Arte boa, arte ruim: isto existe?
por Frederico Spencer*
frederico_spencer@hotmail.com
(Img: Reprodução)
Existe uma discussão nos meios
acadêmicos e literários sobre a qualidade da arte que consumimos hoje. Tal
movimento distingue-se em dois blocos divergentes: um atribui a força do
mercado como formador de uma arte dirigida para o consumo de massa, prejudicando
desta forma a sua qualidade. O outro defende que hoje consumimos uma arte
decadente e que, neste contexto, pesam vários fatores determinantes para a sua
produção.
Colocando-se de lado questões
inerentes à qualidade, duas artes então, permeiam nosso cotidiano, alimentando
e transformando-nos através de sua veiculação nos meios de comunicação.
Essas artes, conceitualmente geradas
para atender nichos de mercado, não se cruzam e não se permeiam ao final de sua
produção, provocando ainda mais uma discriminação, o que impede um estudo
aprofundado sobre o tema, diminuindo desta forma o conceito de arte - sua força
e sua destinação, que é a criação de novos conceitos para entendimento da
realidade que nos rodeia.
O poeta Ferreira Gullar em seu livro: Sobre arte. Sobre poesia. (Uma luz no chão), nos diz que “A produção da
arte como acontecimentos ou conceitos, se podem ser entendidas como resultado
da procura estética, podem também ser vistas como resultado do conflito
subjacente entre arte como expressão e a arte como mercadoria”.
Opondo-se de certa forma ao conceito
ortodoxo marxista sobre arte, o qual se fundamenta na questão que representa os
interesses e a visão do mundo de determinadas classes sociais, de um modo mais
ou menos preciso.
O filósofo Herbert Marcuse, aponta
para além deste modelo estético, quando afirma que a arte se sobrepõe a este
papel político, porque ultrapassa as fronteiras que a cerceia: “Na sua
autonomia a arte, não só contesta essas relações sociais existentes como, ao
mesmo tempo, as transcende. Deste modo, a arte subverte a consciência
dominante, a experiência ordinária”.
A criação artística, mesmo sendo
produto de um tempo histórico, escapa das rédeas desse tempo, alcançando sua
autonomia através do diálogo permanente, que faz com as relações de produção e
as questões humanitárias, que permeiam o homem na sua escalada evolutiva,
através dos questionamentos vivenciados em seu meio.
Desta forma a produção artística,
posto que é, fruto da cultura de um povo e ainda seu meio de manifestação nos
aponta para questionamentos - qual uma bússola à indicar um caminho sobre a
qualidade de vida de um determinado povo: suas relações de produção, seu grau de conhecimento tecnológico e
erudito.
Conforme o mestre Raimundo Carrero: “o
conceito estético grego morreu, já não existe, hoje extraímos a arte da
história da vida das pessoas simples, das ruas descalçadas”. Portanto não
existe arte ruim nem arte boa, o que muda é o conceito de vida que se desenrola
no carretel dos dias, impregnados pelas mudanças dos mercados e pelas aflições
geradas por estes.
Segundo a música: Ela é dançarina, de
Chico Buarque: “eu sou funcionário/ela é dançarina/quando pego o ponto/ela
termina/Ou: quando abro o guichê/é quando ela baixa a cortina”. Simplesmente vivemos,
produzimos e somos as vítimas de nossos atos e, por tudo aquilo que nos
permeia.
*Frederico Spencer é poeta,
sociólogo e psicopedagogo
Poemas de Ferreira Gullar, Carlos Drummond de Andrade, Mia Couto,
Natanael Lima Jr, Cícero Melo e José Terra
Traduzir-se*
Ferreira
Gullar
(Img: Reprodução) |
Uma
parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?
*de
Na Vertigem do Dia (1975-1980)
Instantes
Carlos
Drummond de Andrade
(Img: Reprodução) |
Uma
semente engravidava a tarde.
Era
o dia nascendo, em vez da noite.
Perdia
amor seu hálito covarde,
e
a vida, corcel rubro, dava um coice,
mas
tão delicioso, que a ferida
no
peito transtornado, aceso em festa,
acordava,
gravura enlouquecida,
sobre
o tempo sem caule, uma promessa.
A
manhã sempre-sempre, e dociastutos
eus
caçadores a correr, e as presas
num
feliz entregar-se, entre soluços.
E
que mais, vida eterna, me planejas?
O
que desatou num só momento
não
cabe no infinito, e é fuga e vento.
Espelho
Mia Couto*
(Img: Reprodução) |
Esse
que em mim envelhece
assomou
ao espelho
a
tentar mostrar que sou eu.
Os
outros de mim,
fingindo
desconhecer a imagem,
deixaram-me
a sós, perplexo,
com
meu súbito reflexo.
A
idade é isto: o peso da luz
com
que nos vemos.
*Mia Couto, pseudônimo de Antonio Emílio Leite Couto, é um biólogo e
escritor moçambicano.
Poema pardo
Natanael Lima Jr
(Img: Reprodução) |
à noite os poemas são pardos
solitários, tímidos
sutis...
se cruzam e se deitam
nas camas ardentes das prostitutas
que gemem, gozam
depois deliram
e lambem o sal
da boca
que pariu
julho 05/2013
As canções da bela dama*
Cícero Melo
(Img: Reprodução) |
(1)
Por causa de uma bela dama,
Perdi meu reino e cavalo.
E até hoje procuro:
Não o reino nem a dama,
Só procuro o meu cavalo.
Perdi meu reino e cavalo.
E até hoje procuro:
Não o reino nem a dama,
Só procuro o meu cavalo.
(2)
Levanto a mão para cima
Para que a fumaça do cigarro
Não incomode a dama.
Espero que não incomode
As estrelas.
Para que a fumaça do cigarro
Não incomode a dama.
Espero que não incomode
As estrelas.
*poema inédito
Nobreza*
José Terra
(Img: Reprodução) |
Amada, ainda não basta a mim e ao mundo
Revelar teu corpo e com ele fazer mapas
E criar tua alma e com ele fazer mágicas
Depois da perfeição do teu espírito e da tua
matéria
É mais do que necessário deixar o rei nu
E transcender
Com mãos de lavrador e coração de poeta
As pedras e os pergaminhos do NOVO SÉCULO
Para o jovem poeta cantar outro corpo e outra alma
*do
livro " 21 poemas", 2005, em parceria com o poeta Joel Marcos
Arte boa, arte ruim: isto existe?
Reviewed by Natanael Lima Jr
on
10:21
Rating:
Olá amigos, passando aqui para sentir as emoções do Domingo com poesia.
ResponderExcluirPara mim a arte é mistério e liberdade, podemos apreciar ou não, e continuará sendo arte e vai seguindo a humanidade em seu tempo ou fora de tempo.
Um post rico em composição com belos poemas.
Beijos e um ótimo início de semana.
Joelma
Olá Joelma, agradecemos sua visita e seu comentário.
ExcluirAbraços,
Natanael Lima Jr
Editor
É isso Joelma, arte é arte. Obrigado pelo apoio e pela visita.
ExcluirUm forte abraço.
Frederico Spencer
Editor de texto
Gostaria de entender melhor, sou socióloga e proprietária de uma escola, mas sinceramente vejo crianças tão pequenas tendo seus ouvidos educados pelos próprios pais a ouvirem músicas com letras tão vulgares, rimas tão pobres e altamente sexualizadas para a idade. Isso seria arte?
ExcluirPrezada Patrícia, bom dia. Entendo suas preocupações e seu desânimo frente a tudo isto que nos permeia nos dias atuais: as questões culturais, educacionais e políticas, mas o texto tenta mostrar que a cultura e seus produtos se modificam de acordo com o processo histórico. Buscando referências no passado podemos falar dos anos da ditadura, tínhamos uma arte engajada com as questões da luta pela liberdade de expressão. Hoje somos vítimas de um mercado de consumo de massa onde se busca o cerceamento do pensamento crítico, portanto de um nivelamento por baixo da capacidade do pensamento livre.
ExcluirObrigado pelo comentário. Um abraço.
Boa noite a todos do Domingo com poesia. Estou maravilhada com o conteúdo desse espaço, saio daqui em pleno deleite, obrigada. Um abraço, Lu.
ResponderExcluirOlá Lucy, que bom que vc gostou. Procuramos a cada domingo trazer o melhor da literatura e contribuir para democratizar cada vez mais este espaço. Visite-nos sempre.
ExcluirNatanael Lima Jr
Editor
Lucy, bom dia
ResponderExcluirQue bom ler suas palavras, tentamos sempre trazer o melhor a cada postagem e quando temos resposta daquilo que fazemos, é muito bom. Obrigado.
Frederico Spencer
Editor de texto