O Poema





por José Tolentino Mendonça*



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O poema é um exercício de dissidência, uma profissão de incredulidade na omnipotência do visível, do estável, do apreendido. O poema é uma forma de apostasia. Não há poema verdadeiro que não torne o sujeito um foragido. O poema obriga a pernoitar na solidão dos bosques, em campos nevados, por orlas intactas. Que outra verdade existe no mundo para lá daquela que não pertence a este mundo?

O poema não busca o inexprimível: não há piedoso que, na agitação da sua piedade, não o procure. O poema devolve o inexprimível. O poema não alcança aquela pureza que fascina o mundo. O poema abraça precisamente aquela impureza que o mundo repudia.

(in A noite abre meus olhos)


*José Tolentino Mendonça é teólogo e poeta português






POEMAS DE NATANAEL LIMA JR, ANTONIO DE CAMPOS, CÍCERO MELO, FREDERICO SPENCER, JUAREIZ CORREYA E GERUSA LEAL




Imagem: Reprodução




De repente o medo*
Natanael Lima Jr


despertamos sobre olhares
aflitos de medo:
um na rua
outro no beco
com as horas marcadas de pavor
desde cedo

caminhamos
e a vida é fria...
nas madrugadas vazias
dos bêbados lambendo o chão

cobrimo-nos de medo
da noite que jugula o dia
e apavorada(mente)
arma a armadilha da traição

a madrugada, a chuva, o frio
e de repente o medo;
o medo de viver
o medo de morrer
e o medo do medo

e ninguém se condene
de morrer de medo antecipado


(madrugada de dezembro/2009)

*do livro “À espera do último girassol & outros poemas”





Companheiro de viagem
Antonio de Campos

                 à memória de Walmor Chagas



Cabelos brancos
como nuvens de gravura chinesa,
alguns cabelos tintos agora –

gravura sem nuvens,
fim de inverno

janeiro 18, 2013





A terceira pele*
Cícero Melo


Procuro a carne da palavra adusta,
Aquela que insorvida se consome,
Aquela cujo selo cai à fronte
Das palavras irmãs e se incrusta
Nas pedras da razão, no verbo nômade,
No dedilhar de febres e de angústias,
No delírio senil da sombra rústica,
Longa noite de sal e medo insone.
Procuro a carne da palavra augusta,
Aquela que se eleve e se prolongue
Em mistério sutil, sedosa e onde
Repousa o mar, celebração e bússola.
Procuro a carne da palavra morta
Que se aviva, me bate e me conforta.

*O verbo Sitiado. Ed. Bagaço, 1986





Tarde de domingo*
Frederico Spencer


A saudade bate
à porta, um poema sobre o amor
ao final da tarde, é domingo
descanso, tudo já passou
neste laranja
que arde, sobre os cílios:
ligeiras lembranças
nos trilhos desta estação
tramando na dança
desta tarde vadia.

*do livro “Abril Sitiado”





A palavra mais humana dos poetas
Juareiz Correya


Os poetas não são santos
e não fazem milagres em suas cidades.
Escrevem porque  não sabem fazer outra coisa
fabricar um navio um avião
plantar uma árvore
parir um filho
escrevem porque é necessário para suas vidas
e para ninguém mais
e sem escrever os poetas não respiram
- um bocado de barro que não anda
um animal que não sonha e não procria.
Os poetas escrevem
porque os homens precisam das suas palavras
e são tão necessitados de poesia
(como o sopro inicial da criação)
que não sabem sequer pronunciar seu nome.
Assim os homens e as mulheres e as cidades
não sabem quem são os poetas quando eles nascem
e passarão todos os séculos para que saibam um dia
que a poesia nasceu
quando a humanidade nascia.

(Santo Amaro, Recife/
14 de novembro 2012)





Ex-finge
Gerusa Leal


percorre as veredas do meu corpo
verás que ainda há parte do humano
que fui quando assim fingia ser

tateia com vagar todos os flancos
desse ser tão incomum igual a ti

de quatro talvez me descortines
de quatro animais encontras partes
à minha humanidade amalgamada

cabeça e seios de mulher
corpo de touro (ou de cão se assim preferes)
garras de leão asas de ave
e essa imensa cauda de dragão

não temas, amado, inda sou eu
a mesma que desconhecendo, amastes
e se duvidas de mim, olha no espelho
verás que, enfim, me decifrastes




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