ALEXANDRIA (CONTO DE FERNANDO FARIAS)
Foto: reprodução
Depois que meu crânio
foi esmagado descobri que dentro é maior do que fora. Foi quando fui para o
Inferno e conheci meu amigo. Meu inferno é uma casinha branca, de portas e
janelas azuis. Dentro apenas uma mesa rústica, três cadeiras e a estante com
alguns livros. Uma pequena biblioteca.
Um homem cego me
esperava com as mãos cruzadas sobre a bengala. Alto, calvo, finos cabelos
brancos e vestindo um terno preto impecável. Um bibliotecário.
Sem falar, pois aqui
não se fala, e percebendo as minhas dúvidas, explicou que meu inferno seria
assim: uma singela biblioteca e condenado a ler todos estes livros na
eternidade.
Ele deve ter
percebido que eu ri. Uma punição irônica aos meus pecados ou brinde aos meus
desejos?
Então o Borges,
colocando a bengala de lado, descreveu a minha angústia em vida. A de querer
ler todos os livros do mundo. Os clássicos, os grandes filósofos, os mais belos
romances dos milhares de mil e uma noites da história. O sonho de ter em casa
as coleções e obras completas sem as quais ninguém poderia ser um leitor
inteligente. Saber citar aforismos magníficos de qualquer autor.
- O inferno é aquilo
que desejamos por toda vida e que se prolonga pela eternidade.
Agora tens o que
sempre desejaste. Eis o teu inferno.
Primeiro uma brisa
fez ondas nas imagens das estantes, como uma pedrinha na lâmina de um lago. E
eu vi, mesmo sem ter olhos, as fileiras de prateleiras se estenderem em linhas
paralelas. Miríades de livros saltaram das estantes. Prateleiras abarrotadas,
como serpentes, se enroscavam. Carrossel de capas, rodas gigantes de
encadernações, moinhos de papiros. Salas
e mais salas amontoadas, corredores de andares e escadas em aspirais, peles de
animais, inscrições em pedras, encadernações luxuosas e em brochuras. O cheiro
de tinta gráfica e de mofo. Livros, muitos livros enfileirados jogados ao chão,
empilheirados.
A casinha branca
agora tinha milhões de quartos e corredores. As paredes cobertas de estantes.
Dentro era muito maior do que o lado de fora. Não pude ver mais onde as linhas
de estantes se perdiam. Mas continuei percebendo o distante som de novos livros
surgindo, como quem passa rápido as folhas encadernadas, a cada instante mais e
mais textos e pensamentos estão sendo escritos.
Bilhões de livros
diante de mim. Se em vida não consegui ler quase nada, agora, mesmo com a
imortalidade isso não seria possível. Meu amigo Jorge parecia sorrir. Eu estava
mesmo numa sala dentro da casinha branca, de janela azul, onde estavam todos os
livros da Terra.
Sentei em umas das
três cadeiras e comecei a ler divinas comédias e contos de fadas ao som
distante das novas fileiras que iam surgindo, o som das folhas misturadas a
bips eletrônicos.
No inferno não temos
o tempo para contar o tempo. Perdi o cálculo dos livros que ia lendo. Aos
poucos meu amigo me orientava e me sugeria volumes. Descrevia para mim até os
livros queimados em Alexandria e nas torres medievais. Contava-me sobre a vida
confusa dos escritores, nunca coerentes com a beleza do que escreviam.
Encontrava humor no trágico e a hipocrisia na comédia.
Inicialmente eu não
entendi porque tínhamos três cadeiras na sala. Percebi que eu lia em todos os
idiomas e que bastava tocar, mesmo sem ter as mãos, a minha mente absorvia o
que estava escrito. Dispensei, assim, as traduções.
Confesso que o
silêncio me incomodava. Ele ali parado com o queixo apoiado nas mãos e as mãos
sobre a bengala. Havia monotonia no inferno, bem pior do que a do céu e alguns
casamentos. É possível se irritar, também, no inferno. Borges e seu sigilo
chato e imponente.
- E você. Porque não
lê um pouco desses livros? Fica aí calado com este rosto de faraó mumificado.
Afinal, você aqui é o bibliotecário. Nada a fazer? Nem ao menos ler?
- Mas eu sou um cego.
Não tenho olhos para ler. Já morri no escuro.
- Mas você sabe que
não se precisa de olhos para ler aqui. Nem que seja para sair desta inércia de
esfinge.
- Meu silêncio é
dinâmico. Não preciso ler, sou muito anacrônico e por isso sou mais evoluído
que você.
- Você fala um
paradoxo.
- Eu não leio estes
símbolos mortos. Antes dos livros só havia a voz. Escuto a oralidade sutil dos
mestres, a imaginação que deu origem aos livros. Tu vês e lês livros e mais livros. Eu escuto
os murmúrios narrados, seleciono os que me interessam e assim medito dialogando
com cada pensamento.
Jorge Luis Borges, um
arrogante como devem ser todos os demônios. Trata-me como um discípulo
incompetente ou um escravo. Vigia meus gestos, faz cara de desdém a todas as
minhas opiniões, quanto mais eu leio mais ele parece insatisfeito.
- Neste caso, você é
um demônio ou um condenado? Posso deduzir que se estamos no inferno e você aqui
me acompanha, então, Borges, você é o meu demônio?
- Sempre fui um demônio. Todos nós somos. Não
somos deuses. Aqui sou apenas mais um condenado maldito. E assim como tu, estou
aqui pagando minhas ilusões entre estantes de livros mofados.
Esperei um pouco
antes de perguntar. Li todas as Bíblias publicadas. Comparei os versículos que
se alteravam de acordo com os interesses dos grupos religiosos de cada época.
Simplificações e hermetismos. Traduções de traduções de traduções
incompreendidas. Até que perguntei.
- Mas quais foram
então os seus pecados? O que tanto desejou de impossível em vida?
- Tentei usar os
livros para mudar as formas de pensar dos leitores, como forma de evoluir o
pensamento coletivo da humanidade. Mais que isso, tentei com meus escritos
fazer as pessoas pensarem por suas próprias cabeças.
- Mas isso será um
crime?
- Acelerar a órbita
natural das idéias vai contra as leis divinas da evolução lenta da espécie.
Constrangido, voltei
minha atenção aos livros de auto-ajuda, religiosos e outras ilusões. Demorei o
bastante para sentir a longa expansão do universo, até ficar impossível, da
Terra, ver as galáxias. Neste período, não mais resisti e fiz a pergunta que não
devia ter feito.
- Por que você está
aqui? E como você está sendo punido?
O velho voltou o
rosto em minha direção.
- Tu és o meu
castigo.
Baixei a cabeça e li
em voz alta todos os 90 mil poemas do Mahabharata e do Harivamsa. Decorei cada
um dos dois milhões de palavras e suas histórias. E o Borges voltou a me dizer.
- Vou esperar até que
leias milhões de livros e até que consigas te libertar e possas pensar por ti
mesmo. Que tenhas tuas próprias opiniões sobre a vida.
- Mas eu já tenho
minhas opiniões sobre tudo que li.
- Sem repetir ou
citar o que já foi dito antes? Tu apenas relês o que já foi pensado e escrito.
Nada de novo. Mesmas coisas ditas com outras palavras. Simples repetição.
Imitando os gregos, os judeus e os vedas. O eterno retorno das palavras. Tua
cabeça está cheia dos pensamentos dos outros. Não pensas por ti mesmo.
- Posso concluir que
sou eu, então, o demônio de Jorge Luís Borges. Não penso por mim mesmo. Só
aprendi a ler os pensamentos das mentes dos outros. Nada que digo aqui é novo
ou original. Logo eu, que queria escrever algo tão belo como ele me ensinou em
seus contos, sou um fracasso.
- Impossível, gritei
com o Borges, jamais poderei sair deste inferno.
- Poderás num milênio
qualquer, quem sabe. Mas para isso terias que deixar de ler, esquecer tudo que
já aprendeste e pensaste. Tornar-te inocente como uma criança, capaz de
contemplar o universo sem os olhos da razão e da ciência e tirar as mais
ingênuas conclusões.
- Você acha que eu
conseguiria deixar de pensar? Se aqui sou apenas uma gota de elétron de um
pensamento? Borges, meu amigo, me responda o que é o inferno? O que é o
Inferno?
Em suas mãos surgiram
uma folha de papel amarelada e uma caneta. Começou a desenhar uma letrinha
miúda e leve.
Olhei para o chão da
casa. Não havia chão. Nossos pés estavam
suspensos sobre galáxias como espumas coloridas. Escutei mantras de baleias de
um planeta distante. Percebi uma nuvem de borboletas brincando sobre a folha
amarela que a mão de Borges me passou. E assim o mestre me disse:
- No inferno, não
terás com quem contar. Não adianta pedir, não serás atendido. Falas e não serás escutado. Não terminarás
tuas frases, serás interrompido e os pensamentos serão tolhidos.
No inferno, há muitas direções. Mas não se
chega a lugar nenhum. Tentas sair, tentas mudar, mas tudo é estático. Becos sem
saídas e ladeiras altas.
Acredite. O Nada
existe. O Nada toma conta da vida. Nada se cria e nada se pensa. Não há
ação. O Nada é o tudo. E o tudo é pobre.
A alma é pobre. A cultura é pobre. Somos uma ilha cercada de mediocridades e
mesmices.
No inferno, morre-se
de coisas estranhas. A morte chega em frases estúpidas como: perdão, eu não
queria te fazer mal; esqueci de desligar a energia; eu não percebi você; quem
tirou a escada que estava aqui? Foi sem querer. Desculpa-me, foi por amor.
No inferno, também existe a união. Muita
solidariedade para eliminar, impedir e abortar as ideias. Dissipam-se
fantasias. Nada se cria. Tudo se destrói.
No inferno, não há o
choro. As lágrimas evaporam-se antes que saiam dos olhos. Ficam presas e molham
o coração, que esfria. E o coração gelado não chora.
Não. No inferno não
há o sim. Não é não. Tudo é não. Todas as frases começam com o não, não podem
ser ditas a não ser com o não. Os verbos são no pretérito. Não há miragens de
futuro.
Aqui, tudo que é
castrador começa com a letra P. Professor, pastor, pais, patrão, país, padre,
presidente. Papa, polícia, poder, pendências, Paulo. Propriedade privada,
políticos primatas, povo paciente, primas putas.
Brilham estrelas no
céu, no céu do inferno. Mas as cabeças
estão sempre baixas. E a lama escura não reflete brilhos. Sabemos que estrelas
existem, mas estão tão distantes, que são impossíveis. Então, não há porque
olhar para os astros.
O inferno é cercado
de um muro. Feito de tijolos de resignação, de conformismo, da submissão.
Acomodam-se os desejos. Pois, foi Deus quem quis assim.
Há muitas normas no
inferno. Normas normais. Leis, regras, dogmas, artigos, códigos, manuais,
estatutos, regimentos, cartões de pontos, avisos de proibido fumar, proibido
pensar, pisar na grama. Muitos advogados, muitos chefes, censores e sogras.
É por isso, que no
Inferno, o nascer é trágico, sangra, dói e se chora. Já a morte, nem sempre é
trágica, nem sempre dói ou sangra.
Aqui, o amor é puro.
Puro aproveitamento. Não vais poder amar e ser amado como cantam as antigas
orações franciscanas. Hás que carregar tanto amor e não encontrar ninguém para
receber. Sentirás uma intensa necessidade de te doar, afagar e beijar. Mas
receberás a frieza e a indiferença.
Uma eterna espera. A
tolerância calada, a paciência das filas, saudades antes da partida, medo de si
mesmo, uma ameaça constante de não ser. O servir humilde, grito represado, o
tesão contido, a esmola negada, um óvulo não fecundado, a voz desafinada.
Lugar dos pecadores.
Cometem esperanças, insistem em ser felizes e até acreditam em céus e deuses.
Insistem em viver. Seguem os instintos. Hereges que acreditam que o destino é
imutável.
E acima de tudo, o
pecado imperdoável de querer a liberdade. Sem a clemência do humor, e o pecado
mortal de amar.
Existe a paz. A paz
dos desertos, a paz dos cemitérios. O silêncio dos torturados que não se
confessam. Onde há o esquecimento. Depois de algum tempo, nem mesmo as ervas
daninhas vão crescer na cova de terra seca. Nem os vermes perderão tempo com
teus ossos.
O inferno é aqui. O
inferno é a solidão.
Quando terminei de
ler a folha amarela vi que ele estava com o rosto severo e havia lágrimas. E
agora estamos calados há várias eras. Mesmo assim eu continuo na leitura de
mais livros e ele no perene silêncio.
Às vezes olho através
da janela azul desta casinha branca. E vejo você lendo este livro. Percebo ao
meu lado a cadeira vazia. É sua esta cadeira. Você logo vai estar aqui, comigo,
ao meu lado, junto a estas estantes infinitas. Não tenho pressa. Estou
esperando. Quando você chegar, nós vamos reler tudo. Novamente.
ALEXANDRIA (CONTO DE FERNANDO FARIAS)
Reviewed by Natanael Lima Jr
on
07:01
Rating:
Paulo Farias e suas metáforas. O danado é que, além de excelentes, seus contos sempre dizem respeito a nós mesmos, de um jeito ou de outro. Sempre aprendo um pouco com eles, e fico me vigiando para não ser um normal.
ResponderExcluirBelo conto, como sempre, meus parabéns.
ResponderExcluirBelo conto, como sempre, meus parabéns.
ResponderExcluir