O Conto da Semana
Campeão (conto) de Salete Rêgo Barros*
Img: Reprodução |
Obras de arte
se espalham pelos ombros, costas e braços. Recostado num sofá, tenta controlar
o movimento do pé, fechar o olho e levantar o braço do lado esquerdo. As
palavras correm frouxas como se quisessem escoar as lembranças dos dias em que
não podia se mexer, falar, comer e respirar por conta própria.
Chegando à
cidade luz, dirige-se ao Campo de Marte. Compra os ingressos e enfrenta a
subida de mais de trezentos degraus. No segundo nível, após apreciar as
vitrines, dirige-se a passos largos ao Jules Verne. Escolhe a mesa com vista
para o Trocadero. A decoração toda em preto faz com que o olhar seja atraído
para a armação de ferro iluminada e a vista panorâmica. Observa a toalha,
guardanapos, pratos, taças e talheres nunca vistos. Aceita a sugestão de Alain
Ducasse: entrada - salmão marinado com limão acompanhado de caviar e vodca;
prato principal - peixe com mousse de alho poró ao molho de figo acompanhado de
um Chablis; sobremesa - creme brulée. Para dois.
Paredes e teto
formados por elementos vazados que lembram colmeias permitem que as luzes
coloridas se entrecruzem à maneira da estrutura metálica da torre. Bancos
rentes às paredes remetem a cabines de trem. Sentado, plana sobre a cidade numa
engenhoca criada por Júlio Verne em suas histórias fantásticas, ao som do tema
da vitória.
Uma voz é
sussurrada junto ao ouvido direito: - Fique calmo, campeão, você vai conseguir.
Sente a mão que toca suavemente a sua cabeça raspada, em parte, e torce para
que aquele momento dure para sempre.
- Este aí não
amanhece o dia.
Tenta milhões
de vezes dizer que está tudo muito bem, mas desiste. Resolve fazer manobras
radicais equilibrando-se com perfeição sobre a Red Eyes - no lado
esquerdo as ondas são extremamente tubulares. Entra no salão azul e perde a
noção de tempo e de espaço. Acredita estar no ventre da natureza - sempre ouviu
dizer que do outro lado seria assim.
Confuso,
renasce. Sente-se energizado pelos raios do sol da manhã. Conta até dez, vinte,
cem, duzentos, e a sensação de eternidade permanece. No entanto, algo mais
forte o conduz em direção àquelas vozes.
- Que mau
cheiro! Será que faz tempo que ele está cheio?
- Sei lá, a
promoção fica para quem chegar depois.
- Guardei um
pouco do leite condensado para você passar na bolacha...
O tique-taque
se eterniza. Reúne forças, solta as amarras que prendem a mão direita. De
súbito, puxa o tubo arrastando fragmentos misturados a muco, sangue e dor. O
oxigênio torna-se simples lembrança. Uma picada solitária encerra a questão.
Encontra
troças irreverentes que se misturam a maracatus, bonecos gigantes, escolas de
samba e muito frevo. Sobe na porta do jeito que nasceu. A multidão aplaude
freneticamente. Ergue os braços querendo abraçar o infinito. Agiganta-se,
encosta nas estrelas. Contempla a Lua alinhada entre o Sol e a Terra, sabedor
de que a fase é de introspecção, período fértil para grandes mudanças. Embaixo,
milhões continuam a gritar campeão, campeão, campeão...
(conto
baseado numa história real)
*Salete Rêgo
Barros é
arquiteta, parapsicóloga, escritora e ditora da Novoestilo Edições do Autor e
produtora cultural executiva da Cultura Nordestina Letras & Artes.
O Conto da Semana
Reviewed by Natanael Lima Jr
on
08:03
Rating:
Emocionou-me este conto que emprega tanto amor conjugando no tempo e no espaço! :)
ResponderExcluirAgradecemos seu comentário e sua visita.
ResponderExcluirNatanael Lima Jr
Editor
Que lindo encontrar poesia em meio a tanto sofrimento e dores. Mas, são nesses momentos que vemos a mão do Criador iluminando até o vale da sombra da morte.Sl 23: O Senhor é meu pastor e nada me faltará... Parabéns
ResponderExcluirCaro Bruno, assim é a poesia. Agradecemos seu comentário e sua visita.
ResponderExcluirNatanael Lima Jr
Editor