ENTREVISTA – EDMILSON SANCHES: “ONTEM, HOJE E AMANHÃ, TODOS OS DIAS SÃO GONÇALVES”
Postado por DCP em 11/08/2023
*Entrevista concedida ao site www.regiaotocantina.com.br
“Hoje, o Maranhão e o Brasil relembram e comemoram o bicentenário de Gonçalves Dias, que nasceu em Caxias, no Maranhão, mudou-se na juventude para Portugal, formou-se em Direito e, mais do que tudo, tornou-se o mais importante poeta da literatura brasileira, dono do poema mais conhecido de toda a nossa literatura – a célebre “Canção do Exílio”. Para comemorar esta data tão especial, o site Região Tocantina traz uma entrevista com o escritor Edmilson Sanches, caxiense como ele, e profundo conhecedor da história e da obra gonçalvina, que rememora fatos da vida do poeta, aponta coincidências entre os dois e esclarece, para quem por acaso ainda não saiba, por que este escritor é tão fundamental à constituição e consolidação da literatura do nosso país. Vale a leitura.”
Região Tocantina – Quem foi Gonçalves
Dias, antes de se tornar poeta?
Edmilson Sanches – Somente aos 18 e 19 anos é que, em Portugal, Gonçalves Dias se mostra poeta, declamando publicamente um poema seu e, depois, deixando publicar em revista outro trabalho seu. Sem considerar o provérbio que afirma que poetas nascem e só o orador se torna, se faz, Antônio Gonçalves Dias foi antes, em sua primeira infância, até os dois anos, a criança “que ninguém educou” e que “cresceu qual cresce a planta em terra inculta”, como está em seu poema “Miserrimus”. Foram dois anos aos cuidados da mãe, Vicência, em mata praticamente virgem, sem a presença do pai, o comerciante português João Manuel, que dera um jeito de retornar para Portugal naquele segundo semestre de 1823, já que não queria ou não podia pagar as multas impostas após as lutas pela adesão de Caxias à Independência do Brasil. Do terceiro ao sexto ano vive Gonçalves Dias com a mãe e o pai, que retornara para o Brasil, para Caxias. A família ocupava uma casa com sobrado e tinha, ao lado, a mercearia. Mas a aparente normalidade familiar logo se iria dissipar: se, bebê, vivera sem a presença do pai, agora, menino, Gonçalves Dias aprenderia a injusta e dura lição de não mais ter por perto a mãe — de quem tanto gostava. Em lugar da mãe, a madrasta, pela nova união de João Manuel, em 1829. Os “laços de família” tornaram-se “rotos na infância”, como qualifica em seu poema “Saudades”. O que o fazia sofrer também o preparava para o que ainda vinha. Aos 10 anos, em 1833, o pai o coloca na mercearia. Gonçalves Dias já tinha tido aulas com o professor Joaquim Abreu e com um parente de seu pai, de nome Antônio, que, severo, lhe teria ensinado, entre outras coisas, a escrever com belas letras, a caligrafia. O jovem marçano atende os clientes e faz anotações das entradas e saídas de mercadorias. Atendendo e anotando, o garoto chama a atenção pela dedicação, inteligência, bom tratamento, o que, influenciado ou não pelos clientes, levou seu pai a matriculá-lo no curso do professor Ricardo Leão Sabino, seu terceiro professor em Caxias. Este se tornaria definidor nos estudos e na vida do menino Antônio, a ponto de Ricardo Leão fazer João Manuel, em 1837, e a madrasta, Adelaide, no ano seguinte, decidirem pela continuidade dos estudos de Gonçalves Dias em Portugal, para onde o menino veio em outubro de 1838, com 14 anos, fez estudos complementares até matricular-se e se formar no curso de Direito da Universidade de Coimbra, voltando para o Brasil em janeiro de 1845. Portanto, antes de se tornar poeta, Gonçalves Dias era o menino normal, pelas brincadeiras com os de sua idade, ali na Rua do Cisco, onde também morei, próximo à casa da família Gonçalves Dias. Se era um menino normal, pelas brincadeiras, era um garoto especial, pela aplicação e aprendizado nos estudos, a ponto de não haver mais o que lhe ensinar em Caxias — daí os adultos que admiravam o inteligente menino terem “pressionado” seu pai e a madrasta para o menino Antônio ir para Portugal. Entre o menino normal, das brincadeiras, e o garoto especial, dos estudos, houve o jovem “profissional”, no balcão da mercearia do pai. Brincar, trabalhar, estudar… Apesar dos dramas humanos, familiares, maternos, esse era o menino que crescia nas sendas do saber, do sentir, do sofrer — tudo isso tão presente, ressuscitado, assente na obra poética de Gonçalves Dias.
Região Tocantina – Por que Gonçalves
Dias é tão importante para a literatura brasileira?
Região Tocantina – Que análise você faz
das características da obra gonçalvina?
Edmilson Sanches – Dedico-me mais a
pesquisas historiográficas acerca da vida e obra de Gonçalves Dias do que
propriamente à análise literária ou crítica de sua produção textual. A obra
gonçalvina tinha tudo para ser um legado ainda mais rico e expressivo se, na
poesia, trabalhos como “Os Timbiras” estivessem completos, e, na prosa, a
acalentada “História dos Jesuítas”, para citar um só dois trabalho, houvesse
sido terminada e publicada. Também se
constituiriam em notável aporte às Ciências e às Letras (ao menos, à Literatura
técnica) os relatórios e outros documentos, muitos deles inéditos e perdidos,
que Gonçalves Dias elaborou, resultantes das missões oficiais, expedições e
viagens que fez Brasil adentro e mundo afora.
Região Tocantina – A que se atribui o
enorme sucesso do poema “Canção do Exílio”?
Edmilson Sanches – Neste mês de julho completam-se 180 anos de composição da “Canção do Exílio”. Gonçalves Dias ainda não fizera 20 anos quando escreveu esse poema, em julho de 1843. São apenas 24 versos, que formam cinco estrofes onde estão 113 palavras e 487 letras. Sua aparente simplicidade, quase simploriedade, não deixa entrever de imediato a sofisticação de forma e conteúdo que habita o poema, que já foi e ainda é objeto de anatomia, radiografia e tomografia literárias por diversos críticos, acadêmicos, escritores. Da ausência de adjetivos ao simbolismo do “aqui” e “cá” e seu antípoda “lá” — tudo parece já ter sido objeto de perquirição e esquadrinhamento na “Canção do Exílio” …, mas novos estudos, novas abordagens continuam surgindo. Em pesquisa que fiz para meu livro “A Canção do Brasil”, elenquei pelo menos 150 nomes que de algum modo abeberaram-se na “Canção do Exílio” quando do cometimento de seus poemas e outras produções literárias e artístico-culturais. Identifiquei autores de pelo menos 12 Estados brasileiros e deles recolhi pelo menos umas três dezenas de livros cujo título tem a ver com os versos ou o próprio nome do poema “Canção do Exílio”. Ressalte-se que o grande poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, em carta a Mário de Andrade, confessou que queria o verso “Minha terra tem palmeiras” como título de seu primeiro livro (“Alguma Poesia”, de 1930). E Mário de Andrade, em carta-resposta, diz ter adorado a ideia drummondiana (mas algo no meio do caminho mudou a decisão de Drummond, que, como se sabe, deu outro título à sua obra inicial). Como escrevo em “A Canção do Brasil”: “Com a circulação do livro ‘Primeiros Cantos’, em janeiro de 1847, a ‘Canção do Exílio’, que abre a obra, o nome de Gonçalves Dias passou a fixar-se indelevelmente no cenário literário brasileiro e lusófono em geral. Versos da ‘Canção’ foram se incorporando à alma brasílica — para dela não mais se despregarem. // Em quase 180 anos desde que foi composta e em 173 anos desde que foi exposta em livro, a ‘Canção do Exílio’ teve seu título e diversos versos seus apropriados de variadas maneiras por escritores e outras pessoas das Artes. // Como se confirmará neste pequeno livro, textos em prosa e, irmãmente, em verso(s) foram escritos a partir do título e das linhas e sentimentos da ‘Canção do Exílio’. Dos maiores e mais conhecidos nomes das Literatura Brasileira e lusófona até desconhecidos estudantes em salas de aula — todos, por inspiração e vontade pessoal ou por dever ou tarefa escolar, imergiram nas palavras e sentidos da ‘Canção’ e dela saíram molhados, úmidos ou no mínimo respingados de seus conteúdos. // Assim surgiram crônicas e outros textos em prosa, histórias em quadrinhos, objetos artísticos e, maiormente, obras em versos e livros diversos, todos recontando e recantando, ao modo de cada um — do encomiástico ao irônico –, o que lhes suscitaram as 24 linhas da ‘Canção do Exílio’. // Sequer importa se um ou outro texto critica, caçoa, faz pouco, parodia, parafraseia, embarca no trocadilho… — Até porque, já escrevi, o escritor cria não só a obra, mas ‘cria’ também a cobra criada, o crítico, este às vezes cítrico, azedo, amargo, ácido. Mas, repita-se, isso não importa. Importa que a obra criada ‘tocou’, ‘inspirou’, ‘sugeriu’, enfim, foi a razão, o “leitmotiv”, no mínimo uma referência para a composição do trabalho. Vale dizer, se não existisse a ‘Canção do Exílio’, determinadas composições literárias ou artísticas não existiriam. Simples assim. No caso da ‘Canção’, deixariam de existir não somente ‘determinadas’, mas muuuuitas, obras.”
Região Tocantina – Gonçalves Dias é
ainda uma leitura recomendada? Por quê?
Edmilson Sanches – Sim. Sem a obra de Gonçalves Dias não se daria, naquela primeira metade do século 19, o passo definidor, a obra demarcadora de uma Literatura para chamar de nossa — Literatura brasileira, com forma e conteúdo brasileiros. A obra de Gonçalves Dias já perpassou três séculos e em cada um deles, a partir de 1848, vem sendo motivo do interesse, da inspiração, das apropriações, reúsos, reciclagens e reutilizações… Trabalhos escolares e universitários, da graduação ao pós-doutoramento, passando por especializações, mestrados e doutorados, são feitos sobre o escritor caxiense e sua obra. É praticamente incontável o número de textos, de simples redações a volumosos livros, que se produzem e se publicam acerca do criador Gonçalves Dias, homem e autor, e suas criaturas, os livros que publicou, os muitos textos que escreveu, de poemas a cartas, de peças teatrais a relatórios científicos, de processos judiciais (causas que defendeu) à produtiva atividade jornalística, com textos publicados em jornais e revistas. A obra e a vida do caxiense Gonçalves Dias são uma Quéops verbal, existindo e resistindo no Tempo, ainda com segredos a decifrar e diversos modos de serem vistas, apreciadas, analisadas.
Região Tocantina – Este ano se comemora
o bicentenário do autor. Como você enxerga, no futuro, a imagem de Gonçalves
Dias?
Edmilson Sanches – Ainda que os estudos
e apropriações da obra de Gonçalves Dias rareassem, a História continuará
(re)lembrando o valor literário do caxiense, seu pioneirismo, sua contribuição
para o surgimento e existência de uma Literatura marcadamente brasileira.
Gonçalves Dias, com seu metro e meio de altura, elevou-se e alcançou dimensões
enormes, nunca antes havida, à época. Nem mesmo seus padecimentos físicos
(saúde) e emocionais (vida amorosa) o demoveram do, pode-se dizer, sentido de
missão que ele, na medida do possível, tão bem desempenhou, para enriquecimento
da nossa Poesia e Prosa, do nosso Teatro e Jornalismo, da nossa História e
Ciência, da Educação e Docência, da nossa Consciência brasílica. O futuro terá e manterá Gonçalves Dias, sua
imagem e sua importância, sua história e sua Obra. O futuro será sempre um vir
a ser, e Gonçalves Dias será sempre um ser a vir. Marcou o passado, mantém-se
no presente e, com certeza, resistirá no futuro. Ontem, hoje e amanhã, todos os
dias são Gonçalves…
Região Tocantina – Qual é a sua relação
pessoal com o poeta da “Canção do Tamoio”?
Edmilson Sanches – Sou da Rua da Palmeirinha, em Caxias — e palmeiras são parte do tema do poema mais conhecido de Gonçalves Dias. Depois, morei na Rua da Galiana — coincidentemente nome da mulher do imperador Carlos Magno, cuja história é contada em livro — “História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França”, do escritor medieval português Vasco de Lobeira –, livro este que foi o primeiro a ser lido por Gonçalves Dias… e também por mim (o livro de Gonçalves Dias lhe foi emprestado por um amigo, o caixeiro Raimundo, mas seu pai comprou-lhe um exemplar, tanto era o gosto do garoto por aquele romance de cavalaria; o meu, foi-me cedido por Seu Miguel, que era paraplégico e meu vizinho na Palmeirinha). No Brasil, a “Poesia Completa e Prosa Escolhida” de Gonçalves Dias, em papel-bíblia, saiu pela Editora José Aguilar em 1959, meu ano de nascimento. Em Caxias, na década de 1970, mudei-me para a Rua do Cisco (ou Rua Benedito Leite, no Centro da cidade), bem próximo da casa onde Gonçalves Dias morou dos 3 aos 13 anos, na mesma rua, de onde íamos para a escola — o Colégio São José — eu e um colega de turma, um dos filhos dos atuais proprietários da casa do menino Antônio nos meados da década de 1820 e a maior parte da década seguinte. Afora essas coincidências, o que, em termos pessoais, destaco positivamente em Gonçalves Dias, além de sua competência e beleza literárias como escritor, são, no dizer de sua biógrafa Lúcia Miguel Pereira, “a sua habitual independência, o seu marcado desapego dos interesses materiais”, o “fazer mais do que a sua obrigação”. São certos traços de seu caráter e personalidade, de suas atitudes e comportamento: integridade, honra, cumprimento do dever; não se deixar corromper; saber recusar o que lhe não parecia ser justo, mesmo quando necessitado de dinheiro… e, ainda, seu grande e decantado amor à sua terra, Caxias, ao Maranhão e ao Brasil. Conhecedor de vários idiomas — português, latim, francês, inglês, espanhol, italiano, alemão, tupi, e até flamengo, finlandês, dinamarquês, sueco e holandês –, Gonçalves Dias expressou-se de modo magistral e fluente na língua que seu gênio melhor dominava — a Poesia –, com o sentimento maior que dominava seu gênio — a Paixão.

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