A viagem
por Salete
Rêgo Barros*
Acordes de Pompa e Circunstância
ecoam. Maquiado, orquídeas ornamentam o seu corpo vestido num Giorgio Armani,
preto. Fino coquetel servido a parentes, amigos e colegas de trabalho. Bartô
parece dormir. O caixão, em madeira de lei, todo forrado por dentro com couro
da melhor qualidade. O ritual é cumprido à risca. A esposa ergue as
sobrancelhas conferindo se tudo está nos conformes. Cabisbaixos, parentes
entreolham-se.
Desde criança, Bartô abandona o corpo
adormecido e sai em direção a lugares imaginados. De tão acostumado está com as
idas e vindas, que não teme ficar por lá - um fio elástico preso ao seu umbigo
não o deixa escapar. Encontra com antigos conhecidos e parentes, faz novas
amizades e se locomove com a leveza de um pássaro. No entanto, quando fala de
suas experiências, todos mudam de assunto. Prefere, então, calar guardando a
riqueza de seu conhecimento.
O homem ainda espera as tais noites, que se tornam cada vez mais
escassas. A luta pela sobrevivência não lhe permite aventuras.
Em silêncio, espera o dia em que o fio se
romperá, definitivamente, permitindo a viagem sem volta. É certo que, do outro
lado, sua rotina será outra. Sou um escravo do mundo e das pessoas,
conforta-se. Supérfluos são eliminados na certeza de que sua morte será coroada
com tudo de bom que a vida lhe negou.
Finalmente, o grande dia. Bartô deita e logo
chega o formigamento que antecede a partida. O cordão estica enquanto ganha
altura. Surgem os velhos conhecidos que o
rodeiam. Na relva molhada, perde-se em devaneios. De repente, o rompimento do cordão e uma sensação de dor tira-lhe o fôlego. Debate-se, mas uma reconfortante lufada de ar deixa-o em êxtase profundo.
rodeiam. Na relva molhada, perde-se em devaneios. De repente, o rompimento do cordão e uma sensação de dor tira-lhe o fôlego. Debate-se, mas uma reconfortante lufada de ar deixa-o em êxtase profundo.
Lembranças vão desfilando diante de
seus olhos. Cobre o rosto com as mãos sentindo-se atraído a dar uma olhada no
próprio velório. Compreende que a decepção não é vã. Reconhece que o
aprendizado, muitas vezes, chega com atraso.
Sua esposa traz o semblante sereno.
Em breve, certamente, o encontrará em outra situação. Além de companheira, era
confidente de muitos anos. A paixão do início havia se transformado num amor
sereno, sem ilusões. Optaram por não ter filhos e conviviam harmoniosamente com
o fato, apesar das cobranças sociais.
Agora, a viagem se dá no sentido
inverso. Sorrateiramente, visita a casa de parentes e amigos que aqui deixou,
mas, aos poucos, dá preferência à companhia dos conhecidos de outros tempos.
Sente que a compreensão está bem mais apurada e prepara-se para uma nova etapa:
a universidade.
Formigas fazem cócegas em suas
narinas, mas ele é incapaz de afastá-las. O ardor das dentadas e o perfume
francês, o deixam ser ar. Como os insetos conseguiram atravessar a madeira de
lei e o couro, chegando tão rapidamente? Enjoa. Constata que os bichos que se
banqueteiam com a sua carne saíram de dentro dele. A sensação térmica é de mais
de duzentos graus centígrados.
Seis e meia. O cheiro do café
inunda a casa e o jovem, suado, levanta-se cambaleante. Lembra que precisa
pegar o ônibus, rapidamente, para chegar às sete e meia no trabalho. À
meia-noite estará de volta, após as aulas do cursinho preparatório para o
vestibular.
A viagem
Reviewed by Natanael Lima Jr
on
10:05
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