O QUE É O QUÊ? *
Por Urariano Mota*
A qualidade da literatura do amigo
falecido rejeitava e rejeita qualquer bom-mocismo. Ele era um escritor em busca
do que estava além da autorrealização. Era o desejo de ser abraçado pelo valor
que lhe davam os leitores. Era, numa palavra, um homem igual a todo escritor,
nivelado ao melhor na praia deserta. Sinto o cheiro do perfume barato misturado
ao suor da sua passagem pela Praia dos Milagres à noite, quando a polícia
estava no seu encalço. O homem é maior que a sua circunstância, reflito. Sei
agora que há uma verdade essencial quando agimos solidários: o próximo é um ser
igual a nós mesmos. Assim me fere a violência de qualquer racismo. Assim me
ofende a humilhação aos marginalizados. Assim me fere a pergunta “quem me
elogia?”. Era a mesma de mim para mim e sozinho que me fazia de madrugada. Ele
era um companheiro de jornada, um camarada igual a mim, mas de modo mais franco
e aberto. E eu o convenci, porque do seu valor eu possuía a convicção. Mas nem
bêbado eu ousei lhe perguntar o mesmo. Agora, já não posso mais lhe perguntar.
As perguntas que não lhe fiz estão sem respostas. E o carro para.
Não estou preparado para ver o corpo da
pessoa com quem conversei no Bar Peneira. Só perguntas de monólogo cabem. Então
tudo se confunde. Para mim, há um contínuo de momentos em que me vejo num
terceiro, de um pesadelo. Encontro uma ex-namorada de Luiz do Carmo a quem não
conhecia, mas a quem abraço como um náufrago. As pessoas que nos são caras têm
isto, transmitem aos seus o afeto que lhes temos. Pergunto se ela viu o corpo,
me responde que não. É doloroso vê-lo, mas não posso fugir, mais uma vez, da
responsabilidade que ele me lançava. Antes, há 46 anos, para abrigá-lo na
pensão, quando os militares invadiram a casa da sua mãe. E as consequências
vindas daí, das quais repousar numa cama sobre o mimeógrafo clandestino foi a
mais leve. Mas agora, em um momento cruel, eu não sei, parece definitivo.
Então eu peço para ver o corpo do
senhor Luiz do Carmo no necrotério. Me respondem que não posso. Quero
protestar, mas no íntimo sei que é melhor assim. “Tempo, dá-me um tempo”. E
sigo para um bar à espera da hora e que ele vá para um caixão. E fico, ficamos,
eu, a minha mulher e a ex-namorada de Luiz do Carmo. Disfarço a dor com
perguntas objetivas a ela: como ele morreu? por quê?, e com isso pretendo um
caminho, uma causa, como se o fim não estivesse escrito para qualquer ser vivo.
“As pessoas não morrem assim, de repente, do nada”. Mas o nada é agora. Isto é
o nada. O que é o nada? Eu me faço perguntas como durante uma febre na
infância, quando perdi o sentido das palavras e quase fui à loucura: “o que é o
quê? quê?!”. É o nada. Então a negação da vida chega para todos. E me ponho a
perguntar as razões do seu falecimento, as circunstâncias. Amigos de outros
estados me telefonam, mas eu não lhes posso falar. Eu não quero lhes falar,
porque seria fazer desabar o mundo que construímos, para o bem ou para o mal.
Eu seria capaz de beber todo o álcool, até ir a nocaute. Mas eu não quero ficar
desacordado. Quem sabe se a esta altura não volte ao ringue para receber mais
pancadas. Então bebo e paro, paro e bebo, e bebo, até que a tarde voe, como o
tempo voa rápido, é uma ladeira a descer a mais de 40 anos por minuto. O dia
voa, a noite chega. E vem com um aviso: “ele já está no caixão”.
E vamos. A minha mulher me dá o braço
como aos enfermos se dá um braço. É muleta, mas eu estou forte. Para ser
estúpido e bêbado, estou muito forte. Para ser covarde e não enfrentar o
momento estou fortíssimo. Fortíssimo como a marca de um relógio em nossa
juventude. E vou a uma sala de
iluminação fraca. O que não é mais Luiz do Carmo está entre flores. O que foi,
eu sei. O que não é, é este sobre o qual os amigos têm os olhos com lágrimas.
Então, não sei de onde me vêm palavras que digo a ele me dirigindo a seus
filhos. Não sei bem o que falei, apenas possuo imagens que destaquei sobre o
escritor. O jornalista. O homem de partido. Mas acima de tudo o companheiro de
geração. Olho para o corpo de Luiz do Carmo, olho para os filhos, e só me vem o
mais íntimo, o que não posso falar. Eu sei e não posso, não devo, para não cair
no mais lamentável espetáculo que um homem pode cair. “Como escutar Ella
Fitzgerald? Você não tem vitrola”, ele me disse. O mais nu e mais íntimo, que
fala da entrega da alma ao melhor, à fruição da arte, ao espírito mais belo e
rebelde da juventude. Engasgo, e por estar engasgado sei que devo sair do
velório. A minha mulher me dá o braço. Me atormenta, mas não falo a pergunta
que escrevo agora:
- Para onde vamos?
*Do romance “A mais longa duração da
juventude”
*Urariano Mota é escritor e jornalista recifense. Autor dos romances “Soledad no Recife”,
“O filho renegado de Deus” e “A mais
longa duração da juventude”.

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