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Poesia brasileira hoje

por Manuel da Costa Pinto*



Existem duas ideias sobre a poesia brasileira que são consensuais, a ponto de terem virado lugares-comuns. A primeira diz que um de seus traços dominantes é o diálogo cerrado com a tradição. Mas não qualquer tradição. O marco zero seria a poesia que emergiu com a Semana de Arte Moderna de 22. A segunda idéia, decorrente da primeira, é que essa linguagem modernista se bifurca em dois eixos principais: uma vertente mais lírica, subjetiva, articulada em torno de Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade; e outra mais objetiva, experimental, formalista, representada por Oswald de Andrade, João Cabral de Melo Neto e a poesia concreta.
Esse esquema tem função meramente didática. Ninguém pode descartar a influência exercida ainda hoje pela poesia anterior à Semana de 22, assim como seria grosseiro ignorar o intenso trabalho formal de Bandeira (para não falar de Drummond, que reúne virtualmente todas as variantes da poesia moderna – e não apenas brasileira).
Mas esse enquadramento permite fazer algumas ilações. De fato, nossos poetas são leitores atentos, ou seja, leem criticamente o repertório da poesia brasileira, assimilam procedimentos formais e compartilham preocupações temáticas.
Como decorrência, todas as manifestações surgidas nas últimas décadas trazem entranhada uma poética, uma teoria da poesia, a idéia de que o trabalho criativo não se dá no vazio – e o surgimento, nos últimos anos, de revistas de criação literária torna explícita essa dimensão autorreflexiva da poesia atual.
A preocupação teórica e metalinguística é mais perceptível nos remanescentes da poesia concreta e nos autores que estiveram ou continuam ligados a suas propostas estéticas. Mas a atenção aos componentes estruturais da palavra poética não é privilégio dos concretos e consolida uma visão, essencialmente moderna, da poesia como artefato no qual os outros componentes (subjetivos, sociais, religiosos, entre outros) estão subordinados ao trabalho da forma.
Mesmo poetas que trazem propostas socialmente questionadoras – como aqueles ligados à poesia marginal dos anos 70 e ao tropicalismo, ou influenciados pelo movimento beatnik (surgido nos EUA) – não se dissociam dessa consciência crítica que faz que a poesia se contraponha às disformidades do mundo ordinário e à linguagem que o perpetua.
De nomes consagrados como Manuel de Barros, Ferreira Gullar e os irmãos Haroldo e Augusto de Campos a poetas das novas gerações como Age de Carvalho, Carlito Azevedo e Claudia Roquette-Pinto, portanto, a poesia brasileira apresenta um afresco variadíssimo de tendências que se interceptam e se influenciam reciprocamente.

*Manuel da Costa Pinto é mestre em teoria literária e literatura comparada pela USP. Autor de Albert Camus – Um elogio do Ensaio (Ateliê Editorial, 1998), organizou e traduziu a Antologia A Inteligência e o Cadafalso e Outros Ensaios, de Albert Camus (Record, 1998), e escreveu a Antologia Comentada da Poesia Brasileira do Século 21 (Publifolha, 2006). Atualmente, é editor dos programas “Entrelinhas” e “Letra Livre”, ambos da TV Cultura, e editor do “Guia de Livros e Filmes”, da Folha de São Paulo





Carlos Drummond de Andrade

1902 – 1987


(...) Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
(...) E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.
(Resíduo)



Mário de Andrade
1893-1945

Descobrimento


Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.


Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!
muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.


Esse homem é brasileiro que nem eu.



João Cabral de Melo Neto
1920 - 1999



"...E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina."
(Morte e Vida Severina)



Décio Pignatari
(1927)

JANEIRO/FEVEREIRO
Calendário Philips 1980



Nem só a cav
idade da boca
Nem só a língua

Nem só os dentes
e os lábios
fazem a língua
Ouça
as mãos
tecendo a língua
e sua linguagem
É a língua
têxtil

O texto
que sai das
mãos
sem palavras





Ferreira Gullar

(1930)


Traduzir-se


Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?





Paulo Leminski

(1944 – 1989)


Poetas Velhos

 

Bom dia, poetas velhos.
Me deixem na boca
o gosto dos versos
mais fortes que não farei.

Dia vai vir que os saiba
tão bem que vos cite
como quem tê-los
um tanto feito também,
acredite.







 
Manuel Bandeira
1886 - 1968


NEOLOGISMO

Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.

Petrópolis 25/2/1947






Cyl Gallindo*


(1935)


ASCENSÃO DE ASCENSO*
Ascenso,
como é belo acabar assim:
sem perder o amor,
sem perder a alma,
sem perder o sorriso,
sem perder a vida!

Tuas cavalhadas correm no espaço
de um tempo imensurável,
com palavras inesquecíveis!
Ecoam no etéreo,
pedaços de teus soluços...
--sorrindo e chorando
pelo povo universal que construíste
de sofrimento, amor e sonho!

Ascenso,
como é belo acabar assim:
sempre mais amigo,
sempre mais poeta
do pobre ou do rico,
duma prostituta morena e bela
ou dum bêbado de fim de feira,
dum boneco de barro,
do retirante enganado,
do Natal concreto.

Ascenso,
como é belo acabar assim:
as nuvens no céu,
-- o céu nesta hora foi o Nordeste –
fazendo-se de escada,
escada.escadinha,
como escamas de peixe,
prá Ascenso, o velho menino
que da terra se cansou...
E na terra,
as lágrimas do teu povo,
aguando os lírios...

os lrios,
as rosas,
o bomba-meu-boi...
as saudades também...

Recife, 05 de maio de 1965.


* Cyl Gallindo é poeta, contista pernambucano, autor de vários ensaios e estudos da maior importância para a história e a sociologia brasileira. Membro da Academia Pernambucana de Letras.
*Do livro A Conservação do Grito-Gesto, 1971. Publicado na revista Letras 1, da Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil – Rio de Janeiro – Anexo ao ensaio Ascenso Ferreira: O Poeta e o Seu Silêncio, de José Clécio Quesada, RJ / outubro, 1965.




Douglas Menezes*



DEPURANDO AGOSTO

  Juliana não nasceu em julho. Agosto prenuncia a primavera. Os ventos fortes não só movem moinhos, mas afastam os males todos da vida. Assim é Agosto de Mauro poeta Mota, poeta maior. Frio caloroso, como abraço infantil. Nas vozes da descrença, a crença otimista em “quando setembro chegar”. Na lembrança do menino velho os ensaios alegres para o Sete de Setembro, manhãs cheirosas na estrada de Barreiros. Também em Agosto, o segredo da primeira paixão, nunca revelado, a voz do alumbramento inicial, na frase que foi uma senha: “Como você é tímido!” Também em Agosto o olhar peixinhos no canal que corta o Epitácio Pessoa. Ela junto, também em silêncio. Recolhimento que sempre marcou o menino retraído.
   Agosto dos meus sonhos de futuro, nem sempre realizados. Agosto que trouxe o título ao meu time dez anos depois. Agosto de dona Tereza, a mãe, e do irmão. Também do menino ansioso nas noites anteriores às manhãs radiantes das filmagens do filme O Progresso do irmão Roberto, nos canaviais ainda doces do Cabo dessa minha infância. O menino ator, junto com a prima Marisa. O menino sentindo-se valorizado em mais um sonho que não se fez verdade. O menino de rumo incerto, com medo de papafigo e alma de outro mundo se imaginava ator, e Agosto fez isso.
   Agosto é bom. É só querer que seja. Nele, os primeiros acordes de violão mal tocado. Nele, a algazarra dos adolescentes no retorno ao aprendizado das aulas. Chuva pouca, em Agosto, com cheiro de terra molhada e fruto verdoso. Mês do gosto maior, na abertura do sol brilhante de meses. Nunca tempestuoso. Enseada agitada, um pouco, preparando a tranquilidade acolhedora dos corpos morenos.
    Nele, o destemor das chuvas. Nele, o reconstruir de julho, voz de esperança dos que perderam tudo. Agosto sem o céu carrancudo dando carão na gente. Agosto dos namorados sem guarda-chuvas, já nas praças colorindo a vida. Agosto branco, puro, depurado, anunciando a primavera.
*Douglas Menezes é escritor e membro da Academia Cabense de Letras.


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