O AZUL POR TRÁS DA NOITE
24 de fevereiro de 2019 por Neilton Lima*
Carlos
Pena Filho/Imag.
Reprodução
Num
dos poemas deste livro, ele nos diz:
Onde
anda meu poeta / O dos sapatos azuis /
Que
aqueceu a minha alma / No pátio de Santa
Cruz?
No tempo de Carlos
Pena, Janice Japiassu
Feliz daquele que tem por missão
escrever a respeito da Arte, ainda mais se o tema escolhido é a poesia de um
poeta cativante como Carlos Pena Filho (1929-1960). É com ele que abrimos a
Coluna aqui presente: BARDOS DO CAPIBARIBE, a ser publicada neste espaço
virtual, e cujo objetivo é divulgar, através das palavras deste leitor, antes
de tudo, crítico por ofício, amante da Literatura pernambucana, produzida aqui
ou que tematiza a riqueza, muitas vezes ainda ignorada, de nossos escritores,
homens e mulheres ávidas de ideias, sonhos, imagens e sons, no intuito de,
junto a eles, invadirmos a íris e o coração dos leitores. De Pena Filho
selecionamos o basilar poema “Guia Prático da Cidade do Recife”, percebendo
neste o olhar do poeta sobre a cidade, seguindo as seguintes perspectivas: o
valor simbólico da cidade, o valor negativo, a fonte da poesia (o imaginário),
a descrição da cidade, entre outros temas que permeiam nosso olhar convidativo
ao leitor, (en)cantado neste caminhar poético.
No “Soneto das definições”, Pena Filho
assim nos alumbra: “Não falarei das coisas, mas de inventos / e de pacientes
buscas no esquisito./ Em breve, chegarei à cor do grito / à música das cores e
dos ventos”. Deste modo, percebemos na Obra do poeta, além da força lírica
aliada à preocupação social, uma consciência do fazer poético que abarca o
metapoema, pleno de sensualismo, erotismo e ironia, ora na forma do já
anunciado soneto, ora nos longos poemas livres e modernos, anunciadores do
drama vivido pelo nordestino ou nas cores de sua cidade imagem-imaginária,
destacando a cor azul, no infinito de seus versos. Ele, o “poeta da beleza”,
dionisíaco, no dizer de Ângelo Monteiro, poeta e filósofo alagoano, que também
fez de Pernambuco solo de vida. Pena Filho, fundador do Grupo de 50, segundo
Audálio Alves (próximo homenageado nesta Coluna), aliado às vozes de Olímpio
Bonald, Francisco Bandeira de Melo e Paulo Bandeira Cruz, entre outros.
O olhar para a cidade ou cantar sobre
ela é corrente entre diversos escritores, desde a Bíblia, passando pelos cantos
medievais, a Modernidade de Baudelaire, até os contemporâneos como Ítalo
Calvino, desaguando nas vozes nordestinas de Joaquim Cardozo, Ascenso Ferreira,
Mauro Mota, Manuel Bandeira, João Cabral, Lêdo Ivo, Augusto dos Anjos ou nestes
simples versos meus, que aqui compartilho: Recife / A negra alma dos teus
filhos / Na lama negra dos teus rios: / Veias caminhos esguios / Na sombra
desses andarilhos // É osso extenso exposto / Em cada ponte do teu rosto.
Pena Filho, o “Poeta do Azul”, ao
intitular o poema, publicado em 1959 no Livro Geral, como “Guia Prático da
Cidade do Recife”, faz homenagem a Gilberto Freyre e o “Guia Prático, Histórico
e Sentimental da Cidade do Recife, obra lançada em 1934, e neste diálogo intertextual,
Carlos escreve um longo poema, dividido em treze partes, com versos livres,
assim organizado: O início (intróito do nome da cidade e daqueles que a
ergueram); O navegador holandês (em que o passado mito-histórico encontra-se
com o presente); Manoel, João e Joaquim (louvação aos poetas Bandeira, grafado
ironicamente com “o”, Cabral e Cardozo, que imortalizaram em versos a cidade,
madrasta para eles); A praia (a pluralidade aquática da cidade cortada por rios
e banhada pelo mar); Subúrbios (onde as tecelãs de Mauro Mota trabalham a
vida); A lua (que assiste, de cima, a fome devorar a cidade, fome maior que
Ascenso e sua famosa gula); Igrejas (passeio histórico e turístico pelas
igrejas seculares, cujos versos as perpetuam e as denunciam); O bairro do
Recife (passada a face cristã, vê-se a pagã, cidade dos divinos prazeres
carnais); São José (bairro coração que o tempo esqueceu, e a memória guarda);
Chope (um dos versos mais declamados do poeta, símbolo e essência do ser que
nele habitava); Oradores (ironia ácida do poeta para os pseudo-intelectuias);
Secos & Molhados (a verve crítica aos usurpadores da cidade) e O fim
(lírico grito de dor para a cidade madrasta).
Chamado
por Luiz Carlos Monteiro de “poema-inventário”, a obra aqui analisada, através
do olhar do eu lírico, ora embebido de encantamento, ora crítico, vem resgatar
um espaço físico e humano do poeta e sua cidade. Do contexto histórico ele
resgata o fato e deste, cria o imaginário poético, em passagens dos versos
iniciais a cidade tomada no passado, no presente atemporal é apresentada “Hoje, serena, flutua, / metade roubada ao
mar, / metade roubada à imaginação, / pois é do sonho dos homens / que uma
cidade se inventa”. O que já nos demonstra o tom e a linguagem que permeará
o poema, misto de descrição narrativa, histórica, porém ampliada pelos signos
semânticos da poesia e da ironia peculiar ao poeta. Em “Manoel vai ficar plantado, / para sempre e mais um dia, / sereno,
bustificado, pois quem da terra se ausenta / deve assim ser castigado”,
intertextualmente percebemos o amargor por ver a figura de Manuel Bandeira,
para quem a terra foi ingrata, tornar-se busto e bestificado, esquecido, em um
forte neologismo irônico e revoltado do poeta. Ao tratar de Cabral, a lembrança
do rio ainda vivo, das águas que “(...)
em seu trajeto tiveram a farta satisfação / de dar de beber a secos / homens,
cavalos e bois”, rio este confluindo-se, mais uma vez, com a própria
peregrinação de Cabral. Por fim, deságua em Cardozo e os “cajueiros em flor”,
mais um filho maltratado, mas que, ternamente, como os bons filhos são, amou
até a morte a cidade. A paisagem, nesse percurso lírico de Pena filho, é
sugerida pinceladas sutis, mesclada por citações explícitas (rua da Aurora,
cais do Areal, ponte Duarte Coelho, rua do Imperador, as igrejas de São
Francisco, Madre de Deus e de São Pedro), elementos peculiares à natureza do
Recife (a lama podre, as baronesas, os caranguejos, embarcações, boi morto) e o
povo, formador desse quadro único (as virgens, o amarelinho, o marginal,
escuro, anfíbio). Após essa etapa, atravessamos a ponte e vamos ao outro lado
da cidade, o bairro do Recife “Ali que é
o Recife / mais propriamente chamado, / com seu pecado diurno / e o seu noturno
pecado, / mas tudo muito tranquilo, / sereno e equilibrado. (...) Esse é o
bairro do Recife / que tem um cais debruçado / nas verdes águas do Atlântico /
e ainda tem o cais do Apolo, apodrecido e romântico (...). As referências
são muitas, e trazem um Recife múltiplo, entre o progresso capital e político:
os bancos, a Associação Comercial, a Câmara Municipal, os ingleses do British
Club, somados à figura simbólica de Alzira “a viga mestra da prostituição”, em
uma simbiose e perfeição caótica, própria da cidade decadente, boêmia, cujos
versos anunciam a Guararapes “Nas mesas
do Bar Savoy, / o refrão tem sido assim:/ são trinta copos de chope, / são
trinta homens sentados, / trezentos desejos presos, trinta mil sonhos
frustrados”. Finalizando o longo poema, aqui selecionados alguns versos e
passagens, o poeta sintetiza a ideias e, metaforicamente, traz a imagem
perfeita e, infelizmente, ainda atual, da sua cidade, que um dia teve um papel
na História do Brasil: “Recife, cruel
cidade, / águia sangrenta, leão / Ingrata para os da terra, boa para os que não
são. / Amiga dos que a maltratam, / inimiga dos que não / este é teu retrato
feito / com tintas do teu verão / e desmaiadas lembranças / do tempo em que
eras / noiva da revolução.”
Recife,
que agora se apresenta deste modo: dia nublado de um inverno que nunca chega,
por estar sempre na seiva de um sol inacabado. Berço do poeta aqui homenageado,
hoje simbolicamente presente, ironicamente, no busto entre a Faculdade
de Direito e o Parque Treze de Maio, local dos amigos boêmios, dos estudantes e
transeuntes, personas nos versos de Pena Filho, que aqui neste texto laudatório
eterniza-se em cada face da cidade.
*Neilton Lima é poeta e crítico literário. Mestre em Teoria da Literatura (UFPE);
Coordenador e Professor do Curso de Letras (FOCCA), Revisor da Revista Scientia
Una; Professor da UNISAOMIGUEL. Diretor de Eventos (UBE); Membro da Câmara
Brasileira do Desenvolvimento Cultural.
O AZUL POR TRÁS DA NOITE
Reviewed by Natanael Lima Jr
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Grato ao nobre amigo, poeta maior, Natanael, por esta singular oportunidade. Sempre em prol da Arte, Educação e da Literatura em Pernambuco
ResponderExcluirO site e a literatura agradecem. Parabens pelo excelente artigo, professor Neilton!
ExcluirTemos como pernambucano, conhecer e valorizar o que é nosso. Carlos Pena Filho, é um dos nossos, viva a poesia Pernambucana.
ResponderExcluirViva a poesia pernambucana! Viva a resistência!
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