TransWinter

E me faço nas entrelinhas...

por Fátima Quintas*











 (Img: Reprodução)


Como é difícil escrever a primeira frase. O que hei de dizer? Qual o assunto escolhido? Como colocar-me diante de um espaço que precisa ser preenchido com palavras? O texto clama por inspiração; ela nem sequer adeja o espírito adormecido no vazio do nada. O que é o nada? Não sei. Ausência? Vacuidade? Desesperança? Mas a crônica deve ser elaborada, urge estruturá-la; o cronista precisa comentar alguma coisa do cotidiano. Ao meu redor há um mundo palpitando e eu, a sentir-me à margem dos fenômenos; a multidão está longe, distante, onde? Ou será que hoje falta-me a dimensão perceptiva? Ouço o cachorro latindo no fundo do quintal de um terreno baldio, vejo os carros acompanhar o trânsito lento, conto as folhas que caem no chão, a árvore tão majestática na sua forma de ser árvore não se incomoda com as perdas da ramagem; outros frutos rebentarão. E por que me afasto dos temas como se as horas sugassem os sonhos e os devaneios? Por quê? Por quê?

Do lado de fora existe um burburinho indefinido; aqui é o silêncio que tem voz. E o tempo se transforma no senhor absoluto da minha vontade e de meus desejos. Que sabe de mim esse tempo? A sua medida não é a minha; que diferença faz se eu o percebo, mas não sei como expressar-me? Faltam-me as palavras que significam e não apenas as palavras soltas, ambíguas, irrelevantes. A palavra representa o instrumento da minha existência; quão difícil selecioná-la no momento adequado! A sua força me escapa; às vezes, absorvo-a em plenitude; às vezes, me foge como revoada de pássaros no ar. Vivo a garimpar palavras e nem sempre a fonte me oferece o que há de mais preciso; então, atropelo-me na caminhada, vou e volto, não pesco a palavra certa. Clarice Lispector me acalma: “Escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, podia-se com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporo-a.” Pois nas entrelinhas acontece o mistério, o de não dizer-se por completo, o de atribuir ao não dito o valor maior da escrita. Daí a dificuldade da criação da metáfora. O símbolo transcende qualquer explicação, situa-se muito além do entendimento. Escrever não é obter respostas; é gerar perguntas.

Descubro-me que não posso escrever quando me encontro em ansiedade, a aguardar a resolução de algum problema. Nesse momento faço tudo para que as horas passem, corro contra os segundos, multiplicam-se os medos e a insegurança não me leva à consciência do ser. Fico como que paralisada. E então concluo que escrever é prolongar o tempo. Claro, a única forma de eternizar-se está na palavra, e a apetência do perenizar-se reclama por perfeição. Como me assusta a perfeição! Por isso encolho-me, viro um caramujo, dobro-me para dentro, não sei, não sei, falta-me paciência para compreender o mundo. O mundo não foi feito para ser compreendido, sim, para ser sentido. Nem sempre quando penso articulo meus sentidos; pensar pode ser uma forma de postergar a emoção.

Ninguém mede o esforço de uma narrativa que parece simples. O simples consubstancia a força do real ou do irreal, da fantasia – as imagens mais simples guardam-se na intimidade, não se revelam. E do lado de lá mora a expectativa de uma leitura sem inadequações; a frase, a construir-se como se o lápis fluísse quase sem comando. Ledo engano. Há tanto sofrimento em cada parágrafo que nem sempre o leitor atento consegue deslindá-lo. Quantas vezes as lacunas me surpreendem em um texto inacabado? Opto pelas reticências quase a pedir clemência a mim mesma? Escrever é ser intenso, é expor-se, é exibir os recônditos da alma, sem receio de jogar-se por inteiro na página em branco. E não deixa de ser uma forma de driblar o tempo, pois escuto o tic-tac me vigiando e não lhe dou a mínima atenção. Por enquanto não penso e desprezo as censuras que me amarram e continuo à procura da palavra e agrego todas as forças para dizer o que minimamente não consigo confessar. Talvez as entrelinhas falem por mim.


*Fátima Quintas é antropóloga, escritora, ensaísta, cronista e atual presidente da Academia Pernambucana de Letras.









Poemas de Mário Quintana, Manuel Bandeira, Marcus Accioly, Natanael Lima Jr, Frederico Spencer e Rogério Generoso


Quando eu me for*
Mário Quintana

(Img: Reprodução)













Quando eu me for,
os caminhos continuarão andando...
E os meus sapatos também!
Porque os quartos, as casas que habitamos,
Todas, todas as coisas que foram nossas na vida
Possuem igualmente os seus fantasmas próprios,
Para alucinarem as nossas noites de insônia!

*In Velório sem defunto, 1990




Arte de amar
Manuel Bandeira

(Img: Reprodução)











Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma. Só em Deus - ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.




Florbela Espanca*
Marcus Accioly

(Img: Reprodução)
















Abênção noite! Abênção claridade!
Abênção livro de Sóror Saudade!
Tu, lua, cospe, de Florbela Espanca,
sua saliva branca, branca, branca

sobre a Charneca em flor desta cidade,
ou sobre o mar que escarra espuma. É tarde.
Cai uma estrela: a mão de Deus arranca
sua flor luminosa, branca, branca.

Tento cantar dois versos de Florbela:
“Dona morte dos dedos de veludo,
Fecha-me os olhos que já viram tudo!”

Abro à porta do céu minha janela
e os ventos ventam vozes intranquilas:
“Florbela já tomou todas as pílulas”.

*In Daguerreótipos, 2008




Poema a céu aberto*
Natanael Lima Jr.

(Img: Reprodução)













As noites passam ávidas.
Por vezes,
levianas, desregradas.

Algumas revelam
sombrias angústias
algemadas por paixões dissolventes.

Noutras se revelam
pálidas, tímidas.

Por vezes as desejo
obscenas, insanas,
dominadoras, cruéis.

E quando a noite cessa,
o poema se revela
a céu aberto.

*In À espera do último girassol & outros poemas, 2011





O julgamento*
Frederico Spencer

(Img: Reprodução)














Do condenado se extrai
seus dentes e seus gritos
implanta-se um novo chip:
                               multinacional
e suas penas, por uma carteira
de trabalho forçados, vestirão seus dias
de amarelo, pinta-se
o sorriso
nunca mais
voltará.

*In Abril Sitiado, 2011




O poeta*
Rogério Generoso

(Img: Reprodução)












O silêncio
devora-o  com sua voz
alta e rouca
Há nele
uns olhos antigos
que esperam
as pernas
e um coração psicodélico
que vê
a paisagem neutra
ou a invenção
do desenho
de onde
a roupagem
áspera e calma
do poema.


*In Noumenon, 2010


E me faço nas entrelinhas... E me faço nas entrelinhas... Reviewed by Natanael Lima Jr on 08:04 Rating: 5

6 comentários

  1. PARABÉNS!!! MUITO FELIZ POR VOCÊS!!! SUCESSO!!!

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    Respostas
    1. Obrigado pela visita, é sempre bom ouvir o resultado daquilo que fazemos.
      Frederico Spencer
      Editor de Texto

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  2. Agradecemos sua visita. Tudo isso é resultado de um trabalho sério e coletivo.

    Natanael Lima Jr
    Editor

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  3. Olá amigos,
    É sempre gostoso passar aqui e absorver cultura conhecendo um pouco mais do meu povo pernambucano rss .
    Morro de saudades do Recife, assim que possível volto pra casa! rss
    Parabéns pelo post.
    Beijos a todos e uma ótima semana.
    Joelma

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    Respostas
    1. Obrigado Joelma, você sempre nos brindando com seus comentários, muito bom. Quando vier ao Recife nos procure.

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  4. Olá Joelma, agradecemos muito sua visita e seu comentário. Ficamos felizes por ter gostado do post da edição desse domingo. Tudo isso é por acreditarmos na força da poesia.

    Natanael Lima Jr
    Editor

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