O ESPÍRITO VIVO E LÍQUIDO EM NOÉLIA RIBEIRO
Por Diego Mendes Sousa*
Espevitada
(Editora Penalux, 2017) é a quarta aparição em livro da pernambucana recifense,
Noélia Ribeiro, que iniciou o seu itinerário poético com a obra Expectativa, edição da autora, de 1982.
Neste
ínterim, da dicção de estreia à última realização, Noélia Ribeiro se fez
conhecida nacionalmente com os livros Atarantada
(Verbis, 2009) e Escalafobética (Vidráguas,
2015).
Considero
Espevitada a sua obra-prima, é quando
a poeta encontra o espírito vivo do seu opus singular e onde percebo o seu
nítido projeto de provocação e revide pelas palavras, em pequenas cintilações
expostas desde os títulos dos livros.
Em
um canto ligeiro e planificado pela intuição, Noélia Ribeiro dá impulso a um
lirismo de deslumbramento, recheado de expressões estranhas ao purismo
linguístico, porém íntimas da vivência e das imagens:
poeta cozinhando verso
é chef
paciente:
só serve poema al
dente
São
matérias muito caras à memória e à infância, o ritmo metafórico da poesia de
Noélia Ribeiro, dentre os seus lampeiros, elementos de audácia e de feitiço,
onde ela deságua o verbo em lúcidos poemas, a decifrar o relógio rápido do
tempo: mas não apaga da memória aquele
céu azul, / que regia o encantamento / das primeiras vezes da infância.
Creio que a
poesia deva ser mesmo o íntimo temporão, a espiritualidade mais ligeira e
fluida ao absurdo da existência. Noélia Ribeiro imprime uma consciência sobre a
realidade, com súbitas dores: Vida dura/
prematura / golpe baixo / e eu assim / líquida / tão uterina ainda me acho.
Sua poesia
estilhaça o mais leve instante, em busca de um passageiro desconhecido e de um
horizonte líquido. Poesia que toca, que move os sentidos e que se propaga em
combustão: Somente a ti pertencem / as
temperaturas altas. / Tens na boca o sol. / Tens nos dedos o verão.
Amante da delicadeza e da
beleza, Noélia Ribeiro codifica um passado enigmático. Espevitada é uma
celebração ao sonho e ao amor. De maneira sutil, o eu-poético delineia
magistralmente a sua ascese: viajar é
perscrutar a casa / que levamos dentro.
Nascente da
morada da alma é ainda o poema “Os
sapotis”, para mim, a mais célebre, vasta e sublime peça de Noélia Ribeiro.
Nele, encontro a emoção, a plenitude, a chama ilusória da natureza etérea, o
desejo de viver fora de si, o espetáculo das frutas e o seu aroma, a
irrealidade dos lugares, os ideais indecifráveis, as pedras na mais remota
saudade, a vagueza do que já foi, um arrebatamento que afoga o coração na
claridade nostálgica, sem chão, com verdade e com os próprios passos de
pássaros nas nuvens.
Espevitada, de Noélia
Ribeiro, conquista às cegas. É um algo-a-mais que advém de uma inocência, de
uma alegria visível.
*Diego
Mendes Sousa
é poeta piauiense. Sente que viveu na Rua do Lima, porque se reconhece
nefelibata tanto quanto Noélia Ribeiro.
Noélia
Ribeiro / Crédito: Reprodução
POEMAS DE NOÉLIA RIBEIRO
ESCOLHIDOS POR DIEGO MENDES SOUSA
ESPEVITADA
Espevitadas
minhas pernas
minutos
antes do voo
Espevitados
odores, hálitos, gritos terminais
nesta
cidade de muitos céus.
Espevitados
ossos em guerra tântrica
sobre
o tapete voador.
Espevitadas
carnes rompendo os
monumentais
eixos da volúpia.
Espevitadas
nossa voz
nossa
saliência
nossa
fartura
nossa
mais-valia
Espevitado
esse algo-a-menos de mim
que
te espera na quadra ao final do dia
DORAVANTE
Desfaço
tua imagem atrás da minha ao
quebrar
o espelho do quarto. Contra o peito
aperto
os cacos de ti até sangrarem minh'alma
Doravante,
ao meu alcance, a cura e a calma
NEM SEMPRE É LINDO
o amor
com sua destreza
tece uma teia invisível
que confunde
paralisa
e destrói a presa
NADA EM TI ME SURPREENDE
Nada em ti me surpreende
Conheço teu contorno
teu sotaque
teu afeto
Sei do calor
de tuas mãos
conchas onde guardo
meu segredo
Deitada à sombra
de teu corpo
sou nascituro cego
incompleto
Nada em ti é cedo
DE MALAS PRONTAS
Desligar as luzes
Fechar as janelas
Trancar a porta
Abrir a bagagem do desconhecido
e desorganizar sentimentos...
Viajar é perscrutar a casa
que levamos dentro
INSIGHT
Depois de padecer em desalinho,
dei-me conta afinal
de que a grama do vizinho
é mais verde porque é artificial.
BLITZ
Em vez de soprar
o bafômetro,
suspirou.
Foi autuada por
excesso de amargura.
LÍQUIDO
Perambulando com sede
pela rua
esbarrou
em um amor sem nome
sem número sem calma
Em casa
com as mãos ainda meladas
rasgou o livro de Bauman
OS SAPOTIS
No
meio do caminho de minha infância,
na
Rua do Lima, tinha
duas
pedras parentais, que, mais tarde,
escondi
no bolso do vestido.
Tinha
um ser indecifrável,
com
várias identidades: moço,
guarda,
homem do saco, cuja
chegada
próxima era sempre procrastinada.
Tinha
a escola, uma casa pequena
para
abrigar tanto céu e tanto inferno
trazidos
nas mochilas das crianças.
E
tinha as carambolas e
os
sapotis que exterminavam
medos
e colocavam sonhos
em
seu lugar.
Os
sapotis nefelibatas me ensinaram a escrever
poemas...
(Noélia Ribeiro e Diego Mendes Sousa)
O ESPÍRITO VIVO E LÍQUIDO EM NOÉLIA RIBEIRO
Reviewed by Natanael Lima Jr
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Bela resenha! Gosto muito do Espevitada! Noélia Ribeiro traz versos dinâmicos com referências e imagens interessantes.
ResponderExcluirParabéns ao Diego por captar, de forma tão profunda, a magia, meio moleca e bela, existente na poesia da grande Noelia Ribeiro. Ótima resenha. Abraços
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