RAIMUNDO CARRERO E A IDIOTICE DA MORTE
Quatro
anos após sofrer acidente vascular cerebral, escritor se transforma em
personagem para fazer "catarse da própria alma"
Raimundo Carrero
I Foto: Reprodução
JANEIRO DE 2015, BAIRRO DA BOA VISTA,
RECIFE, 84 QUILOS. Depois de fazer o sinal da cruz e
apanhar um táxi, desembarca na igreja Salesiano Sagrado Coração, frequentada
desde a infância. Com passos vagarosos e mancos, caminha em direção ao altar. O
homem de 67 anos é iluminado por raios de Sol filtrados por vitrais. Aparenta
mais idade. Senta em um dos bancos de madeira, contempla o lugar sagrado e reza
em silêncio. Dali a pouco, verbaliza as memórias reavivadas pela visita.
Padres, missas, estátuas. A fala comprometida e a dificuldade de locomoção são
sequelas de acidente vascular cerebral (AVC) sofrido há mais de quatro anos, e
até hoje tratadas com hidro e fisioterapia.
O infortúnio na saúde de Raimundo Carrero teria pouco impacto no
conjunto da sólida obra literária, não fosse a decisão de transformar o drama
pessoal em uma "catarse da própria alma". Pela primeira vez em quatro
décadas de carreira, o autor pernambucano se coloca como protagonista, no
livro O senhor agora vai mudar de corpo. "Sinto angústia por
estar exposto. Coloquei minha alma em julgamento para me reconhecer como
pessoa. Quem é Raimundo Carrero? Quero respostas". O questionamento
existencial busca elementos não só nas agruras da enfermidade, mas nas relações
com mulheres, amigos, jornalismo e literatura.
OUTUBRO DE 2010, BAIRRO DO ROSARINHO, RECIFE, 100 QUILOS. De aspecto rechonchudo e barba cheia, bebia ao menos uma garrafa
de uísque por dia. Associados ao alcoolismo e à ausência de exercícios físicos
("intelectual não tem tempo para isso, ou escreve ou anda"), surgiam
problemas cardíacos. Na madrugada do dia 19, despertou sem conseguir se mexer.
"Foi fascinante acordar, mesmo doente. Estava magoado e eufórico. Descobri
que não estava morto e foi ótimo. Morrer é muito idiota. A gente põe uma carga
tão grande na morte, mas é uma besteira". A confusão mental não permitia a Carrero diferenciar sonho
e realidade, duas dimensões
coexistentes no romance sobre o AVC. Internado em Unidade de Tratamento
Intensivo (UTI), ouviu a voz de Jesus Cristo ("não temas, eu estou contigo").
Era o áudio de uma tevê distante, sintonizada em programa religioso.
NOVEMBRO DE 2010, ROSARINHO, 89 QUILOS. Ao receber alta do hospital, a primeira providência foi testar o
teclado do computador para saber se voltaria a escrever. Com a mão parcialmente
paralisada, redigiu linhas com um dos dedos indicadores, mas havia restrições
de raciocínio. Tentou ditar os textos para a fisioterapeuta, mas não gostou.
Por três vezes, começou versões do livro com um narrador na primeira pessoa,
mas considerou os textos "relatoriais e sem beleza literária". O bloqueio seria um mecanismo
inconsciente para não encarar os
fantasmas do AVC. "Eu perdia a capacidade de pensar por estar colado na
realidade. Revolvia acontecimentos dolorosos e me impedia de escrever".
Carrero passou a investir em uma "falsa terceira pessoa" para
narrar o drama. Das próprias oficinas de criação literária, pinçou elementos e
técnicas, como a evocação de símbolos para representar a mudança de corpo
("homem gordo, magro, anão, mulher grávida") e a angústia
("morcegos, andorinhas, aranhas, fezes"). Em um capítulo, conta o
quão terrível foi encarar uma semana de diarreia ("um drama horrível e
sujo"). Na realidade, segundo a esposa do escritor, o desarranjo durou apenas
cinco minutos.
Carrero I Foto: Reprodução
FEVEREIRO DE 1960, BOA VISTA, 41
QUILOS. Aluno do Salesiano Sagrado
Coração (naquela época, colégio interno), recém-chegado do Sertão do estado, o
menino de 12 anos era péssimo estudante. Reprovou várias séries, tocou em banda
de rock, até ser encarregado de ajudar o padre nas missas das seis da manhã,
falando frases em latim. Nunca soube significados ou pronúncias corretas. Mas o
fascínio maior era a estátua do Cristo morto, banhado em sangue, no canto.
Dali em diante, a igreja se tornaria a segunda casa do escritor e, a fé,
o porto seguro. "A religião é tão fundamental quanto medicação e
fisioterapia. Rezei muito. Hoje, levanto às 4h45 e peço a minha cura a Jesus.
Mostro a necessidade de que eu fique bom logo". O próximo livro de
Carrero, aliás, será uma biografia do líder cristão ("sem polêmica, sem
pesquisa teológica, mas um relato sobre o Cristo me ensinado por minha
mãe").
*Publicado originalmente nos jornais Diario de Pernambuco e Correio
Braziliense.
FELLIPE TORRES
Jornalista, produtor editorial e fotógrafo.
Mata um leão por dia na tentativa do ultra-humano. fellipetorres.pe@gmail.com
RAIMUNDO CARRERO E A IDIOTICE DA MORTE
Reviewed by Natanael Lima Jr
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