ENTREVISTA COM O POETA ADRIANO ESPÍNOLA
Por Diego Mendes Sousa
“(...) poesia é linguagem em estado de aventura. Nunca me afastei
dessa assertiva. Hoje, talvez acrescentasse, puxando alguns fios
prateados da barba, que essa aventura não é somente da
linguagem, mas da própria existência humana nela refletida, a um
só tempo fascinante e trágica.”
só tempo fascinante e trágica.”
(Crédito: adriano espínola
filho)
Adriano
Espínola
nasceu em Fortaleza, em março de 1952. É Poeta de envergadura, professor
universitário, contista, cronista e crítico literário.
Autor dos livros de poemas: A cidade (1976), Fala, favela (1981), O lote
clandestino (1982), Trapézio
(1985), Táxi ou poema de amor passageiro (1986),
Metrô ou viagem até a última estação
possível (1992), Em trânsito:
Táxi/Metrô (1996), Beira-Sol
(1997), Praia provisória (2006) e Escritos ao sol (2015).
Na ficção, estreou em 2009, com a obra
de contos intitulada Malindrânia. No
ensaio, preparou Comunicação. Linguagem.
Semiologia (1982), As artes de
enganar: um estudo das máscaras poéticas e biográficas de Gregório de Matos (2000),
Os melhores poemas de Sousândrade (2008) e Gregório de Matos (série essencial, 2011).
É detentor do Prêmio Fundação
Biblioteca Nacional e do Prêmio Academia Brasileira de Letras de Poesia. Foi
finalista do Prêmio Jabuti, bem como do Prêmio Rio de Literatura, ao lado de
personalidades como Rubem Fonseca,
Nélida Piñon, João Almino e Arnaldo
Antunes. Membro do PEN Clube do Brasil e da Academia Carioca de Letras
(ACL), onde atualmente é o primeiro-secretário.
Seus livros mereceram apreciações
críticas elogiosas de Affonso Romano de
Sant’Anna, Décio Pignatari, Ricardo Vieira Lima, Antonio Carlos Secchin,
Eduardo Portella, Antônio Paulo Graça, André Seffrin, Charles Perrone, Domício
Proença Filho, Arnaldo Saraiva, dentre outros notáveis intelectuais, como o
perspicaz Wilson Martins.
Nesta entrevista concedida a Diego Mendes Sousa, com exclusividade
para o saite Domingo com Poesia, Adriano Espínola conta de maneira
inédita, a sua história de vida, com aprendizados e lições, a evidenciar as
suas escolhas literárias.
Adriano
Espínola
detém uma dicção poética singular, mapeada pelo sol de Fortaleza e pelo
Atlântico azul turquesa do Ceará. Seu movimento de exímio poeta segue a
luminosidade do horizonte, descortina as praias da sua terra natal, transpõe as
misérias da metrópole, reinventa as ruas da cidade, passeia pela civilização,
tudo isso com a beleza secreta e intuitiva da comoção. Sua poesia é sensitiva,
depurada e cristalina, como as águas da memória.
Nenhuma imagem da geografia de
Fortaleza escapa ao olhar de Adriano
Espínola. Suas visões imaginativas e reais sobre as dunas, o morro do
Mucuripe, os jangadeiros, as rendeiras, os coqueiros e as lavadeiras da
Maraponga, enobrecem o canto universal desse poeta, cuja claridade verbal banha
o tempo das manhãs ensolaradas do homem.
Adriano Espínola pesca as palavras pela via
do coração e explora uma viagem secular, no galope dos seus cavalos sobre o
mar.
A aurora se desamarra do cais.
Um barco singra o peito
rosado do mar.
A manhã sacode as ondas
e os coqueiros.
O azul estica a linha do horizonte.
Na praia, um pescador arrasta
um sol de algas.
Em suas mãos, um peixe salta:
ó palavra escamosa,
espírito agitado das águas.
(Poema Pesca, de Adriano Espínola)
Diego
Mendes Sousa -
Fortaleza, capital do Ceará, é uma urbe como nenhuma outra. Confesso a você,
que se eu não tivesse nascido na Parnaíba, costa do Piauí, desejaria a sua
cidade natal como a minha pátria literária. Conte-me sobre a sua infância e a
sua juventude, nos idos de 1950 e 1960, nessa privilegiada geografia do
Nordeste brasileiro.
Adriano
Espínola -
De fato, Fortaleza tem grande tradição literária, basta lembrarmos de Alencar, com seu romance-poema Iracema,
bem como dos romancistas do realismo-naturalista, passando pela criação da
Padaria Espiritual e da Academia Cearense de Letras (a mais antiga do país), no
final do século XIX. Lembremos também do modernismo dos poetas do Canto Novo da
Raça e da ficção de Rachel de Queiroz, nos agitados anos 20 e 30, sem falar no
Grupo Clã e no Siriará, a partir da segunda metade do século passado.
Presentemente escritores e poetas cearenses como Ana Miranda, Tércia
Montenegro, Carlos Emílio Corrêa Lima, Luciano Maia, Floriano Martins e Mailson Furtado têm conquistado
merecido destaque nacional.
Mas você me pergunta pela minha
infância e juventude na cidade. Vamos lá. Frequentei desde criança a Praia de
Iracema, Meireles e Mucuripe. Moleque, costumava, com os amigos e irmãos mais
velhos, tomar banho de mar e pescar à beira-mar, nos finais de semana e no
período de férias escolares. Assistia por vezes fascinado aos arrastões dos
pescadores na praia do Mucuripe. Essas, as imagens mais fortes que tenho
daquele período.
Fui o quarto filho de um total de sete
de uma família classe média. A convivência com os irmãos e sobretudo com meus
pais (ele, advogado, professor universitário e jornalista; ela, grande leitora
e curtidora de música clássica), em um ambiente cercado de livros (o velho
possuía uma ótima biblioteca) enriqueceram sobremaneira a minha formação.
Entretanto, na escola, nunca fui bom
aluno, aplicado; ao contrário, devaneava demais e era dado a bagunças (cheguei
a ser quase expulso por soltar bombas nos banheiros). Gostava também de me
aventurar com os irmãos e amigos pelos sítios e bosques da cidade, caçando de
atiradeira passarinhos (rolinhas) e colhendo frutas nos muitos pés de
cajueiros, mangueiras e goiabeiras que havia. Diverti-me também muito no Clube
Iracema, ao lado de casa, onde aprendi a nadar, a jogar (mal) futebol e tênis
de mesa. Tive, portanto, uma infância e adolescência com muitas opções de
lazer, ligadas sobretudo à natureza.
DMS
-
Homem feito, já em 1970, aos 18 anos de idade, você foi estudar nos Estados
Unidos. O que reteve dessa experiência e qual o reflexo na sua poesia?
AE
-
A primeira grande mudança na minha vida foi essa viagem aos Estados Unidos.
Ganhei uma bolsa para estudar durante um ano na Huntington High School, em Long
Island, cidade próxima de Nova York. Lá, morei na residência da família Lord,
que tinha um filho da minha idade, o Steven, grande figura (que se tornaria um
respeitável astrofísico), com quem até hoje me correspondo.
NY representou para mim um choque
cultural imenso. Fiquei fascinado pela grandiosidade da urbe, pelo
cosmopolitismo e convivência com pessoas de várias origens e etnias. No meu
poema Táxi, há trechos em que
expresso isso. A vida na escola de Huntington também foi culturalmente rica.
Tive aulas de literatura americana, antropologia e até sobre Shakespeare, com filmes de suas peças e
debates. Também naquele momento curti muitas bandas de rock e fui a muitos
shows.
Voltei de cabelos nos ombros, roqueiro
e descolado (para espanto da minha família e amigos), com a sensação de ter
vivido um grande momento da música e das artes. O Festival de Woodstock,
acontecido em 1969, ainda repercutia, e a cultura hippie se disseminava,
juntamente com o movimento Black-power.
DMS
-
A sua estreia literária ocorreu em 1976, com o cordel A cidade e com o pseudônimo de Pedro
Gaia. Como foi essa gestação inaugural e o porquê dessa máscara sobre os
seus próprios versos?
AE
-
Coisa curiosa: depois de ter tido a experiência multicultural de Nova York e da
escola em Huntington, passei a pesquisar e a querer conhecer melhor a cultura
popular da minha terra.
Já aluno de Letras da UFC, empreendi
várias viagens a algumas cidades do interior, acompanhado de alguns amigos
(entre eles, o poeta, pesquisador e dramaturgo Oswald Barroso) principalmente a cidades de Juazeiro do Norte e
Canindé, tradicionais centros de cultura popular e religiosa. Também tinha em
mente o conselho de meu pai, segundo o qual um intelectual ou artista não pode
se dissociar da realidade social e dos valores da sua região.
Foi o que fiz. Ao publicar o folheto A cidade, que reunia poemas sobre a
origem e construção de Fortaleza, em versos livres, e não em moldes de cordel,
sob o pseudônimo de Pedro (nome popular) Gaia (mãe-terra, na mitologia grega),
quis conciliar aspectos do interior e da capital, o popular e o erudito. Creio,
porém, que essa conciliação só alcançaria um resultado razoável no livro Fala, favela (com personagens que vêm do
sertão para Fortaleza) e em alguns trechos do Táxi, quando o eu lírico passa pelo Cariri e pede a bênção ao meu
Padim...
DMS
-
Você foi professor da Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e da Universidade
Federal do Ceará (UFC). Ambiências intelectuais refinadas, que preservaram em
seus quadros de professores, mestres e escritores como Moreira Campos, Artur Eduardo Benevides e Sânzio de Azevedo. Conte-me sobre a sua vivência com essa gente de
proa.
AE
-
Valeu-me demais a convivência com tais mestres, sobretudo com o Moreira Campos, que era meu tio afim.
Com ele, aprendi muitíssimo não só no ambiente universitário mas também no
familiar. Meus primeiros poemas, aliás, costumava mostrar a ele, para que
fizesse a leitura crítica. Admirável mestre, como escritor (um dos maiores
contistas do país) e como pessoa humana, generoso e educado. Sem falar que era
um grande causeur.
Pessoalmente convivi pouco com o Artur, excelente conferencista e
poeta, no quadro da geração de 45. Ele funcionou, porém, para mim como oposição
ao ideário poético da sua geração. Quanto ao Sânzio, continua meu mestre ainda hoje, não só em relação à
história da literatura cearense e do Simbolismo brasileiro, mas também a
aspectos técnicos da versificação, autor que é do primoroso Para
uma teoria do verso. Tiro dúvidas com ele e com frequência conversamos ao
telefone.
DMS
-
Sua segunda publicação foi Fala, favela (1979), que causou
impacto no círculo cearense e se tornou espetáculo teatral. Em que
circunstância social esses poemas foram escritos?
AE
-
O poema resultou de uma grave e dramática questão social, ocorrida em
Fortaleza, em 1979, quando uma comunidade de favelados (chamada José Bastos)
recebeu uma ordem judicial de despejo. Os moradores lançaram um manifesto,
denunciando a situação e trataram de organizar uma resistência. O resultado
final foi a saída deles à base da violência, com policiais agredindo moradores
e máquinas derrubando os casebres.
Percebi ali um drama social concreto e
tratei de escrever alguns poemas. De repente um poema foi puxando outro. Vozes
de alguns personagens se somaram à voz lírica do poeta, tornando-se este também
um personagem na cena de expulsão.
Quando mostrei o conjunto dos textos
(cerca de 30) ao diretor José Carlos
Matos, ele de imediato se dispôs a montar os poemas. Curioso é que eu havia
mostrado também ao Affonso Romano de
Sant’Anna, que me chamou a atenção para o aspecto dramático-teatral do Fala, favela. Ele acabou, aliás, por
escrever um posfácio à primeira edição, feita em Fortaleza.
A estreia, no dia 6 de dezembro de
1980, foi um sucesso, graças à direção e ao excelente desempenho dos atores.
Também contribuiu para tanto o compositor Calé
Alencar, que musicou alguns poemas. Passou vários meses em cartaz no Teatro
Universitário. O livro sairia no ano seguinte.
Considero efetivamente o meu primeiro
livro. Já foi traduzido para o francês e no ano passado tomei conhecimento de
um belo ensaio da professora Anne-Marie
Pascal, da Universidade de Lyon, denominado “L’épopée das sans-logis: Fala, favela d’Adriano Espínola”,
publicado em livro, em Paris, em 2012.
DMS
-
O
lote clandestino (1982) veio a lume em mimeógrafo, assim como a sua
primeira peça de ensaio intitulada Comunicação. Linguagem. Semiótica.
(1982). Qual o contexto da Geração Mimeógrafo no Ceará? Você teve participação
ideológica nesse movimento literário?
AE - Não creio que tenha havido uma
geração mimeógrafo em Fortaleza. Naquela época (final dos anos 70 e início dos
80), recebia quase todos os dias pequenos livros de poesia e ficção, de feitio
artesanal, principalmente vindos do Rio e de São Paulo, mas também de Brasília
(Nilto Maciel e Nicolas Behr). Acompanhava assim aquele movimento todo. Era a
linguagem e a produção (editorial) da minha geração.
Depois da experiência do Fala, favela, de tom grave, dramático,
com bastante apuro formal, lancei-me a escrever os poemas de O lote clandestino
em um tom mais direto, solto, de registro coloquial e irônico, para agora
expressar, através da voz lírica, o cotidiano de uma grande cidade, e a luta
das pessoas pela sobrevivência. A edição simples, em mimeógrafo, combinava com
essa atitude.
Colocava-me no livro, porém,
frontalmente contra a tradicional agri/cultura literária, que ora predominava
no Ceará, voltada para o campo, o sertão. Fortaleza já era então uma metrópole.
Lancei, por isso mesmo, literalmente o livro no centro de Fortaleza, no alto de
um edifício da Praça do Ferreira. Foi a primeira chuva de poesia da cidade. O
fato repercutiu na mídia não só local, mas nacional, com matéria no jornal do
meio-dia da TV Globo.
O livrinho chegou a ganhar apreciação
crítica do temido Wilson Martins, no
JB, que elogiou, mas também o criticou (não poderia ter sido melhor). No mesmo
JB, Pedro Lyra faria uma ótima
resenha, destacando a “dicção original” dos poemas de O lote clandestino.
DMS
-
Trapézio
(1985) difere bastante do seu estilo, pois é um livro de haicais e de
tankas, embora os temas sol, mar e ventania percorram as composições. O que o
levou a escrever na linguagem de Bashô?
AE
-
Eu o escrevi até por contraste aos dois livros anteriores de temática
fortemente social e urbana. Tinha compreendido, desde aquele instante, que a
contradição em poesia soma, enriquece. Ao contrário de outras atividades do
espírito, em que a contradição se torna comprometedora (discursos de políticos,
filósofos, cientistas etc.), a poesia parece ter esta vantagem: quanto mais
plural e/ou antitética, melhor. (Murilo
Mendes já falava que o poeta era um “conciliador dos contrários”).
Escrever haicais (composto de 3 versos
de cinco, sete e cinco sílabas) e tankas (1 haicai + 2 versos de sete silabas)
exigiu-me observação da natureza e alto poder de síntese. O flagrante de um
momento único. Difícil à beça.
Meu desafio foi também incorporar a
essa forma rigorosa e estrangeira temas locais. Dou um pequeno exemplo de
haicai (“Pipas no ar. Estio. / Alguém na praia sustém / o sol por um fio.”) e
de tanka (“Verde mar bravio. / As dunas brancas e nuas / se movem no cio.
/Chega à noite a maré cheia,/cobrindo-as de espuma e areia.”).
DMS
-
Táxi
ou poema de amor passageiro (1986) é um clássico da poesia brasileira
da segunda metade do século XX. Trata-se de um poema único escrito com a mesma
vitalidade de Poema Sujo (1976) do
maranhense Ferreira Gullar. Qual é a sensação de se saber testemunha de uma
época?
AE
-
Novamente operei por contraste. Depois da contenção e da temática da natureza
no Trapézio, voltei-me para uma
poética expansiva, narrativa, em uma imaginária viagem de táxi por dentro da
cidade e da memória, ao lado da mulher amada. Mas não houve cálculo nisso; o
que seria um poema de poucas páginas acabou ganhando velocidade no tempo e no
espaço (as várias temporalidades e cidades por onde andei).
A criação do poema foi para mim mesmo
surpreendente. Depois de publicado pela editora Global (SP,1986), mais surpreendente
foi a receptividade do público e da crítica. No mesmo ano, tornou-se objeto de
estudo em um curso de mestrado da UFRJ e foi levado para os Estados Unidos pelo
professor e brazilianist Charles A. Perrone, que o traduziria
com muita competência, conseguindo até que fosse publicado, alguns anos depois,
pela Garland Publisher, em Nova York e em Londres, fazendo parte da importante
coleção World Literature in Translation.
Ainda em 1986, o poeta concretista Décio Pignatari me convidou para uma
entrevista em um programa da Rádio Cultura que ele comandava, em São Paulo. Ele
faria o texto de orelha da segunda edição (Em
trânsito: Táxi/Metrô), publicada pela Topbooks (RJ).
No poema, não tive intenção em
testemunhar uma época; simplesmente aconteceu, ao narrar com intensidade aquilo
que vivenciei/experimentei, senti e pensei de forma próxima e direta, em viagem
pelas ruas de algumas cidades do país e do exterior, a caminho da Praia do
Futuro...
DMS
-
Você considera o poema Táxi ou poema de amor passageiro a
sua obra-prima?
AE
-
Não sei. Essa avaliação é sempre feita pelos outros. Certamente trata-se do meu
poema/livro mais conhecido, aqui e no exterior, até hoje. Recentemente, aliás,
o grande poeta e crítico literário Antonio
Carlos Secchin, com o peso da sua autoridade (é professor titular e emérito
da UFRJ e membro da ACL, além de autor de várias e importantes obras) o
escolheu como um dos cinco poemas essenciais da poesia brasileira. Isso me
deixou muito honrado e feliz.
DMS
-
Na sua concepção, principalmente nos poemas da antologia Escritos ao sol (2015),
qual o seu melhor poema e por quê?
AE
-
Não saberia apontá-lo, mas posso dizer que um dos meus preferidos é “O poeta chega aos 50”. Pelo que tem de
autobiográfico, bem como pelo entrecruzamento de personagens míticas locais e
universais. Diria, ainda, que pelo ritmo e musicalidade obtidos e pela verdade
dos versos finais: “sou um homem comum:/ carne e terra girantes do acaso, /
cinquenta vezes em um”.
DMS
-
A claridade é uma tônica primorosa em seus versos. Somente um fortalezense
arraigado como você, seria capaz de desvelar as imagens solares escondidas nas
praias do Mucuripe e do Futuro. Os títulos das suas obras expressam bem isso: Beira-Sol
(1997), Praia provisória (2006) e Escritos ao Sol (2015). Você julga
ter encontrado a dicção pessoal?
AE
-
Como disse na primeira resposta, boa parte da minha infância e juventude se
passou pelas praias de Iracema, Meireles e Mucuripe. A intensidade da luz solar
sobre a cabeça e a pele, o verdiazul do mar e o cheiro da maresia trago ainda
hoje comigo na alma e na memória. De alguma maneira tentei expressar essas
sensações nos versos e poemas dos livros citados acima.
Depois dos 20 anos, passei a
frequentar a Praia do Futuro, que me deu o roteiro, por entre dunas e estrelas,
para escrever alguns poemas de amor, entre os quais um que se chamaria Táxi. Se os poemas solares e praianos
transcorrem sobretudo pelo eixo metafórico-mítico da linguagem, já os do Táxi e outros poemas urbanos vão pelo
eixo metonímico-realista.
DMS
-
Tanto em Fala, favela, quanto em O lote clandestino, já estava
evidenciada a temática do urbanismo em sua poesia. A experiência em Metrô
ou viagem até a última estação possível (1992) é o ápice dessa
atmosfera de conteúdo cosmopolita?
AE
-
Talvez, sim. Relendo-o agora, no preparo da minha Antologia 2, dei-me conta do
desdobramento de muitas imagens e percepções da contemporaneidade urbana, em
uma narrativa que se estende por cerca de 65 páginas, dividido em 40
passagens/estações. Talvez seja o meu poema mais complexo, ao percorrer por
dentro e por fora a cidade do Rio, mas também algumas outras cidades, tais como
Amsterdã, Paris, Grenoble (onde vivi), Berlim e Fortaleza. No plano literário e
da imaginação, o “metrô” percorre alguns trilhos da tradição poética,
arrebatando no percurso vários poetas e personagens literários, desde Hesíodo a
Oswald, ou mesmo desde Ulisses a Clarice, por exemplo, como passageiros deste
trem muito doido.
Mas trata-se
fundamentalmente de um poema de amor. À minha mulher, Moema, e à cidade. Que ao longo da narrativa se entrecruzam
simbolicamente, em termos de figuração afetiva e cognitiva.
DMS
-
Você pertence a duas instituições de suma importância no cenário cultural do
Rio de Janeiro: Academia Carioca de Letras (ACL) e PEN Clube do Brasil. O que o
levou ao Rio e quais as suas principais convivências literárias?
AE
-
Cheguei ao Rio em 1986, para fazer curso de mestrado em Poética na UFRJ. Em
1994, retornei à mesma universidade para realizar doutorado em Literatura
Brasileira, concluído em 99, ao defender tese sobre o poeta Gregório de Matos, sob a orientação do
professor Antonio Carlos Secchin.
Voltaria ao Rio, em 2003, já para dar aulas na Faculdade de Letras da UFRJ,
durante quatro anos, como professor visitante, cedido pela UFC.
Depois de aposentado, fixei-me de vez
na cidade, ingressando em seguida no PEN Clube e na ACL. Nesta, por sinal,
encontro-me desde algum tempo como primeiro-secretário, ajudando, com os
colegas da diretoria, a compor a programação cultural e os eventos da Casa. O
ingresso nessas duas entidades culturais possibilitou-me conviver
fraternalmente com escritores e intelectuais da minha admiração.
Não posso deixar de me referir também,
nesse tempo, a uma outra Casa, que foi decisiva para a minha carreira como
escritor, na cidade: a editora Topbooks, tendo à frente José Mario Pereira, que publicaria seis livros meus. Além de grande
intelectual e homem sempre bem informado, tive lá a oportunidade de conviver
com numerosos e importantes escritores do Rio.
DMS
-
Além de poesia, você escreve crônicas e ensaios literários, bem como
recentemente, em 2009, fez-me conhecer também, o contista. Com um título
curioso e singular, de que se abastece o livro Malindrânia?
AE
-
Cheguei a ter uma coluna de crônicas no jornal O Povo, em Fortaleza, de 1992 a 94; chamava-se “Zona”. Quanto aos
ensaios, selecionei 18 deles para compor um livro sobre diversos escritores e
obras, desde o século XVII ao XXI. Deverá sair no próximo ano, espero. (Diga-se
de passagem, que o ano cultural/literário, devido à pandemia, terminou em março
passado).
No que se refere às narrativas de Malindrânia, adianto que nele reuni
alguns contos e pequenos relatos próximos do que seriam poemas em prosa. O
título foi retirado do romance Dom
Quixote. Refere-se à ilha em que o cavaleiro Dom Quixote de la Mancha vence
na imaginação o gigante Caraculiambro e conquista a sua amada Dulcineia.
Conquista imaginária de um espaço imaginário. Assim seria a própria literatura.
Trata-se, pois, de uma metáfora, em
que se busca conquistar um território e o amor. Os relatos de Malindrânia, quase todos, têm algo a ver
com isso: neles germinam grãos da loucura, do sonho e da realidade, imbricados
e indissociáveis, em personagens que deambulam por entre ruas e praças da
cidade.
DMS
-
Você é um notável pesquisador da vida e da obra de dois seminais artistas
nordestinos: Gregório de Matos e Sousândrade. Qual a importância desses
nomes para a poesia brasileira?
AE
-
Como você bem disse, são dois poetas seminais. Poderíamos falar muito sobre
eles. Direi, em síntese, que o baiano Gregório
de Matos (1636-1695?) foi o nosso primeiro grande poeta. Escritor polêmico,
prismático e problemático. Polêmico, porque ainda hoje se discute a sua
originalidade; prismático, por exibir uma produção multifacetada: lírica,
erótica, religiosa, satírica e encomiástica; por fim, problemático, porque na
sua poesia palpitam dúvidas autorais e textuais de difícil resolução. Sua obra
é apógrafa e não autógrafa: o poeta nunca se preocupou em reunir seus poemas
em livro com seu nome.
GM era um poeta de índole dramática,
como procuro mostrar na minha tese, As
artes de enganar: um estudo das máscaras poéticas e biográficas de Gregório de
Matos (RJ, 2000). Teria inventado até o seu próprio biógrafo, o licenciado Manuel Pereira Rabelo. Considero
igualmente o verdadeiro fundador em negativo (com a sua voz satírica e
graciosa) da pátria brasileira. Seus poemas são verdadeiros documentos/crônicas
de época colonial (o Brasil/Bahia seiscentista), na sua heterogeneidade racial,
social e econômica.
Sousândrade (1832-1902)
foi outra figura genial, igualmente polêmica. Com o seu O Guesa (1887?), longo poema narrativo composto de 13 cantos,
abalaria o edifício romântico, de teor sentimental e linguagem transparente. Só
reconhecido plenamente, nos anos 1960, pelos irmãos Campos (ver Re-visão de Sousândrade), é sobretudo no
Canto X (“O inferno de Wall Street”) que o poeta maranhense esbanja
criatividade e originalidade, à base de múltiplos recursos vocabulares,
sintáticos e estilísticos, a serviço de uma visão irônico-crítica do mundo
capitalista.
Tanto o baiano quanto o maranhense
representam sem dúvida os principais casos da poesia brasileira. Por isso
mesmo, senti-me desafiado a conhecê-los melhor.
DMS
-
Sua poesia foi traduzida e publicada no exterior, em língua inglesa e francesa.
Qual foi a recepção dos seus livros em países como Estados Unidos, Inglaterra e
França?
AE
-
Claro que fiquei feliz com a tradução e publicação de meus livros lá fora. Mas
não tenho ilusão. Eles se encontram somente nas bibliotecas públicas e/ou
universitárias ou são estudados nos departamentos de Letras, nos setores de
língua portuguesa e espanhola. Dificilmente um livro de poesia de um autor
latinoamericano alcança o público desses países. (Talvez um Borges, talvez um Neruda, talvez um Paz:
exceções, pela grandeza desses poetas, que confirmam a regra).
DMS
-
Você é um dos nossos grandes poetas, da mesma estatura vocacionada dos seus
conterrâneos Francisco Carvalho, José Alcides Pinto e Gerardo Mello Mourão, além do
extraordinário amazônida Jorge Tufic,
que morou muitos anos em Fortaleza. Poesia é um dom?
AE
-
Antes de responder à sua pergunta, deixe-me dizer que sintome feliz ao lado de
poetas tão queridos e admirados. Todos eles foram meus amigos e mestres.
Convivi muito com o Zé Alcides,
figura extraordinária, criativo e multifacetado, de temperamento inquieto e
divertido; Chico Carvalho, mais
retraído, sério, era, porém, uma verdadeira mina de versos e imagens
faiscantes; Gerardo, talento imenso,
homem culto e poliglota, sabia reinventar e fundir a viola do cantador
nordestino à lira dos aedos gregos, enquanto o Tufic recontava como ninguém os mitos e visões amazônicos, em
terras cearenses, através de versos encantatórios. Minha homenagem aqui a esses
grandes poetas, para os quais tiro o chapéu.
Poesia é um dom? pergunta-me você.
Certamente. Mas esse dom (vocação, inclinação ou habilidade) precisa ser
aprimorado, desenvolvido. À base de muitas leituras, trabalho e tentativas.
Isso é um tanto quanto óbvio, mas vá lá. Assim como nas outras artes, o dom da
pintura, da música, do canto, etc., tem que ser cultivado pelo sujeito. Para T.S. Eliot, poeta é o camarada que tem
um domínio extraordinário da linguagem e uma visão extraordinária da realidade. Isso me parece válido tanto para um
poeta popular quanto para um erudito. Patativa
do Assaré e Drummond, por
exemplo.
DMS
-
Qual o seu conceito acerca da poesia?
AE
-
Ao lançar, em 1984, o livro de haicais, Trapézio, afirmei, na nota
biográfica, que poesia é linguagem em estado de aventura. Nunca me afastei
dessa assertiva. Hoje, talvez acrescentasse, puxando alguns fios prateados da
barba, que essa aventura não é somente da linguagem, mas da própria existência
humana nela refletida, a um só tempo fascinante e trágica.
Diego Mendes Sousa e Adriano Espínola, em 2019, na
sede do PEN Clube do Brasil, no Rio de Janeiro, durante Roda de Leituras
promovida pela Casa.
ENTREVISTA COM O POETA ADRIANO ESPÍNOLA
Reviewed by Natanael Lima Jr
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Magnífica, sintética e bem conduzida entrevista de Diego Mendes Sousa a Adriano Espínola.
ResponderExcluirUm verdadeiro passeio pelos caminhos da Literatura praticada por Adriano nos conturbados anos 1970/80/90.
Some-se a isso uma agradável aula sobre poesia, fazer poético,inspiração e memorialismo, o resultado final não poderia ser outro: um bate-papo apetitoso, que teve os auxílios luxuosos de Sânzio de Azevedo, Moreira Campos, Artur Eduardo Benevides, José Alcides Pinto, Francisco Carvalho e Gerardo Mello Mourão,dentre outros.
Congratulações.
Túlio Monteiro - Escritor, poeta, historiador e com orgulho ex-aluno de Adriano Espínola no Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.
Fortaleza,Ceará, 24 de maio de 2020.
Caro Túlio Monteiro,
ResponderExcluirObrigado pela vasta leitura!
Meu abraço,
Diego Mendes Sousa
Bela entrevista, Adriano. Parabéns, Diego.
ResponderExcluirNatalício Barroso
Prezado Natalício Barroso,
ExcluirViva! Muito obrigado!
Grande abraço,
Diego Mendes Sousa
Parabéns ao Diogo Sousa. Os questionamentos sobre a vida e a construção poetica do bardo Adriano Espínola - foram precisos. Ressalto aqui, para todos àqueles que se interessam por literatura e/ou poesia "ourifera" brasileira -terão a obrigatoriedade de "pousar" o olhar nessa entrevista. E, por fim,como leitor privilegiado, aplaudo a contudente e perene poesia viva de AE.
ResponderExcluirExcelente entrevista com o talentoso poeta Adriano Espínola. Parabéns!
ResponderExcluirSérgio Caldieri,
ExcluirObrigado pela leitura! Grande abraço,
Diego Mendes Sousa