CONTO DO DOMINGO
Muribeca (conto)* de Marcelino Freire
Marcelino Freire
Foto: Divulgação
Lixo? Lixo serve pra tudo.
A gente encontra a mobília da casa, cadeira pra pôr uns pregos e ajeitar,
sentar. Lixo pra poder ter sofá, costurado, cama, colchão. Até televisão.
É a vida da gente o lixão.
E por que é que agora querem tirar ele da gente? O que é que eu vou dizer pras
crianças? Que não tem mais brinquedo? Que acabou o calçado? Que não tem mais
história, livro, desenho?
E o meu marido, o que vai
fazer? Nada? Como ele vai viver sem as garrafas, sem as latas, sem as caixas?
Vai perambular pela rua, roubar pra comer?
E o que eu vou cozinhar agora? Onde vou procurar tomate, alho, cebola? Com que dinheiro vou fazer sopa, vou fazer caldo, vou inventar farofa?
E o que eu vou cozinhar agora? Onde vou procurar tomate, alho, cebola? Com que dinheiro vou fazer sopa, vou fazer caldo, vou inventar farofa?
Fale, fale. Explique o que é que a gente vai
fazer da vida? O que a gente vai fazer da vida? Não pense que é fácil. Nem
remédio pra dor de cabeça eu tenho. Como vou me curar quando me der uma dor no
estômago, uma coceira, uma caganeira? Vá, me fale, me diga, me aconselhe. Onde vou
encontrar tanto remédio bom? E esparadrapo e band-aid e seringa?
O povo do governo devia
pensar três vezes antes de fazer isso com chefe de família. Vai ver que eles
tão de olho nessa merda aqui. Nesse terreno. Vai ver que eles perderam alguma
coisa. É. Se perderam, a gente acha. A gente cata. A gente encontra. Até bilhete de loteria, lembro, teve gente
que achou. Vai ver que é isso, coisa da Caixa Econômica. Vai ver que é isso,
descobriram que lixo dá lucro, que pode dar sorte, que é luxo, que lixo tem
valor.
Por
exemplo, onde a gente vai morar, é? Onde a gente vai morar? Aqueles barracos,
tudo ali em volta do lixão, quem é que vai levantar? Você, o governador? Não.
Esse negócio de prometer casa que a gente não pode pagar é balela, é conversa
pra boi morto. Eles jogam a gente é num esgoto. Pr’onde vão os coitados desses
urubus? A cachorra, o cachorro?
Isso tudo aqui é uma
festa. Os meninos, as meninas naquele alvoroço, pulando em cima de arroz,
feijão. Ajudando a escolher. A gente já conhece o que é bom de longe, só pela
cara do caminhão. Tem uns que vêm direto de supermercado, açougue. Que dia na
vida a gente vai conseguir carne tão barato? Bisteca, filé, chã-de-dentro – o
moço tá servido? A moça?
Os motoristas já conhecem
a gente. Têm uns que até guardam com eles a melhor parte. É coisa muito boa,
desperdiçada. Tanto povo que compra o que não gasta – roupa nova, véu,
grinalda. Minha filha já vestiu um vestido de noiva, até a aliança a gente
encontrou aqui, num corpo.
É. Vem parar muito bicho
morto. Muito homem, muito criminoso. Agente já tá acostumado. Até o camburão da
polícia deixa seu lixo aqui, depositado. Balas, revólver 38. A gente não tem
medo, moço. A gente é só ficar calado.
Agora, o que deu na cabeça
desse povo? A gente nunca deu trabalho. A gente não quer nada deles que não
esteja aqui, rasgado, atirado. A gente não quer outra coisa senão esse lixão
pra viver. Esse lixão para morrer, ser enterrado. Pra criar os nossos filhos,
ensinar o nosso ofício, dar de comer. Pra continuar na graça de Nosso Senhor
Jesus cristo. Não faltar brinquedo, comida, trabalho.
Não, eles nunca vão tirar
a gente deste lixão. Tenho fé em Deus, com a ajuda de Deus eles nunca vão tirar
a gente deste lixo.
Eles dizem que sim, que vão. Mas não acredito. Eles nunca vão
conseguir tirar a gente deste paraíso.
*Muribeca
é um dos contos do livro Angu de Sangue, publicado pela Ateliê Editorial
(2000).
CONTO DO DOMINGO
Reviewed by Natanael Lima Jr
on
18:21
Rating:
Muito bom!
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