Miguel Torga
por Natanael Lima Jr*
Foto: Reprodução
Considerado uma das mais marcantes figuras da literatura portuguesa do século XX. Destacou-se como poeta, contista e memorialista, mas escreveu também romances, peças de teatro e ensaios.
Miguel Torga, pseudônimo de Adolfo Correia da Rocha, nasceu em São Martinho de Anta, a 12 de agosto de 1907 e faleceu em Coimbra, a 17 de janeiro de 1995. Pesou a escolha do seu pseudônimo a influência de dois grandes escritores espanhóis: Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno; já Torga é uma planta transmontana, urze campestre, cor de vinho, com as raízes muito fortes sob a aridez da rocha. Diz o poeta, “assim como eu sou duro e tenho raízes em rochas duras, rígidas”.
Emigrou para o Brasil em 1920, ainda com doze anos, para trabalhar na fazenda de um tio, proprietário de uma fazenda de café. Ao final de quatro anos, o tio patrocina seus estudos em Leopoldina, devido sua notável inteligência. Em 1925, convicto que ele viria a ser doutor em Coimbra, o tio propôs-se pagar-lhe os estudos como recompensa dos seus esforços, o que o levou a regressar a Portugal e concluir seus estudos.
Entra para a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, em 1928 e publica o seu primeiro livro de poemas, Ansiedade. No ano seguinte, com vinte e dois anos, deu início à colaboração na revista Presença, folha de arte e crítica, fundada em 1927 pelo grupo literário composto por José Régio, Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, a revista representava uma bandeira literária do grupo modernista e bandeira libertária da revolução modernista.
Em 1930 deixa de colaborar com a revista por razões de discordância estética e razões de liberdade humana, assumindo uma posição independente.
A obra de Miguel Torga traduz sua rebeldia contra as injustiças e seu inconformismo diante dos abusos de poder. Ela também tem um caráter humanista, nascido nas serras transmontanas, entre os trabalhadores rurais, assistindo aos ciclos de perpetuação da natureza: "sem o homem, não haveria searas e não haveria vinhas, não haveria toda a paisagem duriense, feita de socalcos nas rochas, obra do esforço de muitas gerações de trabalho humano".
Autor prolífico, publicou mais de cinquenta livros ao longo de seis décadas e foi várias vezes indicado ao Prêmio Nobel de Literatura. Alguns de seus livros, como Bichos, contam com mais de vinte edições. Deixa 16 volumes dos seus Diários, 4 de Teatros, 15 de Poesia e 20 de Prosa. Diversas obras de Torga foram traduzidas nas principais línguas de todo mundo, incluindo o chinês.
Natanael Lima Jr é poeta e editor do blog
DOIS POEMAS DE MIGUEL
TORGA
Aos Poetas
Somos nós
As humanas cigarras.
Nós,
Desde o tempo de Esopo conhecidos...
Nós,
Preguiçosos insetos perseguidos.
Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos,
A passar...
Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras.
Asas que em certas horas
Palpitam.
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura.
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.
Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz.
Vinho que não é meu,
Mas sim do mosto que a beleza traz.
E vos digo e conjuro que canteis.
Que sejais menestréis
Duma gesta de amor universal.
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural.
Homens de toda a terra sem fronteiras.
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele.
Crias de Adão e Eva verdadeiras.
Homens da torre de Babel.
Homens do dia-a-dia
Que levantem paredes de ilusão.
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão.
Miguel Torga, in 'Odes'
As humanas cigarras.
Nós,
Desde o tempo de Esopo conhecidos...
Nós,
Preguiçosos insetos perseguidos.
Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos,
A passar...
Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras.
Asas que em certas horas
Palpitam.
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura.
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.
Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz.
Vinho que não é meu,
Mas sim do mosto que a beleza traz.
E vos digo e conjuro que canteis.
Que sejais menestréis
Duma gesta de amor universal.
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural.
Homens de toda a terra sem fronteiras.
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele.
Crias de Adão e Eva verdadeiras.
Homens da torre de Babel.
Homens do dia-a-dia
Que levantem paredes de ilusão.
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão.
Miguel Torga, in 'Odes'
Livro de horas
Aqui,
diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão em leme da nau
Nesta deriva em que vou.
Me confesso
Possesso
Das virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão em leme da nau
Nesta deriva em que vou.
Me confesso
Possesso
Das virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.
Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
E das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.
Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser Homem.
De ser o anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!
POEMAS DE JOAQUIM
CARDOZO, ARNALDO TOBIAS, LUCILA NOGUEIRA E FREDERICO SPENCER
Chuva
de caju*
Joaquim Cardozo (PE)
1897 - 1978
Como te chamas, pequena chuva inconstante e breve?
Como te chamas, dize, chuva simples e leve?
Teresa? Maria?
Entra, invade a casa, molha o chão,
Molha a mesa e os livros.
Sei de onde vens, sei por onde andaste.
Vens dos subúrbios distantes, dos sítios aromáticos
Onde as mangueiras florescem, onde há cajus e mangabas,
Onde os coqueiros se aprumam nos baldes dos viveiros
e em noites de lua cheia passam rondando os maruins:
Lama viva, espírito do ar noturno do mangue.
Invade a casa, molha o chão,
Muito me agrada a tua companhia,
Porque eu te quero muito bem, doce chuva,
Quer te chames Teresa ou Maria.
*poema “Chuva de Caju” de Joaquim Cardozo, 1936
Poema atítulo
Arnaldo Tobias
(PE)
1939
– 2002
esse
povo passivo
até
certo ponto
povo
indeciso
até
nos encontros
essa
gente moída
em
moe/dor
de
carne dura
também
espremida
em
espreme/dor
de
frutas ácidas
essa
prole/plebe
pobre
na pele e osso
na
vida insossa
e
na cegueira
herdeira
(mas
a alma nobre)
um
dia ainda vence.
Imagem:
Reprodução
[...]
Fecha
os olhos e beija-me de modo frágil
porque
tudo se tornou mais urgente
desde
o Museu Serralves
e
os desenhos rosa do mármore
revelam
caminhos recifenses da pele emparedada
sonhando
o êxtase da ressurreição.
O
teu olhar tem o mesmo brilho de um atirador de facas
enquanto
giro a roda sobre mim mesma
dramaticamente
presa nas cordas
ao
som de Tchaikovski na Abertura 1812.
O
teu olhar é como um sino milenarmente gigante
rodando
os patamares da Régua
até
a calçada de Copacabana,
o
teu olhar é como um barco viking pedindo enseada
desde
os coqueiros do Recife
até
os verdes pinheiros galegos
que
deram sombra ao romance dos meus bisavós.
Sei
que hás de vir sob a neve enluarada
conduzindo
lanterna no pescoço do cavalo branco
e
me tomarás a galope em tua capa de veludo escuro
enquanto
no circo abandonado
a
trapezista continuará dormindo
completamente
nua
na
jaula dos leões.
Sei
que hás de vir ferozmente enfeitiçado
nesse
rapto anunciado para cruzar as águas do Capibaribe ao Douro
e
dançaremos à luz de um candelabro de sete braços
até
o sol secar as sete saias
tiradas
ao som de sete violinos
durante
as sete noites da encantação.
Mas
não demores tanto.
Que
amar é a arte
de
se fazer presente
e
tudo que precisamos
é
de poesia
loucura
e ênfase
no
ato heroico de reabrir as portas
da
carne mansa que se equivocou.
Que
o corpo – dizem – já não será o mesmo
e
o que era assédio pode retemperar-se em fuga
e
até nós – dizem – não seremos os mesmos
no
estranho instante de raio laser
em
que chegar sem aviso o prazer da manhã.
(poema do livro “Mas não demores tanto”, da
poetisa Lucila Nogueira)
A lambedeira
Frederico Spencer
Há
dentes nesta língua
de aço,
sulco do sertão
sob o
sol, para cada um sobrou
este
pouco quinhão – um deserto de lâminas
nesta
vastidão
de
nada, sobre a terra rachada
a lama
das carcaças dos bichos
e das
plantas cinzas
réstias
de pessoas embaçadas
ao
vento clamando perdão
por
desfiar pedras
na
terra em brasa
há
dentes nesta lambedeira
do
sertão, o sol:
-
Também do suor vive o trabalho
destilando
as gentes nestas terras.
Também
do suor dessas gentes
se
alimenta do talho o vão patrão
neste
relicário, sertão.
Miguel Torga
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