Ambição do Escritor*

por João Paulo Cuenca**


















Img: Reprodução

Milan Kundera escreve em "A cortina" que "a fama dos artistas é a mais monstruosa de todas as glórias porque envolve a ideia de imortalidade. É uma armadilha diabólica porque a pretensão grotescamente megalomaníaca de sobreviver à própria morte está inseparavelmente ligada à integridade do artista". E ainda: "Escrever sem esta ambição é puro cinismo, porque enquanto um encanador medíocre é útil para as pessoas, um romancista médio (...) é digno de desprezo"

Como escritor, me recuso a cair na solene e diabólica armadilha em que Kundera se coloca. Quando escrevo um romance não penso num busto de mármore, e sim em criar algo que se justifique. Que se justifique após tudo já ter sido escrito. Que se justifique enquanto aventura estética. E que se justifique, acima de tudo, no sentido singular que preciso dar à minha rápida existência. Isso talvez queira dizer que não tenho pretensões de "sobreviver à própria morte", mas à própria vida. À minha vida, hoje, agora — não à sua, caro leitor. 

E essa sobrevivência (o que chamo de sobrevivência) não tem qualquer relação com a posteridade, com a crítica, com os festivais literários e com as moscas das padarias que orbitam ao redor de qualquer atividade artística. Confesso, sequer tem a ver com o fato de ser ou estar escritor. (Certamente que o lado mais solar dessa atividade não é desagradável: é bom receber um elogio impresso, ser reconhecido na rua por uma mulher bonita ou recepcionado num cinco estrelas do outro lado do oceano por causa de algo que se escreveu. Ainda assim, esses afagos não me criam apego definitivo à profissão e ao personagem.). 

Sigo com as negativas: nada disso, e aí incluo a grande ambição literária, reconhecida ou não, bem-remunerada ou não, perene ou não, é o que me faz continuar escrevendo. Tampouco é compulsão, necessidade incontingente de expressão ou alívio. E aí, o leitor e eu nos perguntamos: o que é, afinal? 

Com o tempo, aprende-se que os livros que escrevemos são como histórias de amor — só os compreendemos depois que acabam, e às vezes muito tempo depois. 

Minha maior ambição como escritor vivo deve ser esta: entender. Entender intransitivamente. 

Sim, eu sempre já fui mais ambicioso. Aliás, terminarei esta frase com menos ambição do que quando a comecei. 

Se aos cinco anos era um solipsista convicto, aos 13 ainda acreditava que o destino da humanidade estava em minhas mãos. Entre arroubos messiânicos e poluções noturnas, imaginava que seria Michelangelo, Rimbaud, John Lennon, Dostoievski e Stanley Kubrick reencarnados juntos num astronauta visionário. Já aos 20, tinha pretensões de viajar pelo planeta como guitarrista ninfomaníaco e virtuose de uma banda de rock em estádios lotados, o que é absolutamente mais simples e carnal. Hoje, aos 30, dou a volta ao círculo como jovem escritor incensado (segundo meus detratores), e chego à conclusão de que minhas ambições estão cada vez mais materialmente modestas (um pequeno apartamento em Paris) e cada vez mais subjetivas (a compreensão absoluta, o amor incondicional etc.).

**João Paulo Cuenca nasceu no Rio de Janeiro em 1978. É autor de "Corpo presente" (Ed. Planeta, 2003) e "O dia Mastroianni" (Ed.Agir, 2007). Participou de diversas coletâneas e é colunista da revista TPM e escreve para o Megazzine do jornal O Globo.


(*)Texto extraído da revista "Granta - Ambição", Ed. Alfaguara - 2009 



Ambição do Escritor* Ambição do Escritor* Reviewed by Natanael Lima Jr on 10:35 Rating: 5

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