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O CÂNTICO NEGRO DE JOSÉ RÉGIO



Por Natanael Lima Jr.*






José Régio (1901-1969)



“Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos”...


Cântico Negro é um poema do poeta português José Régio, pseudônimo literário de José Maria dos Reis Pereira, publicado no ano de 1925, há exatos 95 anos, contido no seu livro de estreia Poemas de Deus e do Diabo. Foi considerado pela crítica como um “poema-manifesto”, que contém algumas características modernistas que marcaram a sua produção poética. José Régio nasceu na freguesia da Vila do Conde, Portugal, em 17 de setembro de 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista "Presença", e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta, contista, cronista, memorialista e crítico, foi, no entanto, como poeta que se realizou e se tornou admirado e aplaudido em todo mundo. Faleceu no dia 22 de dezembro de 1969, aos 68 anos de idade.
É uma emoção indescritível revisitar este singular poema. Régio é profundamente intenso e subjetivo, a matéria de seus poemas é sobretudo a angustiada “certeza de não ter certeza de nada”.  A sua glória, diz o poeta: “é esta: criar desumanidade! Não acompanhar ninguém. – Que eu vivo com o mesmo sem vontade com que rasquei o ventre a minha mãe”.
A função social da poesia e do poeta certamente é esta, criar desumanidade; ter a capacidade de se indignar, denunciar e corrigir injustiças.




José Régio foi um dos mais importantes escritores da literatura
moderna portuguesa.
Foto: Reprodução




CÂNTICO NEGRO


"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces

Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!




                                                                                                

*Natanael Lima Jr. é poeta, editor do site “Domingo com Poesia” e da “Imagética Edições”.














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