ENTREVISTA COM O ESCRITOR JOÃO ALMINO
Por Diego
Mendes Sousa
“(...) há duas
razões principais para situar histórias em Brasília,
a primeira é que é uma cidade como nenhuma outra; a segunda é que é uma cidade
como qualquer outra, onde existem angústias, desesperos, tristezas, desgraças,
ódios, tragédias, alegrias, esperanças, êxtase, amor, enfim todas essas emoções
com que se constroem as ficções.”.
João
Almino de Souza Filho,
o benjamim de uma família de sete irmãos e alfabetizado em casa, cujo genitor
era leitor de José Lins do Rego (1901-1957) e de José Américo de Almeida
(1887-1980), chega aos seus setenta anos de vida neste ano de 2020.
Nascido em 1950, o Escritor João Almino, Embaixador e Imortal da
Academia Brasileira de Letras (ABL), autor de sete fecundos romances, pioneiro
na elevação de Brasília, Capital Federal, como urbe literária, conversa com o
poeta piauiense Diego Mendes Sousa,
em entrevista exclusiva para o Domingo
com Poesia, sobre a sua história pessoal, intelectual e diplomática.
João
Almino
é autor das narrativas de Ideias para
onde passar o fim do mundo (1987), Samba-Enredo
(1994), As cinco estações do amor
(2001), Livro das emoções (2008), Cidade livre (2010), Enigmas da primavera (2015), Entre facas, algodão (2017). Seus
romances ganharam versões em inglês, francês, italiano e espanhol. Dentre os
diversos prêmios, foi galardoado com o Casa de las Américas de Cuba.
Cidadão do mundo, João Almino é um cultuado ensaísta de Literatura, além de um
teórico da filosofia, da política e da história, com pensamentos sobre Utopia,
Autoritarismo e Democracia, tendo publicações seminais nos temas, como em Os democratas autoritários (1980), Era uma vez uma constituinte (1985), 500 anos de utopia (2017) e Dois ensaios sobre utopia (2017).
Morou
em outros países, como Estados Unidos, México, França, Inglaterra, Portugal,
Espanha e atualmente, reside no Equador, onde exerce a função de Embaixador do
Brasil.
Andarilho, o seu olhar sobre a
estética literária possui contornos singulares. É detentor de um estilo
próprio, que prima pela formalidade estrutural do romance, a pontuar o tempo e
as imagens de maneira proustiana, com verossimilhança e com a força técnica das
mais esmeradas palavras.
Sua linguagem é fotográfica,
cinematográfica e tecnológica. Suas personagens são também ciganas e
emblemáticas, transportadas de um romance a outro, sempre com novas razões, a
propósito de Paulo Antônio Fernandes e de Berta.
João
Almino
é um mestre da narrativa, apurado, brilhante e definitivo, o que torna o seu
universo ficcional encantador.
Neste diálogo com João Almino, conheceremos um escritor de inteligência privilegiada,
que teve a oportunidade de ser amigo dos excepcionais criadores Octavio Paz e Álvaro Mutis, bem como de ser discípulo de Foucault, Barthes, Bourdieu e Claude Lefort.
Professor visitante de literatura em
Universidades importantes como Berkeley, Chicago e Stanford, João Almino ainda nos ensina que “a relação do homem com o tempo é algo que
perpassa todas as narrativas como uma obsessão, sob a forma das camadas de
história, do presente ou do instante ou ainda do apagamento ou da recuperação
da memória.”.
(O Embaixador João Almino foi
recepcionado, na Academia Brasileira de Letras, pela Escritora carioca Ana
Maria Machado).
Diego
Mendes Sousa – João Almino, nordestino, um potiguar de Mossoró! Conte-me um
pouco da sua infância sob as bênçãos de Santa Luzia, padroeira da sua casa
natalícia.
João
Almino -
Bem lembrada a festa de Santa Luzia, em dezembro. Em uma das paredes de minha
casa havia uma imagem da santa segurando um prato no qual se viam dois olhos.
Um tanto inquietante.
Morei em Mossoró, até os doze anos, na
Rua Dionísio Filgueiras e em uma casa onde eu e todos os sete filhos de Natália
e João nascemos. O mais velho, José, morreu antes de completar um ano. Sou o
mais novo. Minha irmã de idade mais próxima, Maria José, também já morreu. Os
demais, meu irmão mais velho, Pedro, e três irmãs, Salete, Fátima e Bernadete,
vivem atualmente em Fortaleza. Durante minha infância, a rua era tranquila e, à
exceção de um grupo escolar, inteiramente residencial. Eu brincava nas calçadas
ou nos terreiros das casas com os amigos. Brincadeiras de bola de gude, de
financistas trocando notas de carteira de cigarro Continental ou Hollywood. No
final da tarde, as brincadeiras envolviam também as meninas, cantigas de roda,
berlinda. Com os primos e primas, havia lutas de faroeste ou batizados de
bonecas. O grupo escolar naquela nossa rua foi o primeiro em que estudei. Uma
escola pública. Resisti a ir para a escola. Assim entrei já no segundo ano, e
minha primeira professora foi minha irmã mais velha, Salete, que já havia me
ensinado a ler e escrever em casa. Depois fui transferido para uma escola
particular, para onde eu caminhava a pé. Uma única sala, onde Dona Maria
Clotilde colocava todos os alunos do primário, do primeiro ao quinto ano.
DMS
- Aos 12 anos de idade, você ficou órfão de pai e a sua família migrou do Rio
Grande do Norte para o Ceará. Qual a representatividade da presença paterna em
sua vida?
JA
- A
meu pai, João Almino de Souza, devo o meu nome e o amor pelos livros. Nunca
frequentou escola, foi autodidata, mas lia muito, sobretudo histórias de santos
e livros de história do Brasil e universal. Tinha uma pequena biblioteca na
qual encontrei alguns romances de escritores regionalistas nordestinos.
Elogiava minhas primeiras tentativas de escrever um livro, ou seja, os garranchos
que eu fazia em um caderno de escola. E assim foi quem primeiro me incentivou a
escrever.
DMS
- A terra de José de Alencar é considerada berço de grandes escritores. Ter
residido lá lhe inspirou a carreira literária?
JA
-
Não diretamente, mas tudo que a gente vive de alguma forma pode se transformar
em experiência literária, no meu caso não através de uma transposição direta,
porque continuo preferindo a ficção à autoficção. Em Fortaleza passei minha
adolescência, período sempre muito marcante na vida de cada um. Morando e
estudando no Ceará, e já que você cita José de Alencar, foi obrigatório entre
os treze e os dezesseis anos ler praticamente todos os seus romances. Eu fazia
resumos e espécies de resenhas de cada um deles. Confesso que mais do que
Iracema, cuja poesia vim a apreciar, ou o Guarani, me encantava a leitura do
divertido A pata da gazela, de Senhora ou de Lucíola. Mais até do que
Fortaleza, o sertão do Ceará me marcou muito. Ainda quando morávamos em
Mossoró, os períodos de férias passávamos sempre no Benfica, fazenda de meu avô
onde mamãe tinha nascido e crescido. Ficava perto do Bom Jardim, depois
Potiretama, de Ereré e de Iracema. É uma região sertaneja do Ceará próxima aos
limites do Rio Grande do Norte e da Paraíba. Meu pai era potiguar, de Pau dos
Ferros.
DMS
- Você se formou em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(UERJ). Como foi esse percurso de Fortaleza para o Rio?
JA
- Na
época não havia concurso para o Instituto Rio Branco em Fortaleza. Então me
aventurei. Decidi ir para o Rio com a ideia de me submeter ao concurso para a
carreira diplomática. Não conhecia ninguém no Rio. Mas, como em Fortaleza era
diretor de cursos e dava aulas de inglês no Instituto de idiomas Yázigi,
consegui chegar ao Rio com um emprego na sede da Avenida Rio Branco daquele
Instituto. Tinha também o dinheiro ganho em um concurso nacional sobre direito
de autor e da venda um sítio, a Santa Maria, nos arredores de Mossoró e herdada
de papai.
DMS
– Seu Mestrado é em Sociologia, pela Universidade de Brasília (UnB). A mudança
do Rio de Janeiro para Brasília foi motivada pela carreira diplomática?
Conte-me sobre a sua pioneira visita ao Planalto Central e sobre as suas
andanças pelo mundo.
JA
- Minha mudança para Brasília se deu depois que concluí o Rio Branco no Rio, já
para começar a trabalhar no Itamaraty. Mas havia estado em Brasília alguns anos
antes. Uma irmã, Salete, justamente a que foi minha primeira professora, então
morava lá, com o marido, funcionário do Ministério da Agricultura. Naquela
breve passagem por Brasília escrevi dois contos, que nunca foram publicados
porém inspiraram personagens de meu primeiro romance.
De
Brasília segui para Paris, em uma época de intensa efervescência cultural.
Depois Beirute em plena guerra civil. No México tive o privilégio de manter
contato com um círculo muito interessante de escritores (Octavio Paz, Álvaro Mutis, Enrique Fierro, Ida Vitale, Alberto Ruy
Sanchez e tantos outros). Um capítulo do que viria a ser meu primeiro
romance foi publicado na revista Vuelta, antes, portanto, de que fosse
publicado no Brasil. A lista é longa: Washington, Lisboa, Londres, Miami,
Chicago, Madri. Em San Francisco fui quase vizinho do poeta Michael Palmer, com quem colaborei em
alguns projetos. Destaco que me deu muita satisfação ser professor visitante de
literatura em Stanford, Berkeley e na Universidade de Chicago.
DMS
- As suas primeiras dicções ficcionais frutificaram à beira do Sena. Como foi
essa sua vivência nessa ambiência?
JA - Foi
um período rico em muitos aspectos. Vinha escrevendo um romance, que tardou a
ser concluído, mas teve partes escritas em Paris. Também foi uma época de
intensa atividade intelectual. Tive a oportunidade de frequentar cursos de
grandes mestres, como Foucault, Barthes e Bourdieu. Mas sobretudo me aproximei do filósofo Claude Lefort, que foi meu orientador
de tese. E em Paris conheci minha mulher, a artista plástica Bia Wouk, e com
ela tenho duas filhas, Letícia Wouk Almino, arquiteta, e Elisa Wouk Almino,
escritora, tradutora e editora.
DMS – Em 1987, veio a lume o seu romance de estreia
“Ideias para onde passar o fim do mundo”,
texto inovador e musical, que inaugurou, historicamente, a fundação de Brasília
através da ficção. Por que Brasília?
JA - De
fato Brasília aparece em meus sete romances, até mesmo no mais recente, Entre
facas, algodão. Há muitas razões para isso. Foi a cidade onde morei por mais
tempo. E criança, ainda em Mossoró, acompanhei a saga de sua construção e ouvi
pelo rádio os discursos de sua inauguração. Mais adiante, quando comecei a
publicar ficção, Brasília me atraiu como palco e personagem por ser território
relativamente pouco explorado pela literatura (hoje em dia já não mais) e por
uma série de razões simbólicas. Entre estas, o fato de que a ideia de Brasília
havia acompanhado toda a história do Brasil independente. Já José Bonifácio,
antes mesmo da independência, em 1821, sugeria “Brasília” como um dos nomes
possíveis da “cidade central no interior do Brasil para assento da Corte ou da
Regência” e Machado de Assis, nosso maior escritor, comentava ainda no século
dezenove a mudança da capital. Como era uma cidade de cruzamentos, um Brasil de
Brasis, eu poderia trazer para ali personagens de vários lugares, entre os
quais do Nordeste onde nasci e cresci. Um contraste que sempre me fascinou e
explorei na minha literatura é aquele entre o projeto racional e a
irracionalidade espontânea, presente por exemplo na proliferação de seitas
místicas. Como morei em várias cidades no exterior (hoje somam doze), quis ter
um único ponto de referência espacial para meus romances e que ele fosse no
Brasil. Até hoje há quem ache que Brasília se presta pouco para a literatura.
Que é apenas a cidade do poder. Que uma história que se passe em Brasília se
limita aos porões do Congresso ou ao dia-a-dia da burocracia. Uma vez disse o
seguinte: há duas razões principais para situar histórias em Brasília, a
primeira é que é uma cidade como nenhuma outra; a segunda é que é uma cidade
como qualquer outra, onde existem angústias, desesperos, tristezas, desgraças,
ódios, tragédias, alegrias, esperanças, êxtase, amor, enfim todas essas emoções
com que se constroem as ficções.
DMS - Depois de “Ideias
para onde passar o fim do mundo”, veio o quarteto de obras em que a tônica
literária Brasília é intensificada. Quais os retratos, os temas e o signos
narrativos desses romances?
JA - São
muito diferentes um do outro, mas existe um universo ficcional próprio que
tentei criar para esses romances. Alguns personagens migraram de um livro para
o outro, sendo vistos de ângulos ou a partir de momentos distintos. Em vários
dos romances, existe um diálogo entre a linguagem literária e outras
linguagens, a fotografia, o cinema, o computador, o blog. A relação do homem
com o tempo é algo que perpassa todas as narrativas como uma obsessão, sob a
forma das camadas de história, do presente ou do instante ou ainda do
apagamento ou da recuperação da memória.
DMS – Seu estilo é sofisticado, fluente e aberto. “Enigmas da primavera” (2015) pode ser
considerada a sua obra-prima?
JA - Deixo
para os críticos decidir, se é que existe alguma. Isso foi dito a respeito de
Cidade Livre. E recentemente, pelo crítico Hans Gumbrecht, a respeito de Entre
facas, algodão.
DMS – Em que contexto foi escrito “Entre facas, algodão” (2017)? Há nele
fragmentos de uma infância reencontrada? Você foge da autobiografia, mas sempre
ficam as centelhas de algo perdido...
JA - A ideia era
não escrever a clássica história da volta às raízes. O personagem faz uma
viagem no tempo e no espaço procurando essa volta ao passado, mas esse passado
vai sendo redescoberto ao longo da viagem. Seu presente vai lhe trazendo
surpresas, e seu futuro vai sendo reescrito. A viagem é sempre e só de ida.
DMS - Atualmente, você é Embaixador do Brasil no
Equador. Vive em Quito, cidade conhecida como la mitad del mundo e onde João
Cabral de Melo Neto também serviu. O poeta pernambucano exerceu alguma
influência sobre o homem e sobre o escritor João Almino?
JA - Desde
adolescente sou leitor de João Cabral. Ele e Graciliano Ramos são os dois
escritores nordestinos que mais li e reli, principalmente porque sempre admirei
a força das linguagens que empregaram, com economia de palavras. O estilo da
secura. No ano 2000 escrevi um longo ensaio sobre João Cabral, fazendo uma
leitura de sua poética de “A pedra do sono” até “A educação pela pedra.”
Recentemente, quando vim para Quito, me interessei particularmente por seus
poemas equatorianos. Em geral, quando se pensa em associar a obra de João
Cabral a lugares, com razão vem à mente imediatamente Pernambuco, sobretudo
Recife, e a Andaluzia, especialmente Sevilha. No entanto, esses poemas
equatorianos têm força e qualidade à altura de sua obra, contendo várias de
suas características essenciais, como são a ausência de retórica e a imagem
concreta, mineral, da palavra.
DMS - Aprecio o seu olhar fotográfico ante o mundo.
A fotografia imprime visões simbólicas sobre os seus romances? De onde vem o insight para a arte da fotografia?
JA - Desde
adolescente tenho me interessado pela fotografia. Cheguei a fazer algumas
exposições e a publicar um livro de fotos. Talvez por essa razão exista uma
visualidade nítida em meus romances ou pelo menos em passagens deles. Um dos
romances, O livro das emoções, é
escrito através da lembrança que um fotógrafo que ficou cego tem de fotografias
que para ele têm uma alta carga emocional. O leitor, ao “ler” as fotografias,
que nunca vê, poderá compor as peças do romance.
DMS – Você foi eleito em 2017 para a Academia
Brasileira de Letras (ABL). O que significa ser um Imortal em um país que pouca
importância dá a sua cultura?
JA - Acredito na
importância das instituições. E a Casa de Machado de Assis é, no âmbito da
cultura, uma longeva e sólida instituição brasileira, tendo recolhido as mais
distintas tradições, sendo portanto plural, nunca sectária e sempre mantendo
sua independência. Por essas razões tenho muita satisfação em contribuir, na
medida de minha capacidade, com seu papel histórico e cultural.
DMS - Além de um brilhante romancista, você é
também um conceituado pensador e ensaísta sobre utopia, autoritarismo e
democracia. O que ainda esperar do Brasil?
JA - O Brasil
surpreende para o bem e para o mal. Uma vez, ao escrever sobre Machado de Assis,
discorri sobre o “pessimismo como método”. Um pessimismo que não significa
abdicar de toda a esperança, mas apenas em ter capacidade de enxergar os lados
mais negros da realidade, os riscos, os possíveis precipícios. Melhor não
esperar nada e tentar contribuir para manter e aprofundar a democracia e para
que o futuro seja melhor.
(Diego Mendes Sousa e
João Almino, em 2018, alguns meses após a sua posse na Academia Brasileira de
Letras. Registro fotográfico em Brasília, geografia ficcional das suas obras,
especialmente Cidade Livre).
ENTREVISTA COM O ESCRITOR JOÃO ALMINO
Reviewed by Natanael Lima Jr
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