CONTO DO DOMINGO
Via
Láctea (conto) de Fernando Farias
Fernando
Farias/Foto: Divulgação
A Via Láctea, diante do meu olhar
curioso, rodopia veloz. Em seguida vai perdendo o impulso e fica mais lenta,
mostrando contornos mais nítidos. De ponta a ponta são 100 bilhões de anos-luz.
A espiral branca gira sob o fundo negro do universo.
Com a colherinha começo a mexer
novamente a nata do leite no café. Uma galáxia no microcosmo da minha xícara. O
creme leitoso gira e, em silêncio, brinco com o cosmos.
Começo a lembrar da grande estrada que
levava leite aos romanos, a Via Láctea, que nomeou a nossa galáxia; talvez por
algum romano que fez a mesma assimilação com as natas leitosas, quem sabe em
canecas de vinho.
Escuto uma faca tamborilando no prato.
Levanto os olhos ela está ali na minha frente. Selma. Tenho um susto e chupo a
espiral desfazendo meus pensamentos cósmicos.
Há meses que não nos encontrávamos na
cozinha. Nem em outros cômodos da casa. Cinco anos de casamento. Ausências, sem
toques e o silêncio. A asfixia dos soterrados nas minas de carvão.
Selma usa uma camisa vermelha com a
foto estilizada de Che Guevara. Incomoda-me o seu mastigar de bolachas. Desvio
a atenção para o quadro na parede: barquinhos no mar azul pintados por um de
nossos filhos. Barquinhos horríveis. Assim como eu, ela sabe que o contrário do
amor não é ódio; é a indiferença.
Existem casais assim. Anulados,
dependentes financeiros, só aparências à família, amigos e aos amantes. A praga
do padre ainda rima e ecoa na minha mente. A morte ainda não chegou, mas já
estamos separados.
Ela está a menos de um metro da mesa e
lembro-me de que precisamos falar sobre o pagamento da escola das crianças.
Três meses atrasado. Tomo a iniciativa e grito.
- A ideia, no conceito surrealista,
não pode conter nenhuma lógica. Não podemos permitir qualquer interpretação
simbólica. 1.
No fogão ao nosso lado as pipocas
eclodem como os fogos de artifícios nas noites juninas. Assustada ao ouvir minha voz, grita e
explica:
- Meu cachorro anda estranho. Após as relações
incestuosas com aquela cachorrinha, acho que está sofrendo com um encosto
espiritual. Todas as noites a alma de um Pastor Alemão baixa nele.
Não entendo o que ela diz. Escuto o
pinguim de louça rindo em cima da geladeira. Gargalha tanto que cai de costas
com as patas balançando no ar. Sinto-me inseguro e tento esclarecer:
- O que me estranha é a ciência da Idade Média
não saber que a Terra era redonda. Os gregos já esculpiam estátuas do deus
Atlas com o globo nas costas, representando as constelações e já com os
meridianos e paralelos aplicados em alto relevo. A mais antiga estátua é do
século II. Os navegadores antigos desconheciam a mitologia grega?
Com a voz grave digo que no mês de
março faz muito frio na Albânia. Colocando as palmas das mãos ao lado da boca,
como um megafone, Selma grita:
- Houve a queda da Bastilha, caiu o
Muro de Berlin e as Torres Gêmeas desabaram. Caíram em cima de antigos regimes.
E acho que as paredes desta cozinha estão rachando.
Começo a perceber que estamos com um
problema de comunicação. Até as relações sexuais estão esparsas. Uma a cada
enterro de um papa.
- Pois bem, concordo com você. -
Gritei com a surdinha - Acredito que todos os políticos são safados. Mas, para
existir um político safado, antes há um eleitor safado. São apenas os efeitos
de uma sociedade podre, medíocre, sem ética e sem moral. Afinal, quem corrompe
os políticos corruptos?
Selma parece refletir sobre minhas
palavras. Mastiga pedaços de mamão com mel. Brinca com as migalhas das
bolachas. Depois coloca os óculos de armação grossa, olha-me nos olhos e
proclama:
- Nos filmes americanos os casais se
beijam na boca quando acordam. Nem escovam os dentes antes.
Na camisa, o Che Guevara estira a
língua para mim. Parece aquela foto do Einstein que coloquei atrás da porta do
sanitário. Sem me olhar, ela se levanta e sai assobiando “Cantando na Chuva”.
Só agora percebo que está de calcinha
vermelha e que tem a bunda muito branca. O vinho pingado no leite nas canecas
dos soldados romanos.
Um dos barquinhos afunda no quadro da
parede. Escuto um glup. Fico só e livre. Despejo café no prato. Coloco vários
pingos de leite separados no universo negro. Vejo Andrômeda, a grande Nuvem de
Magalhães e as infinitas nebulosas.
Volto a meditar. Como são longas as
distâncias no universo.
1.
A frase “A ideia, no conceito
surrealista...” foi copiada dos comentários do Filme O Cão Andaluz, de Luiz
Buñuel.
CONTO DO DOMINGO
Reviewed by Natanael Lima Jr
on
08:24
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Gostei!
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