ENTREVISTA COM O POETA ADRIANO ESPÍNOLA



Por Diego Mendes Sousa






“(...) poesia é linguagem em estado de aventura. Nunca me afastei
dessa assertiva. Hoje, talvez acrescentasse, puxando alguns fios prateados da barba, que essa aventura não é somente da
linguagem, mas da própria existência humana nela refletida, a um
só tempo fascinante e trágica.”





(Crédito: adriano espínola filho)



Adriano Espínola nasceu em Fortaleza, em março de 1952. É Poeta de envergadura, professor universitário, contista, cronista e crítico literário.

Autor dos livros de poemas: A cidade (1976), Fala, favela (1981), O lote clandestino (1982), Trapézio (1985), Táxi ou poema de amor passageiro (1986), Metrô ou viagem até a última estação possível (1992), Em trânsito: Táxi/Metrô (1996), Beira-Sol (1997), Praia provisória (2006) e Escritos ao sol (2015).

Na ficção, estreou em 2009, com a obra de contos intitulada Malindrânia. No ensaio, preparou Comunicação. Linguagem. Semiologia (1982), As artes de enganar: um estudo das máscaras poéticas e biográficas de Gregório de Matos (2000), Os melhores poemas de Sousândrade (2008) e Gregório de Matos (série essencial, 2011).

É detentor do Prêmio Fundação Biblioteca Nacional e do Prêmio Academia Brasileira de Letras de Poesia. Foi finalista do Prêmio Jabuti, bem como do Prêmio Rio de Literatura, ao lado de personalidades como Rubem Fonseca, Nélida Piñon, João Almino e Arnaldo Antunes. Membro do PEN Clube do Brasil e da Academia Carioca de Letras (ACL), onde atualmente é o primeiro-secretário.

Seus livros mereceram apreciações críticas elogiosas de Affonso Romano de Sant’Anna, Décio Pignatari, Ricardo Vieira Lima, Antonio Carlos Secchin, Eduardo Portella, Antônio Paulo Graça, André Seffrin, Charles Perrone, Domício Proença Filho, Arnaldo Saraiva, dentre outros notáveis intelectuais, como o perspicaz Wilson Martins.

Nesta entrevista concedida a Diego Mendes Sousa, com exclusividade para o saite Domingo com Poesia, Adriano Espínola conta de maneira inédita, a sua história de vida, com aprendizados e lições, a evidenciar as suas escolhas literárias.

Adriano Espínola detém uma dicção poética singular, mapeada pelo sol de Fortaleza e pelo Atlântico azul turquesa do Ceará. Seu movimento de exímio poeta segue a luminosidade do horizonte, descortina as praias da sua terra natal, transpõe as misérias da metrópole, reinventa as ruas da cidade, passeia pela civilização, tudo isso com a beleza secreta e intuitiva da comoção. Sua poesia é sensitiva, depurada e cristalina, como as águas da memória.

Nenhuma imagem da geografia de Fortaleza escapa ao olhar de Adriano Espínola. Suas visões imaginativas e reais sobre as dunas, o morro do Mucuripe, os jangadeiros, as rendeiras, os coqueiros e as lavadeiras da Maraponga, enobrecem o canto universal desse poeta, cuja claridade verbal banha o tempo das manhãs ensolaradas do homem.

Adriano Espínola pesca as palavras pela via do coração e explora uma viagem secular, no galope dos seus cavalos sobre o mar. 




A aurora se desamarra do cais.
Um barco singra o peito
rosado do mar.
A manhã sacode as ondas
e os coqueiros.

O azul estica a linha do horizonte.

Na praia, um pescador arrasta
um sol de algas.
Em suas mãos, um peixe salta:
ó palavra escamosa,
espírito agitado das águas.


                                                           (Poema Pesca, de Adriano Espínola)







Diego Mendes Sousa - Fortaleza, capital do Ceará, é uma urbe como nenhuma outra. Confesso a você, que se eu não tivesse nascido na Parnaíba, costa do Piauí, desejaria a sua cidade natal como a minha pátria literária. Conte-me sobre a sua infância e a sua juventude, nos idos de 1950 e 1960, nessa privilegiada geografia do Nordeste brasileiro.

Adriano Espínola - De fato, Fortaleza tem grande tradição literária, basta lembrarmos de Alencar, com seu romance-poema Iracema, bem como dos romancistas do realismo-naturalista, passando pela criação da Padaria Espiritual e da Academia Cearense de Letras (a mais antiga do país), no final do século XIX. Lembremos também do modernismo dos poetas do Canto Novo da Raça e da ficção de Rachel de Queiroz, nos agitados anos 20 e 30, sem falar no Grupo Clã e no Siriará, a partir da segunda metade do século passado. Presentemente escritores e poetas cearenses como Ana Miranda, Tércia Montenegro, Carlos Emílio Corrêa Lima, Luciano Maia, Floriano Martins e Mailson Furtado têm conquistado merecido destaque nacional.

Mas você me pergunta pela minha infância e juventude na cidade. Vamos lá. Frequentei desde criança a Praia de Iracema, Meireles e Mucuripe. Moleque, costumava, com os amigos e irmãos mais velhos, tomar banho de mar e pescar à beira-mar, nos finais de semana e no período de férias escolares. Assistia por vezes fascinado aos arrastões dos pescadores na praia do Mucuripe. Essas, as imagens mais fortes que tenho daquele período.

Fui o quarto filho de um total de sete de uma família classe média. A convivência com os irmãos e sobretudo com meus pais (ele, advogado, professor universitário e jornalista; ela, grande leitora e curtidora de música clássica), em um ambiente cercado de livros (o velho possuía uma ótima biblioteca) enriqueceram sobremaneira a minha formação.

Entretanto, na escola, nunca fui bom aluno, aplicado; ao contrário, devaneava demais e era dado a bagunças (cheguei a ser quase expulso por soltar bombas nos banheiros). Gostava também de me aventurar com os irmãos e amigos pelos sítios e bosques da cidade, caçando de atiradeira passarinhos (rolinhas) e colhendo frutas nos muitos pés de cajueiros, mangueiras e goiabeiras que havia. Diverti-me também muito no Clube Iracema, ao lado de casa, onde aprendi a nadar, a jogar (mal) futebol e tênis de mesa. Tive, portanto, uma infância e adolescência com muitas opções de lazer, ligadas sobretudo à natureza.

DMS - Homem feito, já em 1970, aos 18 anos de idade, você foi estudar nos Estados Unidos. O que reteve dessa experiência e qual o reflexo na sua poesia?

AE - A primeira grande mudança na minha vida foi essa viagem aos Estados Unidos. Ganhei uma bolsa para estudar durante um ano na Huntington High School, em Long Island, cidade próxima de Nova York. Lá, morei na residência da família Lord, que tinha um filho da minha idade, o Steven, grande figura (que se tornaria um respeitável astrofísico), com quem até hoje me correspondo.

NY representou para mim um choque cultural imenso. Fiquei fascinado pela grandiosidade da urbe, pelo cosmopolitismo e convivência com pessoas de várias origens e etnias. No meu poema Táxi, há trechos em que expresso isso. A vida na escola de Huntington também foi culturalmente rica. Tive aulas de literatura americana, antropologia e até sobre Shakespeare, com filmes de suas peças e debates. Também naquele momento curti muitas bandas de rock e fui a muitos shows.

Voltei de cabelos nos ombros, roqueiro e descolado (para espanto da minha família e amigos), com a sensação de ter vivido um grande momento da música e das artes. O Festival de Woodstock, acontecido em 1969, ainda repercutia, e a cultura hippie se disseminava, juntamente com o movimento Black-power.

DMS - A sua estreia literária ocorreu em 1976, com o cordel A cidade e com o pseudônimo de Pedro Gaia. Como foi essa gestação inaugural e o porquê dessa máscara sobre os seus próprios versos?

AE - Coisa curiosa: depois de ter tido a experiência multicultural de Nova York e da escola em Huntington, passei a pesquisar e a querer conhecer melhor a cultura popular da minha terra.

Já aluno de Letras da UFC, empreendi várias viagens a algumas cidades do interior, acompanhado de alguns amigos (entre eles, o poeta, pesquisador e dramaturgo Oswald Barroso) principalmente a cidades de Juazeiro do Norte e Canindé, tradicionais centros de cultura popular e religiosa. Também tinha em mente o conselho de meu pai, segundo o qual um intelectual ou artista não pode se dissociar da realidade social e dos valores da sua região.

Foi o que fiz. Ao publicar o folheto A cidade, que reunia poemas sobre a origem e construção de Fortaleza, em versos livres, e não em moldes de cordel, sob o pseudônimo de Pedro (nome popular) Gaia (mãe-terra, na mitologia grega), quis conciliar aspectos do interior e da capital, o popular e o erudito. Creio, porém, que essa conciliação só alcançaria um resultado razoável no livro Fala, favela (com personagens que vêm do sertão para Fortaleza) e em alguns trechos do Táxi, quando o eu lírico passa pelo Cariri e pede a bênção ao meu Padim...

DMS - Você foi professor da Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e da Universidade Federal do Ceará (UFC). Ambiências intelectuais refinadas, que preservaram em seus quadros de professores, mestres e escritores como Moreira Campos, Artur Eduardo Benevides e Sânzio de Azevedo. Conte-me sobre a sua vivência com essa gente de proa.

AE - Valeu-me demais a convivência com tais mestres, sobretudo com o Moreira Campos, que era meu tio afim. Com ele, aprendi muitíssimo não só no ambiente universitário mas também no familiar. Meus primeiros poemas, aliás, costumava mostrar a ele, para que fizesse a leitura crítica. Admirável mestre, como escritor (um dos maiores contistas do país) e como pessoa humana, generoso e educado. Sem falar que era um grande causeur.

Pessoalmente convivi pouco com o Artur, excelente conferencista e poeta, no quadro da geração de 45. Ele funcionou, porém, para mim como oposição ao ideário poético da sua geração. Quanto ao Sânzio, continua meu mestre ainda hoje, não só em relação à história da literatura cearense e do Simbolismo brasileiro, mas também a aspectos técnicos da versificação, autor que é do primoroso Para uma teoria do verso. Tiro dúvidas com ele e com frequência conversamos ao telefone.

DMS - Sua segunda publicação foi Fala, favela (1979), que causou impacto no círculo cearense e se tornou espetáculo teatral. Em que circunstância social esses poemas foram escritos?

AE - O poema resultou de uma grave e dramática questão social, ocorrida em Fortaleza, em 1979, quando uma comunidade de favelados (chamada José Bastos) recebeu uma ordem judicial de despejo. Os moradores lançaram um manifesto, denunciando a situação e trataram de organizar uma resistência. O resultado final foi a saída deles à base da violência, com policiais agredindo moradores e máquinas derrubando os casebres.

Percebi ali um drama social concreto e tratei de escrever alguns poemas. De repente um poema foi puxando outro. Vozes de alguns personagens se somaram à voz lírica do poeta, tornando-se este também um personagem na cena de expulsão.

Quando mostrei o conjunto dos textos (cerca de 30) ao diretor José Carlos Matos, ele de imediato se dispôs a montar os poemas. Curioso é que eu havia mostrado também ao Affonso Romano de Sant’Anna, que me chamou a atenção para o aspecto dramático-teatral do Fala, favela. Ele acabou, aliás, por escrever um posfácio à primeira edição, feita em Fortaleza.

A estreia, no dia 6 de dezembro de 1980, foi um sucesso, graças à direção e ao excelente desempenho dos atores. Também contribuiu para tanto o compositor Calé Alencar, que musicou alguns poemas. Passou vários meses em cartaz no Teatro Universitário. O livro sairia no ano seguinte.

Considero efetivamente o meu primeiro livro. Já foi traduzido para o francês e no ano passado tomei conhecimento de um belo ensaio da professora Anne-Marie Pascal, da Universidade de Lyon, denominado “L’épopée das sans-logis: Fala, favela d’Adriano Espínola”, publicado em livro, em Paris, em 2012. 






DMS - O lote clandestino (1982) veio a lume em mimeógrafo, assim como a sua primeira peça de ensaio intitulada Comunicação. Linguagem. Semiótica. (1982). Qual o contexto da Geração Mimeógrafo no Ceará? Você teve participação ideológica nesse movimento literário?

AE - Não creio que tenha havido uma geração mimeógrafo em Fortaleza. Naquela época (final dos anos 70 e início dos 80), recebia quase todos os dias pequenos livros de poesia e ficção, de feitio artesanal, principalmente vindos do Rio e de São Paulo, mas também de Brasília (Nilto Maciel e Nicolas Behr). Acompanhava assim aquele movimento todo. Era a linguagem e a produção (editorial) da minha geração.

Depois da experiência do Fala, favela, de tom grave, dramático, com bastante apuro formal, lancei-me a escrever os poemas de O lote clandestino em um tom mais direto, solto, de registro coloquial e irônico, para agora expressar, através da voz lírica, o cotidiano de uma grande cidade, e a luta das pessoas pela sobrevivência. A edição simples, em mimeógrafo, combinava com essa atitude.

Colocava-me no livro, porém, frontalmente contra a tradicional agri/cultura literária, que ora predominava no Ceará, voltada para o campo, o sertão. Fortaleza já era então uma metrópole. Lancei, por isso mesmo, literalmente o livro no centro de Fortaleza, no alto de um edifício da Praça do Ferreira. Foi a primeira chuva de poesia da cidade. O fato repercutiu na mídia não só local, mas nacional, com matéria no jornal do meio-dia da TV Globo.

O livrinho chegou a ganhar apreciação crítica do temido Wilson Martins, no JB, que elogiou, mas também o criticou (não poderia ter sido melhor). No mesmo JB, Pedro Lyra faria uma ótima resenha, destacando a “dicção original” dos poemas de O lote clandestino.

DMS - Trapézio (1985) difere bastante do seu estilo, pois é um livro de haicais e de tankas, embora os temas sol, mar e ventania percorram as composições. O que o levou a escrever na linguagem de Bashô?

AE - Eu o escrevi até por contraste aos dois livros anteriores de temática fortemente social e urbana. Tinha compreendido, desde aquele instante, que a contradição em poesia soma, enriquece. Ao contrário de outras atividades do espírito, em que a contradição se torna comprometedora (discursos de políticos, filósofos, cientistas etc.), a poesia parece ter esta vantagem: quanto mais plural e/ou antitética, melhor. (Murilo Mendes já falava que o poeta era um “conciliador dos contrários”).

Escrever haicais (composto de 3 versos de cinco, sete e cinco sílabas) e tankas (1 haicai + 2 versos de sete silabas) exigiu-me observação da natureza e alto poder de síntese. O flagrante de um momento único. Difícil à beça.

Meu desafio foi também incorporar a essa forma rigorosa e estrangeira temas locais. Dou um pequeno exemplo de haicai (“Pipas no ar. Estio. / Alguém na praia sustém / o sol por um fio.”) e de tanka (“Verde mar bravio. / As dunas brancas e nuas / se movem no cio. /Chega à noite a maré cheia,/cobrindo-as de espuma e areia.”).

DMS - Táxi ou poema de amor passageiro (1986) é um clássico da poesia brasileira da segunda metade do século XX. Trata-se de um poema único escrito com a mesma vitalidade de Poema Sujo (1976) do maranhense Ferreira Gullar. Qual é a sensação de se saber testemunha de uma época?

AE - Novamente operei por contraste. Depois da contenção e da temática da natureza no Trapézio, voltei-me para uma poética expansiva, narrativa, em uma imaginária viagem de táxi por dentro da cidade e da memória, ao lado da mulher amada. Mas não houve cálculo nisso; o que seria um poema de poucas páginas acabou ganhando velocidade no tempo e no espaço (as várias temporalidades e cidades por onde andei).

A criação do poema foi para mim mesmo surpreendente. Depois de publicado pela editora Global (SP,1986), mais surpreendente foi a receptividade do público e da crítica. No mesmo ano, tornou-se objeto de estudo em um curso de mestrado da UFRJ e foi levado para os Estados Unidos pelo professor e brazilianist Charles A. Perrone, que o traduziria com muita competência, conseguindo até que fosse publicado, alguns anos depois, pela Garland Publisher, em Nova York e em Londres, fazendo parte da importante coleção World Literature in Translation.

Ainda em 1986, o poeta concretista Décio Pignatari me convidou para uma entrevista em um programa da Rádio Cultura que ele comandava, em São Paulo. Ele faria o texto de orelha da segunda edição (Em trânsito: Táxi/Metrô), publicada pela Topbooks (RJ).

No poema, não tive intenção em testemunhar uma época; simplesmente aconteceu, ao narrar com intensidade aquilo que vivenciei/experimentei, senti e pensei de forma próxima e direta, em viagem pelas ruas de algumas cidades do país e do exterior, a caminho da Praia do Futuro...

DMS - Você considera o poema Táxi ou poema de amor passageiro a sua obra-prima?

AE - Não sei. Essa avaliação é sempre feita pelos outros. Certamente trata-se do meu poema/livro mais conhecido, aqui e no exterior, até hoje. Recentemente, aliás, o grande poeta e crítico literário Antonio Carlos Secchin, com o peso da sua autoridade (é professor titular e emérito da UFRJ e membro da ACL, além de autor de várias e importantes obras) o escolheu como um dos cinco poemas essenciais da poesia brasileira. Isso me deixou muito honrado e feliz.

DMS - Na sua concepção, principalmente nos poemas da antologia Escritos ao sol (2015), qual o seu melhor poema e por quê?

AE - Não saberia apontá-lo, mas posso dizer que um dos meus preferidos é “O poeta chega aos 50”. Pelo que tem de autobiográfico, bem como pelo entrecruzamento de personagens míticas locais e universais. Diria, ainda, que pelo ritmo e musicalidade obtidos e pela verdade dos versos finais: “sou um homem comum:/ carne e terra girantes do acaso, / cinquenta vezes em um”.

DMS - A claridade é uma tônica primorosa em seus versos. Somente um fortalezense arraigado como você, seria capaz de desvelar as imagens solares escondidas nas praias do Mucuripe e do Futuro. Os títulos das suas obras expressam bem isso: Beira-Sol (1997), Praia provisória (2006) e Escritos ao Sol (2015). Você julga ter encontrado a dicção pessoal?

AE - Como disse na primeira resposta, boa parte da minha infância e juventude se passou pelas praias de Iracema, Meireles e Mucuripe. A intensidade da luz solar sobre a cabeça e a pele, o verdiazul do mar e o cheiro da maresia trago ainda hoje comigo na alma e na memória. De alguma maneira tentei expressar essas sensações nos versos e poemas dos livros citados acima.

Depois dos 20 anos, passei a frequentar a Praia do Futuro, que me deu o roteiro, por entre dunas e estrelas, para escrever alguns poemas de amor, entre os quais um que se chamaria Táxi. Se os poemas solares e praianos transcorrem sobretudo pelo eixo metafórico-mítico da linguagem, já os do Táxi e outros poemas urbanos vão pelo eixo metonímico-realista.

DMS - Tanto em Fala, favela, quanto em O lote clandestino, já estava evidenciada a temática do urbanismo em sua poesia. A experiência em Metrô ou viagem até a última estação possível (1992) é o ápice dessa atmosfera de conteúdo cosmopolita?

AE - Talvez, sim. Relendo-o agora, no preparo da minha Antologia 2, dei-me conta do desdobramento de muitas imagens e percepções da contemporaneidade urbana, em uma narrativa que se estende por cerca de 65 páginas, dividido em 40 passagens/estações. Talvez seja o meu poema mais complexo, ao percorrer por dentro e por fora a cidade do Rio, mas também algumas outras cidades, tais como Amsterdã, Paris, Grenoble (onde vivi), Berlim e Fortaleza. No plano literário e da imaginação, o “metrô” percorre alguns trilhos da tradição poética, arrebatando no percurso vários poetas e personagens literários, desde Hesíodo a Oswald, ou mesmo desde Ulisses a Clarice, por exemplo, como passageiros deste trem muito doido.

Mas trata-se fundamentalmente de um poema de amor. À minha mulher, Moema, e à cidade. Que ao longo da narrativa se entrecruzam simbolicamente, em termos de figuração afetiva e cognitiva. 




DMS - Você pertence a duas instituições de suma importância no cenário cultural do Rio de Janeiro: Academia Carioca de Letras (ACL) e PEN Clube do Brasil. O que o levou ao Rio e quais as suas principais convivências literárias?

AE - Cheguei ao Rio em 1986, para fazer curso de mestrado em Poética na UFRJ. Em 1994, retornei à mesma universidade para realizar doutorado em Literatura Brasileira, concluído em 99, ao defender tese sobre o poeta Gregório de Matos, sob a orientação do professor Antonio Carlos Secchin. Voltaria ao Rio, em 2003, já para dar aulas na Faculdade de Letras da UFRJ, durante quatro anos, como professor visitante, cedido pela UFC.

Depois de aposentado, fixei-me de vez na cidade, ingressando em seguida no PEN Clube e na ACL. Nesta, por sinal, encontro-me desde algum tempo como primeiro-secretário, ajudando, com os colegas da diretoria, a compor a programação cultural e os eventos da Casa. O ingresso nessas duas entidades culturais possibilitou-me conviver fraternalmente com escritores e intelectuais da minha admiração.

Não posso deixar de me referir também, nesse tempo, a uma outra Casa, que foi decisiva para a minha carreira como escritor, na cidade: a editora Topbooks, tendo à frente José Mario Pereira, que publicaria seis livros meus. Além de grande intelectual e homem sempre bem informado, tive lá a oportunidade de conviver com numerosos e importantes escritores do Rio.

DMS - Além de poesia, você escreve crônicas e ensaios literários, bem como recentemente, em 2009, fez-me conhecer também, o contista. Com um título curioso e singular, de que se abastece o livro Malindrânia?

AE - Cheguei a ter uma coluna de crônicas no jornal O Povo, em Fortaleza, de 1992 a 94; chamava-se “Zona”. Quanto aos ensaios, selecionei 18 deles para compor um livro sobre diversos escritores e obras, desde o século XVII ao XXI. Deverá sair no próximo ano, espero. (Diga-se de passagem, que o ano cultural/literário, devido à pandemia, terminou em março passado).

No que se refere às narrativas de Malindrânia, adianto que nele reuni alguns contos e pequenos relatos próximos do que seriam poemas em prosa. O título foi retirado do romance Dom Quixote. Refere-se à ilha em que o cavaleiro Dom Quixote de la Mancha vence na imaginação o gigante Caraculiambro e conquista a sua amada Dulcineia. Conquista imaginária de um espaço imaginário. Assim seria a própria literatura.

Trata-se, pois, de uma metáfora, em que se busca conquistar um território e o amor. Os relatos de Malindrânia, quase todos, têm algo a ver com isso: neles germinam grãos da loucura, do sonho e da realidade, imbricados e indissociáveis, em personagens que deambulam por entre ruas e praças da cidade.

DMS - Você é um notável pesquisador da vida e da obra de dois seminais artistas nordestinos: Gregório de Matos e Sousândrade. Qual a importância desses nomes para a poesia brasileira?

AE - Como você bem disse, são dois poetas seminais. Poderíamos falar muito sobre eles. Direi, em síntese, que o baiano Gregório de Matos (1636-1695?) foi o nosso primeiro grande poeta. Escritor polêmico, prismático e problemático. Polêmico, porque ainda hoje se discute a sua originalidade; prismático, por exibir uma produção multifacetada: lírica, erótica, religiosa, satírica e encomiástica; por fim, problemático, porque na sua poesia palpitam dúvidas autorais e textuais de difícil resolução. Sua obra é apógrafa e não autógrafa: o poeta nunca se preocupou em reunir seus poemas em livro com seu nome.

GM era um poeta de índole dramática, como procuro mostrar na minha tese, As artes de enganar: um estudo das máscaras poéticas e biográficas de Gregório de Matos (RJ, 2000). Teria inventado até o seu próprio biógrafo, o licenciado Manuel Pereira Rabelo. Considero igualmente o verdadeiro fundador em negativo (com a sua voz satírica e graciosa) da pátria brasileira. Seus poemas são verdadeiros documentos/crônicas de época colonial (o Brasil/Bahia seiscentista), na sua heterogeneidade racial, social e econômica.

Sousândrade (1832-1902) foi outra figura genial, igualmente polêmica. Com o seu O Guesa (1887?), longo poema narrativo composto de 13 cantos, abalaria o edifício romântico, de teor sentimental e linguagem transparente. Só reconhecido plenamente, nos anos 1960, pelos irmãos Campos (ver Re-visão de Sousândrade), é sobretudo no Canto X (“O inferno de Wall Street”) que o poeta maranhense esbanja criatividade e originalidade, à base de múltiplos recursos vocabulares, sintáticos e estilísticos, a serviço de uma visão irônico-crítica do mundo capitalista.

Tanto o baiano quanto o maranhense representam sem dúvida os principais casos da poesia brasileira. Por isso mesmo, senti-me desafiado a conhecê-los melhor.

DMS - Sua poesia foi traduzida e publicada no exterior, em língua inglesa e francesa. Qual foi a recepção dos seus livros em países como Estados Unidos, Inglaterra e França?

AE - Claro que fiquei feliz com a tradução e publicação de meus livros lá fora. Mas não tenho ilusão. Eles se encontram somente nas bibliotecas públicas e/ou universitárias ou são estudados nos departamentos de Letras, nos setores de língua portuguesa e espanhola. Dificilmente um livro de poesia de um autor latinoamericano alcança o público desses países. (Talvez um Borges, talvez um Neruda, talvez um Paz: exceções, pela grandeza desses poetas, que confirmam a regra).

DMS - Você é um dos nossos grandes poetas, da mesma estatura vocacionada dos seus conterrâneos Francisco Carvalho, José Alcides Pinto e Gerardo Mello Mourão, além do extraordinário amazônida Jorge Tufic, que morou muitos anos em Fortaleza. Poesia é um dom?

AE - Antes de responder à sua pergunta, deixe-me dizer que sintome feliz ao lado de poetas tão queridos e admirados. Todos eles foram meus amigos e mestres. Convivi muito com o Zé Alcides, figura extraordinária, criativo e multifacetado, de temperamento inquieto e divertido; Chico Carvalho, mais retraído, sério, era, porém, uma verdadeira mina de versos e imagens faiscantes; Gerardo, talento imenso, homem culto e poliglota, sabia reinventar e fundir a viola do cantador nordestino à lira dos aedos gregos, enquanto o Tufic recontava como ninguém os mitos e visões amazônicos, em terras cearenses, através de versos encantatórios. Minha homenagem aqui a esses grandes poetas, para os quais tiro o chapéu.

Poesia é um dom? pergunta-me você. Certamente. Mas esse dom (vocação, inclinação ou habilidade) precisa ser aprimorado, desenvolvido. À base de muitas leituras, trabalho e tentativas. Isso é um tanto quanto óbvio, mas vá lá. Assim como nas outras artes, o dom da pintura, da música, do canto, etc., tem que ser cultivado pelo sujeito. Para T.S. Eliot, poeta é o camarada que tem um domínio extraordinário da linguagem e uma visão extraordinária da realidade. Isso me parece válido tanto para um poeta popular quanto para um erudito. Patativa do Assaré e Drummond, por exemplo.

DMS - Qual o seu conceito acerca da poesia?

AE - Ao lançar, em 1984, o livro de haicais, Trapézio, afirmei, na nota biográfica, que poesia é linguagem em estado de aventura. Nunca me afastei dessa assertiva. Hoje, talvez acrescentasse, puxando alguns fios prateados da barba, que essa aventura não é somente da linguagem, mas da própria existência humana nela refletida, a um só tempo fascinante e trágica. 



Diego Mendes Sousa e Adriano Espínola, em 2019, na sede do PEN Clube do Brasil, no Rio de Janeiro, durante Roda de Leituras promovida pela Casa. 














ENTREVISTA COM O POETA ADRIANO ESPÍNOLA ENTREVISTA COM O POETA ADRIANO ESPÍNOLA Reviewed by Natanael Lima Jr on 23:43 Rating: 5

7 comentários

  1. Magnífica, sintética e bem conduzida entrevista de Diego Mendes Sousa a Adriano Espínola.

    Um verdadeiro passeio pelos caminhos da Literatura praticada por Adriano nos conturbados anos 1970/80/90.

    Some-se a isso uma agradável aula sobre poesia, fazer poético,inspiração e memorialismo, o resultado final não poderia ser outro: um bate-papo apetitoso, que teve os auxílios luxuosos de Sânzio de Azevedo, Moreira Campos, Artur Eduardo Benevides, José Alcides Pinto, Francisco Carvalho e Gerardo Mello Mourão,dentre outros.
    Congratulações.

    Túlio Monteiro - Escritor, poeta, historiador e com orgulho ex-aluno de Adriano Espínola no Curso de Letras da Universidade Federal do Ceará.
    Fortaleza,Ceará, 24 de maio de 2020.

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  2. Caro Túlio Monteiro,

    Obrigado pela vasta leitura!

    Meu abraço,

    Diego Mendes Sousa

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  3. Bela entrevista, Adriano. Parabéns, Diego.

    Natalício Barroso

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    1. Prezado Natalício Barroso,

      Viva! Muito obrigado!

      Grande abraço,

      Diego Mendes Sousa

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  4. Parabéns ao Diogo Sousa. Os questionamentos sobre a vida e a construção poetica do bardo Adriano Espínola - foram precisos. Ressalto aqui, para todos àqueles que se interessam por literatura e/ou poesia "ourifera" brasileira -terão a obrigatoriedade de "pousar" o olhar nessa entrevista. E, por fim,como leitor privilegiado, aplaudo a contudente e perene poesia viva de AE.

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  5. Excelente entrevista com o talentoso poeta Adriano Espínola. Parabéns!

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    Respostas
    1. Sérgio Caldieri,

      Obrigado pela leitura! Grande abraço,

      Diego Mendes Sousa

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