, mas, por alguns anos, dependeu de uma muleta para se
deslocar. Ressaltando sua vontade de viver, sua resiliência e sua vontade de
superação, sua sobrinha-neta conta que, após enfrentar viagens de Pantorra Ã
praia de Gaibu, em comboios de carros-de-bois e de, limitada pelos movimentos,
ser tolhida nalguns jogos, usava a muleta como alavanca para se destacar nas
corridas feitas na areia.
No Engenho Pantorra
aprenderia o gosto pela leitura, motivada pela prática familiar e incentivada
por seu avô, Manoel Clementino Cavalcanti de Albuquerque, um humanista que
cultivava uma farta biblioteca com muitos clássicos e que se dava à vida
social, ao ponto de vir a governar a cidade do Cabo. Aprenderia também os
valores afetivos da gente simples na luta pela sobrevivência, o que viria a
influenciar sua adesão à s ideias do ConcÃlio de Puebla e a opção da Igreja
pelos pobres. Na direção do Vaticano II, foi confidente de Dom Hélder Câmara na
arquidiocese de Olinda e Recife e do Pe. Romano Zufferey na ACO (Ação Católica
Operária), pela qual, graças à sua sensÃvel habilidade, cortou e pintou cabelos
de muitos perseguidos polÃticos para disfarçá-los nas fugas. No entanto, mesmo
optando abertamente pela liberdade e justiça, não se denominava esquerda ou
direita, e transitava, socialmente, em ambos os lados, de forma que era
aconselhada por Maria do Carmo Barreto Campelo de ter cuidado para não ser
presa por suas amizades e poemas. Conviveu, também, talvez pelo viés religioso,
com o Pe. Melo no Cabo de Santo Agostinho, com certeza sem saber que este
representava a CIA (Agência Central de Inteligência Norte-americana). No Cabo,
também, transitava em companhia de Lúcio Monteiro e Murilo Lages, dois ilustres
representantes polÃticos da esquerda no municÃpio.
Celina de Holanda realizou
suas primeiras publicações poéticas nas páginas do Jornal do Commercio e Diário
de Pernambuco, mas tornou-se realmente notável quando, junto a Alberto da Cunha
Melo e Jaci Bezerra, criou as Edições Pirata, editora que utilizava a gráfica
do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, atual FUNDAJ, durante as
madrugadas, para imprimir livros de escritores praticamente inéditos,
oportunizados pela abertura polÃtica propiciada pelo fim da ditadura militar.
Reproduzidos no IJNPS, os livros recebiam acabamento na casa de MÃriam
Brindeiro, do qual Alberto era responsável por serrá-los para a colagem ou
costura, tudo de forma absolutamente artesanal. Mas a editora precisava de um
endereço e, para isto foi franqueado o da poetisa cabense, que era no bairro do
Derby.
Graças à divulgação deste
endereço, Rua Betânia 10 / 102, impresso nas capas dos livros, Cecé passou a
receber muitos escritores em sua casa e, com portas e braços abertos, orientá-los
no processo de criação e edição de seus livros. O escritor Luis Manoel
Siqueira, em crônica intitulada CELINA DE HOLANDA: UMA RECEITA DE PERFUME, nos
presenteia com o seguinte texto: “A casa
de Celina não era apenas o centro de convergência natural da Pirata. Ela
representava também uma referência de princÃpios e valores éticos e humanos,
que tinha em pensadores como Padre Romano Zufferey, Leon Bloy, Theillard de
Chardin e Dom Hélder Câmara, os pontos cardeais de um socialismo moldado nos
valores daquele cristianismo primitivo e submerso. Essa presença cristã
diferenciada permeava toda a poesia de Celina e também de outros poetas daquele
tempo. O amálgama surgido com os perfumes da redemocratização e os ideais da
Teologia da Libertação de Puebla, resultavam numa fraternidade real, que
"rodava a mesa" montando as páginas de centenas de livros de
poetas pobres e marginalizados”.
Comumente vestida com
kaftas coloridas e muitos colares confeccionados com sementes ou papel machê,
feitos pelas próprias mãos, Cecé recebia escritores com uma alegria e atenção
que marcaram sua história. Pedia para ouvir pela voz do próprio autor, seus
textos e, com afago e faca, como nos
relata Manoel Constantino, aconselhava os cortes e exaltava as qualidades, sem
conseguir esconder o desejo de motivar e fazer feliz quem batesse à sua porta.
“Recebia os poetas indiscriminadamente e a todos dava atenção, orientando sobre
a arte poética, cortando os excessos e dizendo da busca da palavra exata”, nos
diz Constantino. A casa, com aura de formalidade, ilustrada por uma mobÃlia
clássica, não impunha distância, mas aproximação, aconchegava, deixava a
vontade quem nela era recebido e, apesar da busca profunda transmitida pelos
escritos de Celina de Holanda, tantas vezes associada a uma violência
subterrânea, sua aparência é desarmada, atrativa, leve, assim como o foi a
poeta. Andréa Mota rememora uma conversa que teve com sua tia-avó: “Por que em
Alberto consigo compreender o poema e nos seus, encontro dificuldades?”, ao que
Celina, amante e conhecedora que era da poesia de Alberto, afirmou: ‘Minha
filha, o difÃcil é ser simples!’”.
O POETA VAI À LUTA
Quando
a palavra é muito pouco
Para o
amigo
E
minhas mãos estão vazias,
Sua
urgência dói
Como
nervo exposto ao frio,
A dor,
esticando o fio,
No
espanto de vê-lo erguer-se
Silencioso
e partir
Com
sua lança tão frágil
Vergando
na ventania.
Além do gosto pela eufonia,
constatado na necessidade de ouvir os poemas, Cecé cultivava um olhar
perscrutador para a atmosfera das cores. Conta-se que, nas viagens, ela fazia,
vez por outra, uma observação sobre o estado cromático das paisagens.
PASSEIO
NO PARQUE
(óleo sobre tela de Seurat)
Neste
parque imutável
Até
hoje passeiam
Estes
homens de escuro
E
estas frágeis mulheres.
Até
hoje as flores, os cristais
E as
toalhas
São
sem mácula
Nas
salas de esperar
O
amigo, o amado
Ou a
chuva passar. Nada
De
apocalipse
A
terrÃvel besta e poços
Insondáveis.
Nada
A
relembrar o abismo
Que
somos.
Mas o que movia este
espÃrito inquieto transformado nesta alma serena? Segundo seu grande amigo,
Alberto da Cunha Melo, Celina era de um “cristianismo guerreiro”, primitivo,
onde a palavra se fazia carne, capaz de, ao tempo que se encantava com a
atitude do pai que, com uma faca bem afiada, cortava finas fatias de laranja
para por no litro de cachaça de cabeça que, com o tempo, exalava um odor de
licor perfumado, interpunha-se entre a chibata do feitor e seu querido cão que
descobriram sangrando as ovelhas. Perante a violência do Estado Brasileiro, o
desparecimento e prisões de amigos, a poeta fortalecia suas convicções fixando
nas paredes e cultivando em seus poemas pensamentos como os de Leon Bloy,
confeccionados em madeira e pendurados no quarto, que diziam “A verdade vale a vida! A justiça vale a
vida!”. E tão apaixonada era pela fé que a sustentava, que duvidava de sua
existência sem esta fé, como nos traduz no poema intitulado AOS QUE ME QUEREM
COMO ELES:
Não
sei de outro
Mas
daquele
Que
ordena a beleza
À vida
Rege o
amor
Pelos
ciclos da lua
Faz
crescer os ovários
Dos
ouriços do mar.
Se
apago esta paixão
Talvez
me apague.
Poema
este, que nos faz lembrar Alberto Cunha Melo em seu poema retranca ERGONOMIA:
O
grande trabalho é do amor
sem bronzes, sem assinaturas,
no ar do espaço, na hora do tempo,
pólen de Deus nas criaturas,
sem bronzes, sem assinaturas,
no ar do espaço, na hora do tempo,
pólen de Deus nas criaturas,
a
palavra quase sem eco
a injetar humos no deserto,
a injetar humos no deserto,
mãos
de Franciscos, de Terezas,
que repartem, ocultamente,
suas migalhas sob as mesas,
que repartem, ocultamente,
suas migalhas sob as mesas,
ou
energia sem fronteiras,
que acende todas as estrelas.
que acende todas as estrelas.
A escritora, poeta maior
que tanto nos orgulha, segundo Luis Manoel Siqueira, afirmava convicta que “antes de tudo, um escritor precisa coincidir
com aquilo que ele escreve, para não virar um mero malabarista de
palavras - figueira sem frutos”.
Deparei-me com a poesia de
Celina de Holanda em minhas visitas à Biblioteca Joaquim Nabuco no Cabo de
Santo Agostinho. Seus livros repousavam nas prateleiras e, para minha surpresa,
todos oferecidos, com muito afeto à sua terra mãe. Menos de um ano antes de seu
encantamento, realizei, no Teatro Barreto Júnior, quando diretor do
departamento de cultura no municÃpio, o Encontro de Poetas Recitadores, com
participação de vários poetas independentes e marginais, convivas meus e de
Cecé, como Jorge Lopes, Erickson Luna, Miró, Samuca, Valmir Jordão, Manoel
Constantino, Chico Espinhara, Tuninho de Olinda, Tereza Helena, Vilma Lessa,
Eunápio Mário, França, Miró, Lara, Antunino Júnior, Gerson Santos... em
homenagem a Celina de Holanda, em 1998. O vice-prefeito do Cabo, a presenteou
com uma pintura do artista plástico Flávio Rufino, que ela recebeu com muita
alegria e elogios, afeita que era à pintura. Mas um episódio se destacou
naquele evento: Percebendo a ausência de Alberto da Cunha Melo, quis saber qual
o motivo.
Expliquei que Alberto justificou que se sentia fraco para viajar até
o Cabo e que, na expectativa de que ela dissesse que era mais idosa, disse que
ele se estragara mais por conta do cigarro e da bebida. Ela silenciou e,
durante o evento, bebeu vinho, fumou e me chamou do lado: “Diga a Alberto que eu vim, com 84 anos, bebi e fumei!”. O Encontro
foi encerrado com uma apresentação do músico Maciel Melo. Alberto da Cunha Melo
sorriu emocionado ao ouvir o recado da amiga e compareceu ao segundo Encontro,
que incorporou o nome da poeta já encantada, Celina de Holanda de Poetas
Recitadores. Nesta ocasião o apresentei a Lirinha, que viria, no futuro, a
gravar o Canto dos Emigrantes de nosso poeta maior.
POEMA
(A Alberto da Cunha Melo)
Era
uma galeria de espelhos
Onde
me via e ouvia repercutida.
Em tua
morte, pacÃfica e diária,
O meu
nome escrito.
Assim
era e agora
Receio
que tenhas ido, horizontal e anônimo
(frente
ao medo, mais alto que o meu grito)
Dessa
casa de mortos, dessa casa
Desonrada e sem ódio.
Atualmente, na cidade do
Cabo de Santo Agostinho, o nome da poetisa Celina de Holanda Cavalcanti de
Albuquerque destaca-se como patronesse da Academia Cabense de Letras e como
nome da biblioteca do Espaço Cultural Mestre Dié, no distrito de Ponte dos
Carvalhos, porém o Encontro Celina de Holanda de Poetas Recitadores, que se
realizara em quatro versões, não encontrou mais incentivos para sua realização.
*Ivan
Marinho é economista da cultura, artista plástico, poeta e membro
da Academia Cabense de Letras
UMA VIAGEM COM CELINA DE HOLANDA
Reviewed by Natanael Lima Jr
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07:03
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Boa tarde Ivan Marinho!
ResponderExcluirAmei a sua reportagem sobre Celina de Holanda
Sou estudante de Letras e vou fazer o meu Tcc. Falando sobre Celina e Mário Quintana.
Cleide, muito obrigado. Sou muito displicente com redes sociais, por isto estou respondendo agora. Abraço e disponha.
ExcluirFoi a primeira do circuito que eu visitei. É uma energia tão boa uma paz tão grande quando sentei lá pra tirar fotos. Me deu uma curiosidade profunda de saber quem foi por que ela tava lá ... E aà eu não encontrei muita coisa sobre ela até chegar aqui. E depois dela fui atrás das outras 17 estátuas , tirei fotos, fiz vÃdeo e estudei a história de cada um deles.Feliz de mais
ResponderExcluirque bom que pude contribuir para seu conhecimento. abraço
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