O Conto da Semana
As últimas
horas de José Almácio (conto) de Paulo Rocha*
José Almácio olhou as veias azuis enquanto o copo
fazia o curto percurso entre a mesa e a boca. Nunca entendera porque azuis se
seu sangue sempre fora vermelho, quase negro. O sangue agora contaminado pelo
que não queria, pelo que não previra na vida, pelo vírus desgraçado que já
matara amigos, amores, conhecidos e desconhecidos lamentados em outros e sucessivos
copos, não por eles, mas pelo temor de ser o próximo, pelo tremor da
constatação do inevitável.
Já não cantava há muito, explorada a doença pela
mídia e cancelados em cascatas os shows, não cantaria em churrascarias não, e
talvez nem lá o quisessem. O vírus da hora H, da hora de Ir, da hora de Ver não
lhe levara apenas a fama, os cumprimentos, o dinheiro. Exterminara em diarreias
violentas sua crença na vida, a vontade de cantar mais uma vez, de ouvir os
aplausos, de encarar os holofotes.
Agora apenas sussurrava antigos tangos tristes, a
antiga e potente voz calada aos poucos em camas de hospital, em cadeira de
rodas quando a crise chegava, sumindo mais a cada coquetel de comprimidos
coloridos que engolia com nojo e com revolta.
Tossiu. Tentou tossir com força, a dor fina rasgou
mais fundo, suspirou. Encheu novamente o copo com decisão, com vigor
desesperado, quase com volúpia.
A decisão estava tomada e os passos sucediam-se,
primeiro a embriaguez, não tão forte que impedisse a ingestão dos pequenos e
plúmbeos glóbulos, quase um grafite na embalagem sem rótulo, que olhou contra a
luz, que abriu com dificuldade, que somou ao copo cheio, que entornou
definitivamente.
Tempo ainda de colocar na vitrola antiga o disco
antigo, num recuo histórico, sua voz aclamada de outrora e os chiados íntimos,
como se o disco também morresse um pouco cada vez que girava, a agulha nos
sulcos desenhando a negra espiral da morte que se aproximava, uma faixa, duas,
as últimas como se ele mesmo estivesse longe, depois o deslizar da agulha já
livre do labirinto, missão cumprida, o silêncio.
***
A empregada veio pela manhã, retirou os copos e as
garrafas da mesa de centro, jogou no lixo o frasco vazio, amassou o bilhete
ininteligível, recolheu as roupas espalhadas pela sala, chamou pelo patrão, é
hora do remédio! Procurou no quarto fechado e escuro, voltou à cozinha do
pequeno apartamento, foi ao terraço e olhou para baixo, onde tinha se metido
aquele homem? Deu de ombros e foi arrumar os discos espalhados, sempre a mesma
coisa, as noites solitárias em que se embriagava sozinho, rejeitando companhia
e ouvindo seus velhos sucessos. Empilhou-os sem muito cuidado, fez um feixe e
pressionou-o na prateleira, empurrando. Depois percebeu que na vitrola ainda
rodava mais um, a agulha levantada. Encontrou a capa do LP embaixo do sofá, e
não estranhou o fato de ser nova, brilhante, papel e olhos luzindo em cores
recentes.
Na foto, José Almácio sorria, livre.
*Paulo Rocha é contista e editor do Jornal Gazeta Nossa
O Conto da Semana
Reviewed by Natanael Lima Jr
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09:09
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Parabéns Paulo, excelente conto.
ResponderExcluirNatanael Jr