MARESIA E MEMÓRIA
por Neilton Limeira F. de Lima*
Neilton
Lima/Foto: Divulgação
A lembrança de certa imagem não
é senão a saudade de um certo instante; e as casas, os caminhos, as avenidas,
são fugitivos, ai de nós!, como os anos.
Marcel Proust
O esquecimento é a memória que
adormeceu.
Carlos Nejar
I
Quantos sonhos há na teia do
esquecer?! Direi, nesse breve espaço branco em que me encontro, e que começo a
traçar rastros, muitos, sonhos: paisagens surgindo. Dessas sombras das faces
que me circundavam, geografias nas retinas, momentos que os anos, carcomidos
pelo Senhor Tempo, imaginariamente novamente se realizam. E no dizer do poeta
Carlos Nejar:
O processo das
imagens é o processo da memória. Os criadores recontam a infância,
inevitavelmente. Com outros e variados vocábulos. E ao relatá-la, são cronistas
mágicos do inconstante mundo. Memoriar é desinventar. Pôr o avesso do universo
no avesso das palavras. Com suas metamorfoses e arribações.
Assim, trarei, navegante dos verbos e
versos, reminiscências e viagens memoriais.
II
Escolhida a página, nesse diário de
bordo dividido em 38 capítulos, retrato em palavras as férias que um menino
distante, e internamente guardado, habitou. Ele, o menino em mim, filho das
Águas Belas ao encontro dos Recifes em seu peito. Das águas do Rio Ipanema o
desaguar na Praia de Boa Viagem, seu primeiro alumbramento. Sentir, como
Caeiro, o prazer primário do contato visual e tátil da água (para sempre
presente nesse (ser)tanejo) invadindo a íris, a pele, o oceano do encantamento.
De mãos dadas com a família: o pai, a mãe, o irmão, sementes plantadas durante
o transcorrer do quinto capítulo, pois antes, quadrado branco sobre fundo
branco, o que reinava era uma nublada e abstrata lembrança órfã, ele segue.
Recorrendo ao poeta Nejar:
O alegórico é o espelho, em que
nossas rudes palavras nos miram, entretecidas. Não saímos de nós mesmos. E não
fugimos de mergulhar, anfíbios. Como se estivéssemos diante da mesma árvore da
infância.
Muitos são os frutos, as imagens, as
dores... mas deixaremos, eu e você, leitor, as lágrimas para as chuvas, ensolaremos
este texto.
III
Dentre os sonhos que a memória aviva,
há os vividos na Ilha de Itamaracá, a partir do décimo capítulo, onde a criança
solidificou descobertas: o raro valor da amizade, a jovial saudade, o deleite
das brincadeiras, os amores matinais, as peraltices, enfim, a felicidade que,
em palavras, limitadas em suas essências não pode simbolizá-la. Na casa
aconchegante e pequena, o verão de 86 e os anos que se seguiram. Ah... a espera
gostosamente aflita pelos amigos e amigas: Lelê, Bolinha, Lion, Lula, Gordo, os
irmãos Baquil, Martinha, Tatiane, Katarina, Juliana, entre tantos, que viriam
passar o janeiro (um mês inteiro de histórias para curtir, ainda que depois
reduzidas em uma redação, puxa! dariam para um romance!). Agora, queridos
amigos, vocês estão tranquilamente guardados e vivos nos traços de mão direita
e, claro, no pulsar do meu lado esquerdo.
Prossigamos leitor. Barco à vela no
memorial, mar vislumbro os jogos de futebol (fizesse sol ou chuva), as „brigas‟ com a Turma
do Diplomata (os meninos da outra rua, que vinham nos desafiar no jogo e
paquerar nossas meninas), as corridas de bicicleta no morro, as casas desertas
invadidas, as lâmpadas quebradas dos postes, o muro pulado do Iate Clube
(banhos de piscina e totó de graça), as idas ao Forte Orange (roubar azeitonas
pretas), isto no decorrer do dia, pois à noite: o pega-ladrão, o
esconde-esconde, as meninas... ah ...as meninas (pera, uva ou maça), a
Sorveteria, a Praça do Pilar, tornavam o corpo embriagado de horizontes.
Nesse recordar sempre infinito,
impossível não anunciar ao leitor as caminhadas no areal, quando a maré
baixava, os mergulhos nos currais, nós todos maravilhados de visões marinhas,
peixes, algas, conchas, moreias; as idas para a Ilha do amor, no tempo em que o
medo era um de nós „dar com a língua nos dentes‟, contando tais aventuras aos
irmãos mais velhos ou aos pais. Nossos pais...
IV
E aqui, essa criança encerra seu breve
memorar de náufrago, in memoriam da figura paterna, luz dos seus passos,
e da mãe, a madureza do fruto; no irmão presente a mão forte em seu ombro.
Neles, a marca perpétua das experiências, páginas a serem continuamente
preenchidas de paz e êxtase que a Vida, se bem vivida, propicia. No dizer do
poeta Nejar: “A imaginação é o acréscimo do sonho ao real. Até o real absorver
totalmente o sonho. E, se às vezes, têm as mesmas asas, o voo é diverso”. Isto posto,
navegamos e resgatamos, eu e você, leitor, os sonhos na teia do esquecer,
eternizados de saudade, deleitados de maresia e memória.
*Neilton
Limeira F. de Lima é mestre em Teoria da Literatura
(UFPE, 2007). Licenciado em Inglês / Português pelo Curso de Letras (UFPE,
2003). Professor de Língua Portuguesa e Literaturas, atualmente na FUNESO,
Professor das Graduações em Letras, Pedagogia e Enfermagem; e das Pós-Graduações
em Letras; na FOCCA, onde Coordena o Curso de Letras; na FACOL, convidado nas
Pós-Graduações; Membro e Coordenador de Eventos da UBE. Poeta e ensaísta. Tem
textos publicados em Antologias: Mutirão de Poesia, RS (1997), Nova
Geração da Poesia Brasileira, RJ (2002); Staccato, PE (2005); Áfricas
de África, PE (2005), Revista Café com Letras, PE (2006), Em
Pessoa PE (2007), Revista Scientia Una PE (2009; 2010; 2014), Falo
com Flauta & Poesia (prefácio para Selma Ratis, PE (2012); Poesia
Pernambucana Hoje volume 1 Vital Correia de Araújo. (2013). (Revisão
ortográfica); Um Jeito Diferente de
Filosofar. Martinho Queiroz. (2014) (Revisão ortográfica). Além de poemas e
ensaios ainda inéditos. e-mail: netunoneil@gmail.com
MARESIA E MEMÓRIA
Reviewed by Natanael Lima Jr
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