Pensar é transgredir*
por Lya Luft**
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Não
lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanente reinvenção
de nós mesmos — para não morrermos soterrados na poeira da banalidade embora
pareça que ainda estamos vivos.
Mas
compreendi, num lampejo: então é isso, então é assim. Apesar dos medos, convém
não ser demais fútil nem demais acomodada. Algumas vezes é preciso pegar o touro
pelos chifres, mergulhar para depois ver o que acontece: porque a vida não tem
de ser sorvida como uma taça que se esvazia, mas como o jarro que se renova a
cada gole bebido.
Para
reinventar-se é preciso pensar: isso aprendi muito cedo.
Apalpar,
no nevoeiro de quem somos, algo que pareça uma essência: isso, mais ou menos,
sou eu. Isso é o que eu queria ser, acredito ser, quero me tornar ou já fui.
Muita inquietação por baixo das águas do cotidiano. Mais cômodo seria ficar com
o travesseiro sobre a cabeça e adotar o lema reconfortante: "Parar pra
pensar, nem pensar!"
O
problema é que quando menos se espera ele chega, o sorrateiro pensamento que
nos faz parar. Pode ser no meio do shopping, no trânsito, na frente da tevê ou
do computador. Simplesmente escovando os dentes. Ou na hora da droga, do sexo
sem afeto, do desafeto, do rancor, da lamúria, da hesitação e da resignação.
Sem
ter programado, a gente para pra pensar.
Pode
ser um susto: como espiar de um berçário confortável para um corredor com mil
possibilidades. Cada porta, uma escolha. Muitas vão se abrir para um nada ou
para algum absurdo. Outras, para um jardim de promessas. Alguma, para a noite
além da cerca. Hora de tirar os disfarces, aposentar as máscaras e reavaliar:
reavaliar-se.
Pensar
pede audácia, pois refletir é transgredir a ordem do superficial que nos
pressiona tanto.
Somos
demasiado frívolos: buscamos o atordoamento das mil distrações, corremos de um
lado a outro achando que somos grandes cumpridores de tarefas. Quando o
primeiro dever seria de vez em quando parar e analisar: quem a gente é, o que
fazemos com a nossa vida, o tempo, os amores. E com as obrigações também, é
claro, pois não temos sempre cinco anos de idade, quando a prioridade absoluta
é dormir abraçado no urso de pelúcia e prosseguir, no sono, o sonho que afinal
nessa idade ainda é a vida.
Mas
pensar não é apenas a ameaça de enfrentar a alma no espelho: é sair para as
varandas de si mesmo e olhar em torno, e quem sabe finalmente respirar.
Compreender:
somos inquilinos de algo bem maior do que o nosso pequeno segredo individual. É
o poderoso ciclo da existência. Nele todos os desastres e toda a beleza têm
significado como fases de um processo.
Se
nos escondermos num canto escuro abafando nossos questionamentos, não
escutaremos o rumor do vento nas árvores do mundo. Nem compreenderemos que o
prato das inevitáveis perdas pode pesar menos do que o dos possíveis ganhos.
Os
ganhos ou os danos dependem da perspectiva e possibilidade de quem vai tecendo
a sua história. O mundo em si não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui
identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem.
Viver,
como talvez morrer, é recriar-se: a vida não está aí apenas para ser suportada
nem vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada. Conscientemente
executada. Muitas vezes, ousada. Parece
fácil: "escrever a respeito das coisas é fácil", já me disseram. Eu
sei. Mas não é preciso realizar nada de espetacular, nem desejar nada
excepcional. Não é preciso nem mesmo ser brilhante, importante, admirado. Para
viver de verdade, pensando e repensando a existência, para que ela valha a
pena, é preciso ser amado; e amar; e amar-se. Ter esperança; qualquer
esperança.
Questionar
o que nos é imposto, sem rebeldias insensatas, mas sem demasiada sensatez.
Saborear o bom, mas aqui e ali enfrentar o ruim. Suportar sem se submeter,
aceitar sem se humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade.
Sonhar,
porque se desistimos disso apaga-se a última claridade e nada mais valerá a
pena. Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que
trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for.
E
que o mínimo que a gente faça seja, a cada momento, o melhor que afinal se
conseguiu fazer.
*Disponível em:
http://pensador.uol.com.br/autor/lya_luft/
**Lya Luft é escritora, professora universitária, tradutora e colunista da Revista Veja
**Lya Luft é escritora, professora universitária, tradutora e colunista da Revista Veja
Pensar é transgredir*
Reviewed by Natanael Lima Jr
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