Cyl Gallindo: Uma Saudade
por Fátima Quintas*
Cyl Gallindo
(1935 – 2013)
Jornalista, contista, poeta, cronista,
sociólogo, Cyl Gallindo partiu no crepúsculo do dia 4 de fevereiro. Poderia ter
sido um dia qualquer, mas a tarde exalava um cheiro diferente, de ciprestes
enfileirados no túnel sem nome. A árvore, esguia e alta, recebia a aragem de um
vento mais forte. As folhas baloiçavam indicando o ocaso das horas. Alguém
olhava para o céu, o menino brincava com o pião, o velho fumava o cachimbo, ar
difuso, sem concentração. A moça derramava uma lágrima, estava triste. Ela
sabia que o pai dormia mais profundamente. Respirou fundo e fitou a face
derradeira. Havia paz... muita paz...
*
Nesta
hora de despedida, lembro-me dos versos de Camões: Quem morre não morreu, partiu primeiro. A poética quinhentista leva
a reflexões. Somos tão frágeis e transitórios que o instante se desfaz sem
jamais ser configurado. A contingência existencial confunde a nossa caminhada,
transformando-a em um tempo indefinido. Clarice Lispector já lutava por
entender o átimo dos segundos. E as horas se diluíam numa travessia impossível
de absorver. Remeto a poíesis de Cyl
Gallindo: Serei o último poeta a me
sentar à mesa/ O verso só vem a mim depois de cristalizado. A efemeridade
ontológica corresponde à única verdade que possuímos; angústia que aflige a
humanidade. Correspondeu igualmente à minha última conversa com o amigo Cyl. Nos
jardins da Academia Pernambucana de Letras dialogamos metafisicamente. Diálogo
simples, sem afetações. Como ele gostava.
Definir o homem Cyl não é difícil.
Nele habitavam o gesto solidário, a espontaneidade, o jeito simples de entender
a vida. Toda simplicidade beira a sabedoria. E numa sequência inevitável deságua
na plenitude. A plenitude de um cotidiano repleto daquilo que o querido
acadêmico desejou fazer. Sem o artifício da superficialidade, adentrou veredas
que o apraziam: estendeu a mão sempre aos que necessitavam, não diferenciou os
homens, mas agregou-os num mesmo sentimento. O consolo certo no momento certo. E
o humor, procurava adicioná-lo de modo a amenizar o sofrimento do outro. Manifestava
uma forte ligação com a natureza como se dela os seres vivos dependessem
incondicionalmente. Pois não é bom que o
homem só esteja:/o homem e a mulher tecem harmonia/onde quer que o amor buscado
seja.
A justiça social o inflamava, elemento
de militância permanente. Então surgia o sociólogo de bandeira em punho. Usou a
palavra não somente como um canal redentor, mas também para denunciar as
distorções, lutar pelos oprimidos e construir um mundo melhor: Meus versos são gente pobre/ e convivem com
a fome/nos brinquedos da infância.
Retinha a grandeza dos fortes. Respeitava
a energia cósmica e exaltava a humildade. Aliás, a humildade fê-lo grande e
portentoso na maneira de consolidar amizades, atento à compreensão e ao
entendimento do entorno. Jamais arrogante; defendia o humanismo em todos os
momentos. Seus contos, crônicas, poesias transcrevem o respeito à alteridade,
porque em Cyl medravam arroubos infantis, generosos, francos. Homem de luta, em
estado de alerta, a apontar qualquer tipo de preconceito: Mas que os abutres não se iludam,/ pois não joguei sobre a mesa/ todos
os naipes do Grito-Gesto. O “Grito-Gesto” não calou, querido amigo.
Continua bradando no silêncio da morte. Haverá maior silêncio e maior estrondo
que o encantamento?
Nasceu em Buíque e de lá nunca se
afastou. Viajou mundo afora, mas Buíque morava dentro dele, fincando raízes que
se disseminaram pelos caminhos de terra ou de asfalto. O rural e o urbano num
só indivíduo, talvez mais o rural, sertanejo febril diante do êxtase da
natureza. Como dizia Baudelaire, a
infância é a nossa pátria e nunca nos desgarramos de seus efeitos. Até mesmo os
expatriados como Joice e Ibsen retornaram à gênese. Buíque era o remanso do
guerreiro, origem, eterno retorno. Joaquim Nabuco por acaso não alicerçou sua
história sob as hostes do Engenho Massangana? Cyl não foi diferente. A infância ofertou-lhe
o fermento da construção da vida. Afirmou: O
segredo é necessário para o jogo e para a luta. Seria a infância o segredo contido?
Meu amigo: você não morrerá. Quem escreve se inscreve na humanidade através da letra, das palavras e do
pensamento que se espalharão pelo cosmos. Sua biografia reforça sentimentos atávicos,
telúricos, nobres. E o que mais o humano pode oferecer ao universo? De Buíque
para o mundo, eis o seu indelével traçado. Cyl Gallindo não encerrou a sua voz: Em cada carta há duas faces/ que os homens
tentam beijar/mas enquanto o trunfo estiver retido/ a canção será menor. O
trunfo, meu saudoso amigo, você levou para o poema não findar.
*Fátima
Quintas é
escritora e presidente da Academia Pernambucana de Letras
TRÊS POEMAS DE CYL
GALLINDO
A CONSERVAÇÃO DO GRITO-GESTO
Poema VII
Poema VII
Serei o último poeta a me sentar à mesa
o verso só vem a mim depois de cristalizado.
Meus versos são gente pobre
e convivem com a fome
nos brinquedos da infância.
São os meus versos surrados
em plenas ruas do mundo
e confidenciam o seu corpo
à intimidade do relento.
Mas que os abutres não se iludam,
pois não joguei sobre a mesa
todos os naipes do Grito-Gesto:
o segredo é necessário para o jogo e para a luta.
Dei apenas o meu canto feito de estrela e de
sangue:
no amor nunca tem noites
nem esquinas de escuridão!
Em cada carta há duas faces
que os homens tentam beijar
mas enquanto o trunfo estiver retido
a canção será menor...
Vamos traçar novamente a esperança e a vontade
ROCHEDO HUMANO
Poema III
Pois não é
bom que o homem só esteja:
o homem e a
mulher tecem harmonia
onde quer
que o amor buscado seja.
Se a partir
da aurora nasce o dia,
é forçoso,
portanto, estar atento
à luz que
dos olhos teus se irradia.
Para cravar
em mim vital momento
da parte
que da vida é minha vida
e no tear
das ilusões é meu alento,
eu não devo
olvidar que em toda a lida
lapidei o
meu corpo em tua busca
e filtrei a
solidão que me castiga.
Mas a
alegria de ter-te é mais antiga!
CIA RETIDA
Limitaram
teu corpo com cal e pedra,
quando
ainda do teu seio brotava infância,
mas não te
destruíram. E no espaço, além,
pelo fio
das horas tu tecias
tua imagem,
mais que verde, de esperança.
Esta imagem
de mansinho se espalhou,
com força e
mais bela, no meu sangue,
e nas
tardes de outono, com teu nome,
distraía a
primavera quase exangue.
Não se
rendam jamais à pedra e à cal,
que
argamassa se faz, cumprindo horrores.
Cantemos o
outono e a primavera,
que são
feitos de cantos e de amores.
Vês! que
num peito, às vezes, comprimido,
entre
algozes e angústias, brotam flores.
É CARNAVAL!
PERNAMBUCO, ESTADO DE
ALEGRIA
Cyl Gallindo: Uma Saudade
Reviewed by Natanael Lima Jr
on
23:14
Rating:
Grande poeta!
ResponderExcluirGrande poeta!
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