DEZ POEMAS ESSENCIAIS LUSO-BRASILEIROS – PARTE I
Por Natanael Lima Jr.
Arte: DCP
O DCP lançou um desafio a
dois notáveis intelectuais e mestres em literatura portuguesa e brasileira: José Rodrigues de Paiva e Antonio Carlos Secchin, para escolherem
“10 poemas essenciais luso-brasileiros”, sendo cinco poemas de autores portugueses
e cinco brasileiros. Em razão dos textos serem longos, dividiremos o post em
duas Partes: a primeira com os poemas portugueses, escolhidos por José
Rodrigues de Paiva. No próximo domingo será a vez dos poemas brasileiros, escolhidos
por Antonio Carlos Secchin. Boa leitura.
Os poemas escolhidos pelo escritor, poeta, mestre e doutor em Letras
pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com ênfase em Literatura
Portuguesa, José Rodrigues de Paiva foram:
“Os Lusiadas”, Luís de Camões; “O palácio da ventura”, Antero de
Quental; “Tatuagens complicadas do meu
peito”, Camilo Pessanha; “Tabacaria”,
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos; “Liberdade”,
Sophia de Mello Breyner Andresen.
Os Lusiadas
Luís de
Camões (1524-1580)
(Fragmentos)
Canto I
As armas e os Barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;
Canto
II
Já neste tempo o lúcido planeta
Que as horas vai do dia distinguindo,
Chegava à desejada e lenta meta,
A luz celeste às gentes encobrindo;
E da casa marítima secreta
Lhe estava o Deus Noturno a porta abrindo,
Quando as infidas gentes se chegaram
Às naus, que pouco havia que ancoraram.
Canto
III
Agora tu, Calíope, me ensina
O que contou ao Rei o ilustre Gama;
Inspira imortal canto e voz divina
Neste peito mortal, que tanto te ama.
Assi o claro inventor da Medicina,
De quem Orfeu pariste, ó linda dama,
Nunca por Dafne, Clície ou Leucote,
Te negue o amor devido, como soe.
Canto
IV
Despois de procelosa tempestade,
Nocturna sombra e sibilante vento,
Traz a manhã serena claridade,
Esperança de porto e salvamento;
Aparta o Sol a negra escuridade,
Removendo o temor ao pensamento:
Assi no Reino forte aconteceu
Despois que o Rei Fernando faleceu.
Canto
V
Estas sentenças tais o velho honrado
Vociferando estava, quando abrimos
As asas ao sereno e sossegado
Vento, e do porto amado nos partimos.
E, como é já no mar costume usado,
A vela desfraldando, o céu ferimos,
Dizendo: - “Boa viagem!”; logo o vento
Nos troncos fez o usado movimento.
Canto
VI
Não sabia em que modo festejasse
O Rei Pagão os fortes navegantes,
Pera que as amizades alcançasse
Do Rei Cristão, das gentes tão possantes.
Pesa-lhe que tão longe o aposentasse
Das europeias terras abundantes
A ventura, que não no fez vizinho
Donde Hércules ao mar abriu o caminho.
Canto
VII
Já se viam chegados junto à terra
Que desejada já de tantos fora,
Que entre as correntes Indicas se encerra
E o Ganges, que no céu terreno mora.
Ora sus, gente forte, que na guerra
Quereis levar a palma vencedora:
Já sois chegados, já tendes diante
A terra de riquezas abundante!
Canto
VIII
Na primeira figura se detinha
O Catual que vira estar pintada,
Que por divisa um ramo na mão tinha,
A barba branca, longa e penteada.
Quem era e por que causa lhe convinha
A divisa que tem na mão tomada?
Paulo responde, cuja voz discreta
O mauritano sábio lhe interpreta:
Canto
IX
Tiveram longamente na cidade,
Sem vender-se a fazenda os dois feitores,
Que os Infiéis, por manha e falsidade,
Fazem que não lha comprem mercadores;
Que todo seu propósito e vontade
Era deter ali os descobridores
Da Índia tanto tempo que viessem
De Meca as naus, que as suas desfizessem.
Canto
X
Mas já o claro amador da Larisseia
Adúltera inclinava os animais
Lá pera o grande lago que rodeia
Temistitão, nos fins Ocidentais;
O grande ardor do sol Favônio enfreia
Co’o sopro que, nos tanques naturais,
Encrespa a água serena, e despertava
Os lírios e jasmins, que a calma agrava,
O
palácio da ventura
Antero de Quental (1842-1891)
Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!
Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!
Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!
Abrem-se as portas d'ouro com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!
Tatuagens
complicadas do meu peito
Camilo Pessanha (1867-1926)
Tatuagens complicadas do meu peito:
Troféus, emblemas, dois leões alados...
Mais, entre corações engrinaldados,
Um enorme, soberbo, amor-perfeito...
E o meu brasão... Tem de oiro, num quartel
Vermelho, um lis; tem no outro uma donzela,
Em campo azul, de prata o corpo, aquela
Que é no meu braço como que um broquel.
Timbre: rompante, a megalomania...
Divisa: um ai, - que insiste noite e dia
Lembrando ruínas, sepulturas rasas...
Entre castelos serpes batalhantes,
E águias de negro, desfraldando as asas,
Que realça de oiro um colar de besantes!
Tabacaria
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos (1888-1935)
Não sou
nada.
Nunca serei
nada.
Não posso
querer ser nada.
À parte
isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do
meu quarto,
Do meu
quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se
soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o
mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma
rua inacessível a todos os pensamentos,
Real,
impossívelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o
mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte
a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o
Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje
vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje
lúcido, como se estivesse para morrer,
E não
tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma
despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira
de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro
da minha cabeça,
E uma
sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje
perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje
dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria
do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à
sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em
tudo.
Como não
fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A
aprendizagem que me deram,
Desci dela
pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao
campo com grandes propósitos.
Mas lá
encontrei só ervas e árvores,
E quando
havia gente era igual à outra.
Saio da
janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
Que sei eu
do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que
penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos
que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio?
Neste momento
Cem mil
cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a
história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá
senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não
creio em mim.
Em todos os
manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não
tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em
mim...
Em quantas
mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão
nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas
aspirações altas e nobres e lúcidas —
Sim,
verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —,
E quem sabe
se realizáveis,
Nunca verão
a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é
para quem nasce para o conquistar
E não para
quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado
mais que o que Napoleão fez.
Tenho
apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito
filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e
talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que
não more nela;
Serei sempre
o que não nasceu para isso;
Serei sempre
só o que tinha qualidades;
Serei
sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a
cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a
voz de Deus num poço tapado.
Crer em
mim? Não, nem em nada.
Derrame-me
a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol,
a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto
que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos
cardíacos das estrelas,
Conquistámos
todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas
acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos
e ele é alheio,
Saímos de
casa e ele é a terra inteira,
Mais o
sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come
chocolates, pequena;
Come
chocolates!
Olha que
não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as
religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come,
pequena suja, come!
Pudesse eu
comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu
penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo
para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao
menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia
rápida destes versos,
Pórtico
partido para o Impossível.
Mas ao
menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao
menos no gesto largo com que atiro
A roupa
suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em
casa sem camisa.
(Tu, que
consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa
grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia
romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa
de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa
do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote
célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei
quê moderno — não concebo bem o quê —,
Tudo isso,
seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração
é um balde despejado.
Como os que
invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo
e não encontro nada.
Chego à
janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as
lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os
entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os
cães que também existem,
E tudo isto
me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto
é estrangeiro, como tudo.)
Vivi,
estudei, amei, e até cri,
E hoje não
há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada
um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso:
talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é
possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez
tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é
rabo para aquém do lagarto remexidamente.
Fiz de mim
o que não soube,
E o que
podia fazer de mim não o fiz.
O dominó
que vesti era errado.
Conheceram-me
logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis
tirar a máscara,
Estava
pegada à cara.
Quando a
tirei e me vi ao espelho,
Já tinha
envelhecido.
Estava
bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora
a máscara e dormi no vestiário
Como um cão
tolerado pela gerência
Por ser
inofensivo
E vou
escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical
dos meus versos inúteis,
Quem me
dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não
ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando
aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete
em que um bêbado tropeça
Ou um
capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono
da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olhou-o com
o desconforto da cabeça mal voltada
E com o
desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá
e eu morrerei.
Ele deixará
a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa
altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de
certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua
em que foram escritos os versos.
Morrerá
depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros
satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará
fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma
coisa defronte da outra,
Sempre uma
coisa tão inútil como a outra,
Sempre o
impossível tão estúpido como o real,
Sempre o
mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto
ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um
homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a
realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me
enérgico, convencido, humano,
E vou
tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro
ao pensar em escrevê-los
E saboreio
no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo
como uma rota própria,
E gozo, num
momento sensitivo e competente,
A libertação
de todas as especulações
E a
consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois
deito-me para trás na cadeira
E continuo
fumando.
Enquanto o
Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu
casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez
fosse feliz.)
Visto isto,
levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem
saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah,
conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da
Tabacaria chegou à porta.)
Como por um
instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me
adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me
sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
Liberdade
Sophia de
Mello Breyner Andresen (1919-2004)
O poema é
A liberdade
Um poema
não se programa
Porém a
disciplina
— Sílaba
por sílaba —
O acompanha
Sílaba por
sílaba
O poema
emerge
— Como se
os deuses o dessem
O fazemos
DEZ POEMAS ESSENCIAIS LUSO-BRASILEIROS – PARTE I
Reviewed by Natanael Lima Jr
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02:28
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Parabéns ao Domingo com Poesia, na pessoa do poeta Natanael Lima! Parabéns ao nosso poeta/escritor José Rodrigues de Paiva pela excelente seleção dos poemas luso-brasileiros!Tentando fazer uma escolha, fico com TABACARIA de nosso Fernando Pessoa - pelo poder de chegar mais perto dos leitores, divulgando o melhor da poesia portuguesa! 3/5/2020
ResponderExcluirExcelentes as indicações do prof. José Rodrigues. Muito obg por sua amizade e consideração.
ExcluirUma seleção primorosa, sem dúvida, de grandes poetas.Obrigada, José Rodrigues de Paiva e obrigada Natanael.PARABÉNS ao DCP.
ResponderExcluirObg Lourdinha por tudo. Não perca a seleção de poemas brasileiros, que o mestre Antonio Carlos Secchin indicou para o próximo domingo. Abç e divulgue!
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