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A MEMÓRIA DO TEMPO, O ASTRO DO AMOR E O LASTRO DA SOLIDÃO EM GERALDO CARNEIRO


por Diego Mendes Sousa*






Capa: Reprodução /
Subúrbios da galáxia, de Geraldo Carneiro




Recentemente agraciado com o Grande Prêmio Cidade do Rio de Janeiro, concedido pela Academia Carioca de Letras (ACL), o poeta Geraldo Carneiro (1952-) tem assento literário em três valiosos temas universais: o tempo, o amor e a solidão.

A antologia Subúrbios da galáxia (Nova Fronteira, 2015), de Geraldo Carneiro, é uma obra virtuosa, com poemas extraídos dos atos completos da sua carreira que ultrapassam quatro décadas de dedicação às musas do tempo e às deusas do amor e da solidão.

Com reverência, Geraldo Carneiro foi edificando ao longo dos anos autênticas revelações sobre a sua tessitura artística: no dia em que cortaram minhas asas / eu descobri que nunca fui um anjo.

A originalidade do seu ritmo, a dosagem fragmentada e explosiva da ironia percorrem os meandros dos seus mais belos versos: o tempo é onde o mar com suas plumas / é onde um pássaro exposto ao sol / é onde um gesto uma lembrança uma palavra / é onde o rastro de todos os sóis / / se insurge contra a morte.

Identifico que Geraldo Carneiro traz em sua litania de espantos, a sabedoria desnorteada pelas visões da morte. O poeta alimenta o campo dos contrastes da existência, tecendo a vida, permanentemente, mas reconduzindo a morte para o centro da precariedade do humano: pensou que a vida fosse um jardim de audácias / audácia não era nome de flor.

A sombra da morte recanta o tempo, o amor e a solidão, em memória renascida das digressões do vate. Esse olhar mundano sobre os mistérios da galáxia e os subúrbios da palavra são antíteses no lirismo de Geraldo Carneiro, que se desbrava em fúria: nunca me perguntei qual é o sentido // da vida / a vida que se expande numa flor / a vida que se expõe e se dissipa / como tudo se dissipa nessa alucinação / chamada mundo. (...).

São maravilhosas as insânias devastadas pelo pulso vibratório das suas reflexões, que ressignificam as raízes ocultas do universo: o amor /desfaz /a noção/ do tempo. / o tempo/ desfaz/ a noção/ do amor.

Há uma simbiose que se traduz em desejo de horizonte, a ampliar os matizes da sua criação, repleta de voos e de iluminações preciosas: o tempo: / provável mar tecido como teia / que se pudesse navegar por dentro.

Geraldo Carneiro possui uma alma que se abisma desde o ventre, com suas perturbações necessárias ao rasgo de um astro que se dissemina em eternidade de passante, movimentadas também pelos vestígios solitários dos descaminhos da vida: só lida/ com sua sólida / solidão.

O bardo singra pelo porto dos sons a afinar a imensidão das voragens carcomidas pelo tempo, pelo amor e pela solidão. São dores que mistificam o ser, ou seja, reafirmam a poesia em sua altaneira aventura: os deuses tecem mantos de tristeza / para que não nos falte o que cantar.

Apesar de ter nascido em Minas Gerais, Geraldo Carneiro é um ilustre carioca. É de Millôr Fernandes o esclarecido depoimento: “Carioca de educada formação mineira, sucessor, enquanto mineiro, da geração de Otto Lara Rezende, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos, cronista como um, poeta como outro, culto e gozador da vida como os três. (...) Geraldo Carneiro, em qualquer atividade, é sempre poeta.”.

Que magnífico poeta é Geraldo Carneiro! Um mago da intuição e um metafísico da linguagem. Não à toa, tornou-se imortal da Academia Brasileira de Letras. Dos seus versos, ainda entoam os mistérios da vida: a vida é uma vida só / a vida é uma ávida / a vida é uma ave/ a vida é uma / só uma / só. 






*Diego Mendes Sousa é poeta piauiense e membro correspondente da Academia Carioca de Letras. Apreciador das divagações cintilantes de Geraldinho Carneiro.






Geraldo Carneiro é poeta e da ABL
Foto: Reprodução




POEMAS DE GERALDO CARNEIRO
ESCOLHIDOS POR DIEGO MENDES SOUSA




sobre o amor

amor é coisa que se faz a dois,
segredo consagrado por um Deus
à sua escolha, a árvore ou a folha
que se despede do país dos ventos
e que acomete esses seus pensamentos
só seus, só meus, só vossos, sempre nossos.
parece papo de carola, cara?
eu sei, tenho lá meu pedigree
católico apostólico carioca,
que fui lá nos confins da minha infância
e continuo em meu apostolado
ao lado da galera mais surtada,
que ainda crê na arte sendo vida
e vida convertida em vice-versa.
pois eu, se não existisse o tal do amor,
viveria exilado de mim mesmo.


Encyclopaedia VI

mulheres são alucinações do espírito
criadas para fomentar o espanto
arcanjas princesas do amor cortês
pandemônias amazonas messalinas
às vezes cospem flores pela boca
e borboletas pelas outras partes
frequentam sortilégios e sibilas
mas não confiam nas ficções do outro mundo
sempre sereias strip-teasers sherazades
prima-donas do mistério e do futuro
assim como as demais criaturas-fêmeas
igualmente dotadas de beneviolência


poesia épica

às vezes, inimigo de mim mesmo,
lanço-me às feras, queimo meus navios,
declaro guerra a Troia ou a Cartago,
e acabo sempre por amor vencido


futurologia

o futuro é o jardim dos impossíveis
o shangri-lá das paralelas da esperança
o céu onde revoa a ave vida
o rendez-vous das coisas nunca dantes
(onde florescem flores de utopia
e cada dia é sempre mais além).
futuro do pretérito é o contrário
é o sonho que seria se não fosse
o caos, certa palavra impronunciada,
o horror, os desenredos do amor,
e enfim, à falta de outra flor, a morte


à flor da língua

uma palavra não é uma flor
uma flor é seu perfume e seu emblema
o signo convertido em coisa-ímã
imanência em flor: inflorescência
uma flor é uma flor é uma flor
(de onde talvez decorra
o prestígio poético das flores
com seus latins latifoliados
na boca do botânico amador)
a palavra, não: é só florilégio
ficção pura, crime contra a natura
por exemplo, a palavra amor


belle de toujours

amei você por tantos anos-luz
por clandestinações talvez tramadas
por deuses, se é que há deuses no universo.
sei que nossos adeuses foram tantos
que não sei mais se foram cinco ou seis.
roubei de você o melhor dos meus versos,
me lembro dele como se ainda agora
tocasse a carnadura das palavras:
se fosse meu não lembraria assim.
passávamos as tardes e as manhãs
nos devorando nos jardins suspensos
do amor, quase sempre no Motel Havaí.
depois você partiu, foi se lançar
noutras esferas de um mundo maior.
guardo seu gosto aqui na minha boca
nas vãs arquiteturas do meu céu





Crédito: Cristina Granato. 

Antonio Carlos Secchin e Geraldo Carneiro na solenidade de entrega do Grande Prêmio Cidade do Rio de Janeiro, da Academia Carioca de Letras (ACL), ocorrida em 09 de março de 2020. 



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