Da Preguiça
por Marcus
Accioly*
Img: Os avarentos e pródigos empurrando suas
pedras
no Quarto
Ciclo, Gustavo Doré.
É no quarto patamar do Purgatório que o poeta Dante Alighieri coloca os
preguiçosos, sob o peso de enormes pedras. Considerando a extraordinária imagem
– a imobilidade da preguiça sob a imobilidade da pedra – o castigo é exemplar.
O preguiçoso é um Sísifo de si mesmo, a preguiça que leva é sua pedra: a pedra
dele mesmo nele próprio. O preguiçoso já se autocarrega. É um camelo com sela
das corcovas e, embora não conduza cavaleiro, sempre parece um animal exausto.
Dispondo do seu tempo em demasia, sua preguiça não dispõe de espaço. Salomão
fala dele nos Provérbios, ou da sua desculpa permanente: “Um leão está lá fora,
serei morto no meio das ruas”. Nada é mais deplorável do que ver um preguiçoso
levantar-se: ele se espreguiça, geme e, como uma criança que se esconde, põe as
costas das mãos sobre os olhos e se defende contra o sol já alto. Feito o
cupim, o preguiçoso tem ojeriza à luz e, igual ao avestruz que, como o corpo de
fora, põe a cabeça dentro de um buraco, ele se mete sob o travesseiro. Não há
despertador que o desperte. O sono – esse “irmão da morte” – para Kháyyám – ou
“noivo pálido” – para Castro Alves – é todo o seu deleite.
Um dos sete pecados capitais, a preguiça só pode ser batida pela inveja,
Daí porque Dante assinalou os invejosos com os olhos costurados de arame. Mas,
se a inveja entra pelos olhos, a preguiça se infiltra pelos ossos e se instala,
sem pressa, na medula. De acordo com Luís da Câmara Cascudo – Dicionário do folclore brasileiro –
foram os portugueses, quando do Descobrimento, que batizaram o mamífero
xenatro, pela sua excessiva lentidão, de bicho-preguiça. Inúmeras são as
estórias e lendas sobre o animal, como aquelas em que foi incumbido de chamar
os tocadores para uma festa dos bichos e, três dias depois, não chegou ninguém.
Revoltados, os animais resolveram dar uma lição na preguiça, caso ela voltasse.
Atrás da porta, sonolenta, porém ouvindo tudo, a preguiça desabafou: “Então, eu
não vou chamar os músicos”. Tão impressionante como o tamanho e a forma do
carrapato da preguiça – uma bola de golfe cheia de sangue – são as traças
brancas que se entranham nos seus pelos. Prevenida, ela não se alça em nenhum
cipó sem testá-lo antes. Afirmam uns, que a preguiça bebe água pelo ânus
(jamais eu comprovei tal indolência). De certo que a lentidão discreta de uma
das seis propostas para o próximo milênio – a rapidez – de Ítalo Calvino, que
cita o cavalo como emblema da velocidade, também mental. São incontáveis os
sinônimos da preguiça: ignávia, inércia, ociosidade, inatividade, indiferença,
prostração, imobilismo, estagnação, morosidade, moleza, molúria, malevolência,
pachorra, mandriice lentidão, ócio, desleixo. Diz um dito – “A preguiça é a mãe
de todos os vícios” – e há quem diga que ela também é a mãe de todos os vices.
A preguiça tarda, retarda, atrasa. Como só se toma leite cedo e sorvete tarde,
o governador Eduardo Campos classifica os seus auxiliares de “leiteiros” e
“sorveteiros”.
Jorge Amado andou divulgando (de brincadeira – claro) que Dorival Caymmi
era o homem mais preguiçoso do Brasil. Até hoje corre a notícia de que ele
compôs a música – Maracangalha – de
18 versos, em 19 dias, mais ou menos, assim: no 1º dia Caymmi escreveu o 1º
verso: “Eu vou pra Maracangalha”. No 2º dia repetiu: “Eu vou!”. No 3º dia ele
escreveu o 3º verso: “Eu vou de uniforme branco”. No 4º dia repetiu: “Eu vou!”.
No 5º dia fez o 5º verso: “Eu vou de chapéu de palha”. No 6° dia repetiu: “Eu
vou!”. No 7º dia fez o 7º verso eu vou convidar Anália”. No 8º dia repetiu: “Eu
vou!”. No 9º dia fez o 9º verso – “Se Anália não quiser ir” – e concluiu no 10º
dia: “Eu vou só”. Depois escreveu no 11º dia – “Eu vou só!” – e no 12º dia –
“Eu vou só!”. No 13º dia repetiu o 10º verso – “Se Anália não quiser ir” – e
repetiu no 14º, 15º e 16º dias: “Eu vou só! / Eu vou só! / Eu vou só!”. No 17º
dia ele juntou os versos: “Eu vou só sem Anália” – e, finalmente, no 18º dia
ele concluiu a canção: “Mas eu vou!”. Afinal não se fica sabendo se ele foi
para Maracangalha e, no caso, se foi com Anália, ou não.
*Marcus Accioly é poeta e membro da
Academia Pernambucana de Letras
POEMAS DE NATANAEL LIMA JR, FREDERICO SPENCER, MÁRCIA MARACAJÁ E MÁRCIA SANCHEZ LUZ
Meu poema não
faz silêncio*
Natanael
Lima Jr
Imagem: Reprodução |
meu
poema não faz silêncio
e
a ninguém cabe calá-lo:
trago-o
como herança no sangue
que
pulsa e sangra
nos
ombros do mundo
meu
poema não faz silêncio
e
a ninguém cabe calá-lo:
trago-o
como navalha que corta
o
curso provinciano das horas
meu
poema não faz silêncio
e
a ninguém cabe calá-lo:
trago-o
de corpo e alma
pujante,
visceral
meu
poema não faz silêncio
e
a ninguém cabe calá-lo:
trago-o
como primavera
em
cada amanhecer
*In “À espera
do último girassol & outros poemas”, 2011.
Outros tempos*
Frederico
Spencer
Imagem: Reprodução |
Construir
novos sonhos
nesses
tempos de silos
vazios,
meus olhos
pousaram
leve
sobre
os teus
quando
chegastes
foi
bruma, rastro de pólvora
também,
no paiol vazio
a
lembrança da chama se acendeu:
clarão
fugidio das sombras
na
trama da luz que se estendeu
te
desenhou na minha caverna, vazia.
*do Livro inédito “Código de
Barras”.
Abandono
poético
Márcia Maracajá*
Imagem: Reprodução |
O poeta me abandonou
Não entra mais nos meus espaços
Vácuos
Preenchidos
Virtuais
Nenhum deles
O poeta silenciou suas letras
Pra mim tão sua
Nas horas que fui dele
Nas horas que quis
Eu dele ser minha
Em sua poesia
Poeta mau
Me cativou e agora
Ao abandono estou entregue
Em saudade
Posta para em derradeiro suspiro
A escrever sobre a poesia que não foi
Nem será por nós
Nada a me saciar neste dia abafado
A fruta que degustaria
Com o líquido quente
Adoça a boca de outra
E o poeta metaforiza o calor
De sua paixão
Poeta, me deixaste
Eu toda sua em saudade
Do beijo
Do abraço
Do amor
Das horas mergulhadas em prosa e verso
Nas madrugadas e dias inteiros
Do que não vivemos
Vácuos
Preenchidos
Virtuais
Nenhum deles
O poeta silenciou suas letras
Pra mim tão sua
Nas horas que fui dele
Nas horas que quis
Eu dele ser minha
Em sua poesia
Poeta mau
Me cativou e agora
Ao abandono estou entregue
Em saudade
Posta para em derradeiro suspiro
A escrever sobre a poesia que não foi
Nem será por nós
Nada a me saciar neste dia abafado
A fruta que degustaria
Com o líquido quente
Adoça a boca de outra
E o poeta metaforiza o calor
De sua paixão
Poeta, me deixaste
Eu toda sua em saudade
Do beijo
Do abraço
Do amor
Das horas mergulhadas em prosa e verso
Nas madrugadas e dias inteiros
Do que não vivemos
*Márcia Maracajá é
poeta e edita o “blog Márcia Maracajá” (PE)
Liberdade
Márcia Sanchez Luz*
Img: Ninfa Azul Sonhando – Ana Luisa Kaminski |
Para alcançar-te em mares, destemido
senhor dos próprios atos, como faço?
Se vou buscar-te a nado, adormecido
fica meu corpo todo. E sem teus braços
como é que posso estar sem ti comigo?
Ao te buscar descubro que o fracasso
é não tentar (ainda que o castigo
venha) lutar pelo meu próprio espaço.
Assim nos é possível prosseguir
(mesmo que por caminhos diferentes)
a vida que escolhemos partilhar.
Amor não é tristeza a nos trair
os sonhos e os desejos mais ardentes.
Quem tem
grilhões não sabe o que é amar.
*Márcia Sanchez Luz é poeta e edita o “blog
O Imaginário” (SP)
Diga aí!
“Enquanto meio de conservação do indivíduo, o
intelecto desenvolve suas forças principais na dissimulação; esta é, com
efeito, o meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos robustos, subsistem,
na medida em que lhes é recusada a possibilidade da luta pela existência com os
cornos ou os dentes de um predador. Com o homem esta arte da dissimulação
atinge o auge.” (Friedrich Nietzsche – Filósofo
alemão)
Diga lá!
“A modernidade nos deixou como herança um
enorme desenvolvimento tecnológico, mas nos deixou também uma absurda crise
social, ambiental, econômica, por isso desmorona em consequência de sua própria
exaustão. A sociedade moderna que nasceu e se constituiu como promessa de
futuro, um futuro melhor construído pela ciência, acabou de fato não
privilegiando ninguém: diante da violência em grande escala e da iminência de
desastres ecológicos, somos todos iguais.” (Viviane Mosé – Mestra e Doutora em Filosofia)
Da Preguiça
Reviewed by Natanael Lima Jr
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09:26
Rating:
Inicia-se com um show de Marcos Accioly sobre a preguiça. Fiquei encantada com o texto. O Nathanael mostrou o barulho de seu silencioso poema, muito lindo. Seguindo a encantar a intensidade de Frederico Spencer e a sempre marcante poesia de Márcia Maracajá que sempre me convence.Encerrando com o brilho de Márcia Sanchez Luz sobre o amar. Perfeito. Ler e reler o que encanta e entender como a alma pede que entendamos. "Diga aí" e "Diga lá" sempre estimulando o pensar. E assim começamos uma semana, pensando, num final de noite, antes da cama que já nos chama. Boa semana, boa Páscoa a todos.
ResponderExcluirEstamos nos deliciando do seu comentário, poético-literário que só nos deixa mais entusiasmado para continuar a nossa jornada de semear poesias no coração da vida
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