A LITERATURA DO DIVÃ
por Alexandre Coslei*
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Depois de concluir a leitura, em sequência, de quatro livros da
promissora safra da nossa nova literatura, todos escritos por autores jovens e
de extremo talento, não foi mais possível fugir ao desenvolvimento desta
análise. Os títulos são:
Biofobia (Santiago Nazarian – Ed. Record – 2014)
As fantasias Eletivas (Carlos Henrique Schroeder – Ed. Record –
2014)
O inventário das coisas ausentes (Carola Saavedra – Ed. Cia das
Letras – 2014)
Barba ensopada de sangue (Daniel Galera – Ed. Cia das Letras –
2012)
Não, não são obras descartáveis. Seria inútil dissertar sobre
literatura de entretenimento, como denominam os defensores do gênero, não
observarmos nela a sincera experiência com a linguagem, nem a paixão pela
palavra afinada com a ideia. A palavra, instrumento primeiro e venerado pelo
escritor. A literatura de entretenimento, como se apresenta, guarda somente uma
ansiedade mercantil. Essa aspiração quase intestinal pelo sucesso imediato
sufoca as virtudes sociais, culturais e estéticas que perenizam a obra de arte.
Por que este artigo? Ele surgiu quando se fez possível compreender
uma assombrosa e recorrente semelhança temática entre os livros citados. Neste
século 21, num mundo onde todos estamos conectados pela Internet e pela
vertiginosa evolução da tecnologia, os autores discursam sobre a solidão, sobre
o autoexílio voluntário ou compulsório dos protagonistas, além de agregarem
aspectos autobiográficos à trama, pequenos conflitos familiares e um imenso
vazio existencial. É fascinante o destaque comum desses elementos em autores
tão jovens e que caminham pelo começo da carreira literária. Reflexo do nosso
tempo?
“Quem ainda estará lendo daqui a um século? ” (Biofobia –
Nazarian, pág. 66).
A questão, lançada por Santiago Nazarian, nos obriga a imaginar
que um possível apocalipse literário estará mais associado ao que escrevemos
hoje, somado à precária formação dos leitores e à estranha obsessão dos
escritores contemporâneos com a migração imediata do texto para o audiovisual.
Tudo isso sucateia muito mais a narrativa do que o caráter obsoleto que a
literatura possa adquirir no futuro. A verdade explícita é que vivemos um
momento oco na criatividade e na alma das coisas.
“Gantra: Os jovens autores brasileiros...
- Peraí, deixa eu ver esse – disse André. Pegou o volume,
verificou os autores: Daniel Galera, Michel Laub, Emílio Fraia, Thomas
Schimidt.... Nunca tinha ouvido falar. Fogo. ” (Biofobia – Nazarian, pág. 139).
A sentença decretada pelo personagem, que lança às chamas autores
que receberam reconhecimento, revela um sintoma e não uma ação de rebeldia
vulgar. Sintoma de quê? Uma pergunta que ficará aberta para a livre
interpretação. A literatura não é feita para nos dar retorno, mesmo quando nos
dá sentido.
“... quando o amor acaba resta apenas a ficção”. (O inventário das
coisas ausentes – Saavedra, pág. 65).
“... tenho vontade de lhe dar um soco, nunca dei um soco em
alguém, destruir, desfigurar um rosto, a mão coberta de sangue, como se a
violência física pudesse dar vazão a outra coisa, uma violência muito mais
arraigada”. (O inventário das coisas ausentes – Saavedra, pág. 90).
Vivemos o êxtase absoluto do materialismo, o amor é uma lenda
urbana, miragem de uma Hollywood anacrônica. A disputa, a angústia pela
visibilidade e a exigência implacável pelo consumo fugaz são as forças que
erguem as bases da realidade. O sentimento aflorado é o de romper com a
civilidade, semear o imprevisível. Basta olharmos o caos ao redor para termos
certeza disso.
“Escrevo: ... Nina não se sustenta em si mesma, precisa de ossos,
uma estrutura que lhe dê concretude. Sem essa estrutura ela é apenas o espaço
vazio, essa constante incerteza. Escrevo. ” (O inventário das coisas ausentes –
Saavedra, pág.46)
Dos quatro autores evidenciados, surpreende constatar que a
construção linguística melhor elaborada, com traços de louvável sofisticação e
aparente influência de Clarice Lispector, se encontre no texto de Carola
Saavedra, uma chilena radicada no Brasil e que escreve em português.
Daniel Galera não foge do padrão da vitoriosa literatura
brasileira produzida por jovens. Seu livro de maior sucesso (Barba ensopada de
sangue) passeia pelas paisagens invernais e remotas de Santa Catarina, rumina
incansavelmente sobre o desterro do principal personagem. A história direciona
o fôlego final para a descrição de uma selvagem disputa em que o protagonista
assume postura passiva e supostamente heroica diante da violência irracional.
Em todos esses livros não há amor. Prevalece neles um desajuste,
uma procura que, invariavelmente, terminará em nada. São espelhos do nosso
espírito.
“A fotografia quer congela um instante, e a literatura, recriá-lo,
e ambas têm essa capacidade de permitir uma outra visão das coisas. Meu
interesse pela fotografia começou justamente para tentar entender um pouco mais
os processos literários; afinal, criar e contar histórias é desvelar imagens. ”
(As fantasias eletivas – Schroeder, pág. 66).
É belíssima a definição de Carlos Augusto Schroeder que, por
tabela, nos conduz a outro fenômeno: a atual sublimação da imagem sobre a
escrita. Vemos com temor a agonia de alguns autores em anunciar o mais rápido
possível que suas obras irão se transformar em filmes e roteiros para cinema ou
TV. Escrevem com a intenção de materializar e não para “desvelar imagens” como
ensina Schroeder. Tratam a literatura como o supérfluo que precisa ser
transmutado em imagem concreta. O cinema está para jovens autores como estava a
Pedra Filosofal para os alquimistas.
Por outro lado, o mercado editorial continua incentivando
prioritariamente a produção pop ou a tradução de épicos fantasiosos, romances
de erotismo tosco, dramas de amor com exagero de açúcar e outros conteúdos
rasos. Querem escapar dos estilhaços do realismo. A alienação é que sugere
potencial de comércio. Com isso, a maioria dos nossos autores neófitos se
comportam como uma horda de deprimidos que preferem dormir e sonhar a ter que
encarar os espinhos manchados de sangue e miséria que povoam o universo
contemporâneo.
Num território dominado pelos piores valores de um capitalismo
desnorteado, a futilidade também é um fator inevitável.
Em todos esses livros, o enredo é tênue, quase débil. O aspecto
psicológico, o tom confessional e fortes doses de melancolia entremeiam os
romances. O relevante, em qualquer caso, é que a arte continua traduzindo o que
somos e prossegue compondo a curta mensagem que nasce das nossas entranhas.
Buscamos alguma espécie de redenção, o resgate do humano na interconexão
solitária, mas não há esperança... Não há.
A LITERATURA DO DIVÃ
Reviewed by Natanael Lima Jr
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