SETENTA ANOS SEM MÁRIO, O GÊNIO E O MITO

por Yuri Pires*
(publicado em obvious literatura)


Há exatos 70 anos um gênio desaparecia fisicamente, parindo o mito. Muito se escreveu - muitas releituras aconteceram -, sobre Mário Raul de Moraes Andrade, cujo gênio literário é de tal enormidade, que ele foi capaz de fazer o quase impossível para um artista: desdizer-se conscientemente!

Img: reprodução

Mário de Andrade é figura central na vida intelectual e artística brasileira. Foi em vida, seguiu sendo depois do seu falecimento, em 1945, e segue influenciando, mesmo que indiretamente, a cultura e a arte contemporânea brasileira. Desde a iconoclástica semana de 22, contribuindo com quase todas as revistas literárias da época - influenciando desde Vinícius de Moraes até Cecília Meireles, de Drummond a Manoel Bandeira -, passando pelos poetas concretos dos anos cinquenta do século passado, e sendo forte referência para o Cinema Novo, a Tropicália e a atualíssima poesia marginal.

Alguém que não conheça o Brasil, e sua intelligentsia, imaginaria que se trata, portanto, de uma figura estudada e debatida, larga e profundamente, nos centros de produção e difusão litero-artísticas dos nossos dias. Ledo engano: Mário de Andrade é um mito desconhecido atualmente. Figura como nome de pontes, casas de cultura, bibliotecas (a mais famosa é um belíssimo prédio no centro de São Paulo), sendo um nome conhecido do grande público, que, no entanto, desconhece sua obra.

E por qual motivo? Se Oswald de Andrade era o grande agitador, Mário foi o principal formulador da estética e estilística do modernismo brasileiro. A Semana de 22 foi um marco na quebra de parâmetros e conceitos na literatura, e principalmente na poesia, nacional. Quando foi que se imaginou que, do alto de um púlpito, alguém declamaria, como poesia, os versos de Ode ao Burguês?
  
“Eu insulto o burguês! 
O burguês-níquel, o burguês-burguês! 
A digestão bem-feita de São Paulo 
O homem-curva! O homem-nádegas 
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano 
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!”
Trecho de Ode ao Burguês (Mário de Andrade)

Por ocasião do aniversário de 90 anos da Semana de 22, o poeta Nelson Ascher escreveu que esta seria um "Cadáver no meio do caminho" da cultura nacional. E não apenas os contemporâneos detrataram a semana moderna, sobre ela disse Graciliano Ramos: "enquanto os rapazes de 22 promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão. Enquanto alguns estavam preocupados em estudar, observar, sentir alguma coisa, eles importavam Marinetti". Acusados de irresponsáveis e imitadores, foram atacados tanto por conservadores como Monteiro Lobato e João Cabral de Melo Neto, quanto por expoentes da literatura social, como Graciliano Ramos e José Lins do Rego.

É possível que estas críticas tenham surtido efeito em Mário de Andrade. Ao invés de encastelar-se em suas posições, assumiu parte das críticas, numa profunda autocrítica realizada em 1942, em um discurso por ocasião do aniversário de vinte anos da semana de arte moderna. Disse: "Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição. O homem atravessa uma fase integralmente política da humanidade. Nunca jamais ele foi tão “momentâneo” como agora. Os abstencionismos e os valores eternos podem ficar pra depois. E apesar da nossa atualidade, da nossa nacionalidade, da nossa universalidade, uma coisa não ajudamos verdadeiramente, duma coisa não participamos: o amilhoramento político-social do homem. E esta é a essência mesma da nossa idade. Si de alguma coisa pode valer o meu desgosto, a insatisfação que eu me causo, que os outros não sentem assim na beira do caminho, espiando a multidão passar. Façam ou se recusem a fazer arte, ciências, ofícios. Mas não fiquem apenas nisto, espiões da vida, camuflados em técnicos de vida, espiando a multidão passar. Marchem com as multidões!”.

Apesar disto, reconhece, noutro ponto, o enorme esforço empreendido e a conquista efetiva dos modernistas de 22: "E hoje o artista brasileiro tem diante de si uma verdade social, uma liberdade (infelizmente só estética), uma independência, um direito às suas inquietações e pesquisas que não tendo passado pelo que passaram os modernistas da Semana, ele não pode nem imaginar a conquista enorme que representa (...) jamais não poderão suspeitar o a que nos sujeitamos, pra que eles pudessem viver hoje abertamente (...) A vaia acesa, o insulto público, a carta anônima, a perseguição financeira...”

Mas mesmo assumindo parte das críticas - as que considerava justas -, Mário não escapou de certa amargura para com a sua obra. Macunaíma, obra-exaltação, ao mesmo tempo que profundamente crítica do seu país, hoje é adorada apenas por quem nunca a leu, enquanto é ignorada pela maioria dos estudiosos da literatura nacional. É possível que este anti-herói brasileiro seja menos lido que os Sermões do Padre Antônio Vieira, e seguramente não chega aos pés de Machado de Assis em número de novos leitores. E no entanto, quanto de Mário de Andrade há na arte contemporânea? Quanto de Mário de Andrade há no teatro de José Celso Martinez, ou na música dos Mamonas Assassinas, por exemplo? Quanto de Macunaíma não há em Sagarana, de Guimarães Rosa?

Nós brasileiros temos a ingrata mania de conceber a nossa existência como uma partenogênese, desligada de nossos antepassados europeus, índios, negros. Assim concebemos também nossa cultura, e perdemos a possibilidade - ou capacidade - de ver a linha evolutiva de uma arte em construção, em um país que começa a intentar uma carreira solo no campo da cultura. Se a semana de arte moderna foi apenas o ápice de um processo de renovação que já se delineava, Paulicéia Desvairada (1922) inaugura a poesia moderna e contemporânea no Brasil.

Homem de seu tempo, Mário é contraditório, foi entusiasta e detrator da modernidade nascente, esteve na trincheira de todas as discussões intelectuais da engatinhante brasilidade, discordando de si mesmo algumas vezes. “Minha obra toda badala assim: Brasileiros, chegou a hora de realizar o Brasil”, dizia.

E sua convocação não foi em vão: em nenhum outro lugar do mundo João Gilberto, Caetano Veloso, Galuber Rocha, Dias Gomes, Hermeto Pascoal, Joãozinho Trinta, Chico César e Criolo seriam possíveis. Pelo menos artisticamente o Brasil realizou-se, e talvez o que falte para o próximo passo seja a reconciliação com aquele que nos abriu as portas para a maturidade... saravá Mário de Andrade!



*Yuri Pires é escritor e poeta, autor de O homem e o seu tempo (2014), nasceu em Recife e atualmente reside em São Paulo. Escreve para La Parola e Obvious.
SETENTA ANOS SEM MÁRIO, O GÊNIO E O MITO SETENTA ANOS SEM MÁRIO, O GÊNIO E O MITO Reviewed by Natanael Lima Jr on 09:04 Rating: 5

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