ENTREVISTA COM O POETA MARCO POLO GUIMARÃES



Entrevista concedida a Natanael Lima Jr.
Publicado em 06/09/2020 às 00:02 










Marco Polo Guimarães / Foto: Ashley Mello/JC Imagem




Marco Polo Guimarães é recifense. Trabalhou nos jornais Diario da Noite, Jornal do Commercio, Diario de Pernambuco, Jornal da Tarde e na revista Continente. Publicou os livros Voo Subterrâneo, A Superfície do Silêncio, Brilho, Caligrafias, Corpointeiro, Oficina do Avesso e Sax Áspero, de poesia; e Narrativas, Memorial e Autópsia do Bípede, de prosa. Como cantor e compositor lançou os álbuns Ave Sangria e Vendavais; e participou da coletânea Asas da AméricaFrevo. Tem músicas gravadas por Ney Matogrosso, Lenine, Elba Ramalho, Teca Calazans, Zezé Motta, Geraldo Maia, Maciel Melo, Silvério Pessoa e Ortinho, entre outros.






DOMINGO COM POESIA - Caro poeta e amigo Marco Polo, prazer grande entrevistá-lo e trocarmos algumas ideias. Jornalista, poeta, escritor, cantor e compositor. Quem é Marco Polo Guimarães?

MARCO POLO GUIMARÃES - Um homem inquieto, curioso, imaginativo. Apaixonado pela música, pela literatura, pelas artes plásticas e pelo cinema. Aos cinco anos vinha num navio de Belém para Recife, quando uma moça, convidada a distrair os passageiros, tocou no acordeon uma música lenta e triste. Caí no choro e ninguém entendeu. Nem eu mesmo. Tempos depois compreendi que aquela foi a única maneira de expressar a emoção estética que estava sentindo. A música, vim saber depois, era o Noturno Número 2, de Chopin. Já aos 10 anos estava lendo mais um dos poemas do livro da disciplina de Português do colégio, quando tive uma epifania. O poema era Ismália, de Alphonsus de Guimaraens, e eu fiquei abismado por tanta coisa caber em tão poucas palavras: razão e emoção, corpo e espírito. Não me lembro da primeira obra de arte que me deslumbrou nem do primeiro filme, mas são paixões que também se formaram, em mim, ainda na adolescência. A tudo isso junte uma convicção visceral de que o ser humano foi feito essencialmente para a liberdade e a alegria, e você terá um esboço de quem é Marco Polo Guimarães.

DCP - Você fez parte da Geração 65 de escritores pernambucanos. O que representou e representa para você essa geração?

MPG - Nunca dei muita importância a essa classificação, embora reconheça que ela possa de certa forma facilitar a vida de historiadores. Mas não de críticos. Os pontos em comum entre a gente: éramos jovens, pobres e amigos. O resto é heterogeneidade. Para ficar só em quatro exemplos bem claros: Alberto da Cunha Melo fazia uma poesia de cunho social e existencial; Jaci Bezerra era um lírico com capacidades de virtuose; Ângelo Monteiro escrevia poemas com forte teor filosófico e teológico; e eu inseria elementos da cultura pop nos meus textos (já no meu primeiro livro há um poema chamado Strip Tease, em torno de Marilyn Monroe). Nunca escrevemos um manifesto. Nunca formamos um mesmo pensamento. Não tínhamos um norte estético compartilhado. Mesmo assim nos reuníamos diariamente no bar Savoy e éramos publicados por Cesar Leal no Diário de Pernambuco (embora nisso eu também divergia, já que meu primeiro poema foi publicado no Suplemento Literário do Jornal do Commercio, pelo crítico João Alexandre Barbosa). Mas gostávamos muito uns dos outros. Liamos o que escrevíamos uns para os outros, formávamos uma confraria. Infelizmente, até hoje a chamada Geração 65 nunca recebeu da crítica especializada nacional a atenção que seus membros merecem.

DCP - Você vivenciou vários períodos da cena cultural do estado. Que balanço você faria desse atual momento?

MPG - Para ficar só nos exemplos positivos, temos uma cena musical riquíssima. Grupos como Academia da Berlinda e Orquestra Contemporânea de Olinda; cantoras como Isaar, Karina Bhur, Alessandra Leão, Flaira Ferro; músicos como Siba, DJ Dolores; coletivos como o Reverbo; e talentos mais antigos mas que permanecem ativos no cenário como Geraldo Maia, Banda Eddie, Cordão do Fogo Encantado, Nação Zumbi, Ave Sangria... Tudo isso mantém Pernambuco na linha de frente da música popular brasileira. No que diz respeito ao cinema não ficamos atrás: para citar só dois dos mais importantes cineastas de Pernambuco, com obras tão vigorosas quanto diferentes entre si: Kleber Mendonça Filho e Claudio Assis. Na poesia temos este excelente Domingo com Poesia, um marco de resistência, criatividade e diversidade. E, já que se falou em diversidade, temos que citar a Cepe Editora, que tem em seu catálogo os experimentalistas Camilo José e Delmo Montenegro; a poesia da negritude de Stephane Borges; o ativismo social, político e feminista de Cida Pedrosa; e a forte poesia oral de Miró da Muribeca, entre outros. Sem falar na revelação da obra de Daniel Lima e no resgate do trabalho de Severino Filgueira.

DCP - Foram 17 anos de serviços prestados a Companhia Editora de Pernambuco (CEPE). O que representou essa experiência na sua trajetória profissional?

MPG - A Cepe me proporcionou completar minha trajetória jornalística. Eu já tinha sido colunista, repórter e editor de cultura e cadernos especiais em jornais de Pernambuco e de São Paulo. Na Cepe comecei como editor da revista Continente. Entretanto, apesar do nome Companhia Editora de Pernambuco – Cepe, a empresa não tinha um projeto profissional de edição de livros nem um departamento exclusivo para isso. Em 2008 fui convidado para elaborar e dirigir esse departamento. Surgiu aí o selo Cepe Editora. Para evitar que favoritismos pessoais ou políticos influenciassem na escolha das publicações, criamos um Conselho Editorial, formado por professores, críticos, editores, linguistas, jornalistas, para filtrar as edições. A fim de ter um elenco de escritores infanto-juvenis criamos um concurso nacional, que logo deu excelentes frutos. Posteriormente criamos um concurso nacional para literatura adulta. Daí para a frente foram surgindo as coleções, como a Coleção Memória, que traz a história íntima de figuras importantes da vida cultural, social e política do Estado, mas de quem só se conheciam os fatos públicos. Assim, alcançamos um alto nível de qualidade editorial e gráfica e alguns de nossos livros chegaram a ganhar prêmios importantes como o Jabuti e o da Biblioteca Nacional. A prova final de nossa excelência aconteceu quando recebi um telefonema de uma das diretoras da Cosac & Naif, até então uma das mais respeitadas editoras do país, me perguntando se a Cepe toparia publicar, em parceria com eles, a obra completa do poeta pernambucano Sebastião Uchoa Leite, o que, naturalmente, aconteceu. Pouco tempo depois pedi demissão para me dedicar integralmente à minha banda, Ave Sangria.

DCP – Poesia ou prosa? Por quê?

MPG - Embora sempre tenha escrito prosa, me dediquei mais à poesia. Era o que realmente me importava naquele momento. Gosto da precisão da palavra, da capacidade de síntese que a poesia possui. Gosto até mesmo da sua incapacidade de se tornar mercadoria. Mas de uns tempos para cá estou fascinado pela prosa. Publiquei há alguns anos um livro de contos e já tenho, inéditos, outro livro de contos e um romance, além de um texto autobiográfico. E, curioso, enquanto na poesia minha tendência é para um texto às vezes contundente mas sempre despojado, na prosa sou dado a derramamentos, a digressões, a um quase barroquismo. É como se eu tivesse dupla personalidade, uma mais racional se expressando em versos e outra mais amalucada se espalhando em frases. De qualquer jeito, estou com Montaigne quando diz que só faz o que lhe dá alegria. Tive o privilégio de só trabalhar naquilo que gostava: jornalismo, editoração, literatura, artesanato e música. Quando escrevia mais poemas era o que me alegrava. Hoje o que me alegra mais é a prosa.

DCP - O poeta e o músico sempre estiveram em harmonia?

MPG - Acho que nunca conviveram, não. Pelo menos não de forma equidistante e harmônica. Minha primeira composição foi aos oito anos. Minha avó, que era evangélica, me leu a autobiografia de um ex-cangaceiro que tinha se convertido. A certa altura ele citava a letra de uma música que eles cantavam e que dizia: Ó cabra se eu te pegar/ na ponta deste meu aço/ inté o diabo tem dó/ da desgraça que te faço/ Te tiro o couro inteirinho/ e o espicho em compasso/ te como as carnes do corpo/ e só te deixo o cangaço. Achei aquilo formidável, mas como ninguém sabia a música eu inventei uma. Estudei piano clássico, acordeon e violão. E sempre compunha. Cheguei a ter uma música minha cantada por Teca Calazans, com arranjo de Geraldo Azevedo, num festival local, quando eu ainda tinha 15 anos. Mas a virada da poesia para a música aconteceu em 1968: contaminado pela rebelião dos jovens que acontecia no mundo (estudantes franceses no Maio de 68, hippies protestando contra a Guerra do Vietnã, a eclosão do rock britânico como trilha sonora dessa época), larguei tudo que eu tinha no Recife, emprego em jornal e amigos intelectuais, para cair na estrada e me engajar naquela movimentação juvenil que estava crepitando pelo planeta. Foi natural que nessa época eu tenha deixado de escrever para me dedicar completamente à composição musical. Daí se seguiu a formação de um grupo de “rock psicodélico nordestino”, o lançamento de um disco, o fim da banda com a proibição do disco pela Ditadura Militar, a volta da banda 45 anos depois e a gravação de um novo álbum. Parei de escrever poesia de 1969 a 1982, 13 anos. Hoje, poeta e músico convivem, finalmente, de forma harmônica e equidistante.

DCP - Foi com a banda Ave Sangria a sua maior e mais importante experiência musical?

MPG - Certamente. E não só musical. Até então eu exercia um total controle sobre tudo que eu produzia, afinal, a escrita é um exercício solitário. Tanto que no começo eu ficava muito inseguro sobre a qualidade do que fazia e terminei procurando Ariano Suassuna para me dar alguma orientação. Mas depois ganhei confiança e me mantive assim. Quando fui trabalhar com uma banda levei um choque. O trabalho era feito em grupo. Quer dizer, nem sempre minha concepção de um arranjo, por exemplo, era a melhor. De repente alguém sugeria uma coisa nova e eu via, entre horrorizado e fascinado, que essa coisa era melhor, era o que a música de fato pedia. Aos poucos fui assimilando o novo método e hoje acho que ele é muito mais enriquecedor, não só para a obra mas também para o autor, porque seus parceiros descobrem potencialidades no seu trabalho que você não enxergava, ou por limitação ou por não estar olhando da maneira certa. Tive outras alegrias na música como quando fiz parceria com Carlos Fernando ou com Lenine, ou quando Elba Ramalho e Ney Matogrosso gravaram músicas minhas. Mas minha experiência musical mais importante foi e é com a banda Ave Sangria. 




Marco Polo fez parcerias com Carlos Fernando e Lenine,
gravou musicas com Elba Ramalho, Ney Matogrosso, entre outros.
Foto: Reprodução




DCP - O seu último livro publicado “Autópsia do Bípede” (2013), traz narrativas sobre o nosso cotidiano e sobre a nossa efêmera existência humana. Conte-nos um pouco mais sobre este seu livro?

MPG - Autópsia do Bípede saiu pela editora Confraria do Vento, do Rio de Janeiro, a mesma que publicou minha última coletânea de poemas, Sax Áspero. São contos de diversas temáticas e formas, divididos em nove partes. Na primeira, Memórias de Adriano, estão textos meio poéticos, quase crônicas; na segunda, Dois tons, dois casos reais; na terceira, Minis, estão os minicontos, alguns com apenas quatro linhas, são fragmentos ou flashes do cotidiano; Cenas é a parte onde coloco o argumento de quatro curtas-metragens (na década de 60 cheguei a fazer filmes em Super 8 que, infelizmente, se perderam); Máscaras é a parte dos esquetes humorísticos, cenas meio absurdas mas que poderiam ser reais; em Tramas estão os contos mais dramáticos; Extras são os textos que não se enquadram em nenhuma das outras partes; há ainda o trailer de um livro que escrevi mas nunca vou publicar; e, finalmente, Narrativas excluídas das Memorias de Adriano. No todo, são contos que tratam sim do cotidiano, mas muitas vezes de um cotidiano insólito que chega a beirar o fantástico. Uns são secamente narrativos, outros são digressivos, outros erráticos. Formam um mosaico, um painel. Gosto do livro. Ele chegou a ficar entre os semifinalistas do Prêmio Telecon (hoje Oceanos), concorrendo com 600 livros de autores brasileiros e portugueses. Não acho que prêmios sejam importantes para a obra em si, mas estimulam o autor.

DCP – Existe algum sonho ainda não realizado na vida de Marco Polo Guimarães?

MPG - Não tenho nenhum grande sonho a ser alcançado, embora não me considere satisfeito. Acho que ainda posso produzir muito e melhor do que fiz até hoje. E pretendo fazê-lo. Sou um homem inquieto. E só vou me aquietar quando chegar a hora de me aquietar de vez e para sempre. Embora esperando que minha obra fique por aqui inquietando os outros.

DCP - Para finalizar esta entrevista, gostaria de saber a sua opinião sobre este momento de isolamento social devido à pandemia do coronavírus. Você acha que o mundo pós-pandemia será diferente?

MPG - Vejo este momento que estamos vivendo como uma provação. Sei que para muita gente foi e está sendo uma experiência muito negativa. Pessoas acostumadas ao convívio gregário constante, por exemplo. Pessoas que dependem muito dos afetos familiares, também. E me desespera pensar nos que não podem se proteger por falta de recursos econômicos. Da mesma forma que me enfurece quem desrespeita as normas de distanciamento e uso de máscaras. Dentro de todos esses sentimentos ruins, tento manter a calma. Me agrada, por exemplo, ver que muita gente está desenvolvendo atividades criativas que haviam deixado de lado. A leitura de bons livros, por exemplo. Escrever textos interessantes. Postar fotos bonitas. Descobrir a culinária. Enfim, nem tudo está perdido. Quanto a mim, sempre gostei muito de solidão. Não é algo que me afete. Na verdade, tenho lido muito, visto muito filme, escutado muita música. E tenho produzido: compus em parceria duas músicas com Geraldo Maia, uma com Xico Bizerra, duas com Ortinho e estou fazendo outra com Breno Lira. Também escrevi um pequeno livro de poemas, Arame e Silêncio. E, por fim, não, não acredito que vá mudar nada depois de passar a pandemia. A humanidade já atravessou outras pestes terríveis e guerras atrozes e continuou a mesma. Assim será. A tecnologia muda. O ser humano não. Pelo menos em sua essência vai permanecer do mesmo jeito, com todo o bem e com todo o mal de que é feita a sua carne e a sua alma.




ENTREVISTA COM O POETA MARCO POLO GUIMARÃES ENTREVISTA COM O POETA MARCO POLO GUIMARÃES Reviewed by Natanael Lima Jr on 00:02 Rating: 5

Um comentário

Recent in Recipes

3/Food/post-list