MIOLO DE POTE (Alexandre Furtado)
Dos vazios, a
memória pesada...
por Alexandre
Furtado*
O
passado nunca está morto. Nem sequer é passado. - WILLIAM FAULKNER
Fôlego, de Rafael
Mendes, traduz, entre outros, o drama do personagem Mateus, como antiga
metáfora: a de retornar para compreender. Então, ele assim o faz, não como
Filho Pródigo, ou como Juan Preciado à Camala (Pedro Páramo de Juan Rulfo), ou
mesmo às madeleines proustianas ao chá, mas, na verdade, a si próprio, ao seu
passado, à origem familiar – repleta de dúvidas, problemas e tristes
lembranças. Longe de modelos como os de Galsworthy (The Forsyte Saga), Mann (Os
Bunddenbrooks) ou Roger Martin du Gard (Les Thibault), a família desenhada por
Rafael é simples, sem adornos, composta por gente comum, uma família brasileira
desmembrada, de pouco brilho ou qualquer estatura.
Penso, por isso, na epígrafe do livro –
“Elástico é o tempo de que dispomos cada dia; as paixões que sentimos o
dilatam, as que inspiram o encurtam e o hábito o enche.” - como algo que
anunciasse certo fôlego para (re)fazer caminhos. Mateus, por isso, se vê
revisitando a infância, tendo que lidar com as idiossincrasias da mãe
(Cecília), que a tudo suportava à custa da religião, o ambiente repressor, o
comportamento “rebelde” de sua irmã – Manuela, sua avó levemente intrusa, da
onipresença da igreja na relação familiar, e de Jaime, o pai, homem rude e
emudecido.
Sentia
dó de meu pai. Ele andava cabisbaixo, vestia o macacão imundo, carregava a
caixa de ferramentas pesada. Dizia frases sem sentido, não lia sequer uma nota
de jornal, não tinha opinião alguma sobre as coisas que aconteciam no mundo.
Vê-lo assim me dava pena. (p. 48)
O manejo narrativo é, sem dúvida, um dos
méritos do livro de Rafael, por levar o leitor a pensar acerca dos alcances do
tempo, das linhas que tecem a trama da memória, em duvidar se Mateus realmente
(ou cada um de nós em nossas vidas) poderá lidar com o presente, suportá-lo,
sabendo que o mesmo possui raízes profundas, espinhosas – ainda, por mais
penoso que seja imaginar, como terá o mesmo que tratar do vínculo com sua mãe
mais especificamente, com seu pai?
Ser capaz de incorporar tais coisas
conscientemente - vicissitudes e defeitos, de ultrapassar o sentimento de raiva
e decepção é tarefa enorme, sobretudo quando existe uma perda definitiva e uma
espécie de fuga de si.
Há
muita coisa sobre a morte de meu pai que gostaria de esclarecer: o que ele
realmente planejava quando me convidou para lanchar, naquele domingo? Quantas
cervejas tomou depois que chegou ao apartamento? Será que creditou alguma
parcela de culpa por algo que eu disse ou não disse? Por que motivo mudou de
ideia e acabou com todos os planos que falou que faria a partir do dia
seguinte? Será que o que fez foi um ato intempestivo, de que talvez se
arrependesse caso o encontrassem a tempo? Por que escolheu usar uma corda e não
qualquer outra maneira para findar com a própria vida? (p. 62)
Um tom freudiano paira minha leitura,
possivelmente pelo vínculo – tristeza e voz, por uma culpa reservada do
protagonista por ter saído dali ... Lembro, em certa medida, e, logo, guardadas
as proporções, de figuras de análogo semblante atormentado: Hamlet, Heathcliff,
Raskolnikov, Julien Sorel, Emma Bovary, Bentinho e Dorian Grey, cada qual com seus
motivos, suas razões a lamentar ou se revoltar. Mateus encarna, ao meu ver, a
angústia humana - de como entender a vida senão passando pelas dores? Como
entender a si, senão mergulhando na própria história?
Outro fator que me conduz aos alcances da Psicanálise
– agora enquanto lugar de referências, é a construção de um tempo interno,
subjetivo, aquele que surge em processo, geralmente, presente entre o que se
perde e o que se acha, entre o que não se sabe e se enuncia. Pois, no caso do
protagonista, a morte do pai lhe põe em contato com outras mortes: sua casa
simples, a imagem da goiabeira, o apego da mãe às coisas sem sentido, ou,
ainda, a função de uma foto antiga.
A certa altura da novela, percebe-se que
a saída de Mateus desse ambiente, revela dúvidas: o missionário Jonas que se
demora no quarto de Manuela, os telefonemas do pai, como fios partidos de uma
realidade que se mostra absurdo.
Tomávamos o desjejum na manhã
seguinte. Minha mãe ainda não havia cansado de censurar a Mana: ela devia se
firmar na igreja, largar aqueles amigos, arrumar um emprego, encontrar um moço
decente e começar a pensar em casamento. Minha mãe continuaria a falar muito
mais se a Mana, de supetão e em voz alta, não a interrompesse:
“Eu gosto é de menina, mãe! A
senhora pode orar à vontade que eu não vou mudar o meu gosto”
Na dinâmica das personagens: muitas
inabilidades. A figura da mãe, por exemplo, como aquela que supostamente
ampararia as dores, parece não conseguir lidar com o real, antes mencionado. O
que Manuela, a filha, traz, é bem mais que uma simples preferência, mas posto
dessa forma, a negação de um modus vivendi, um posicionamento inadmissível aos
preceitos cristãos. Funciona mais ou menos como a morte repentina do pai ou a
saída de Mateus daquela casa, tudo o que discretamente perguntasse: E vocês já
não vinham todos, de alguma maneira, morrendo antes?
Por último, convém registrar que, para
quem conhece os meandros da criação, especificamente a literária, sabe ou
desconfia que a figura do artífice das letras flerta um pouco com a de Cassandra, sacerdotisa a
quem Apolo concedeu o poder da profecia – mas sob a condição de ninguém
acreditar. O escritor, portanto, dispõe de maneiras para edificar realidade,
pensar e “suspender” verdades, deitadas aos olhos dos leitores disfarçadamente.
Sua tarefa é a de, tão somente, traduzir a vida pela representação, ou
representá-la de maneira mais real. A partir do que é lido, cabe a cada um pensar,
na condição de ser vivente, e, quem sabe, instaurar beleza diante do trágico,
que - nos impõe quase sempre uma respiração, uma espécie de fôlego.
*Alexandre
Furtado é Doutor em Teoria da
Literatura - UFPE e professor do Departamento de Letras na UPE Mata Norte.
Crítico e escritor, atualmente integra o GPL (Gabinete Português de Leitura PE)
e o IAHGP - Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano.
MIOLO DE POTE (Alexandre Furtado)
Reviewed by Natanael Lima Jr
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07:02
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Seu mergulho textual dividido conosco não somente nos instiga a buscar a leitura do Livro mas principalmente a criar coragem para irmos de encontro ao nosso Matheus! Lerei o livro! Parabéns pela coluna Alexandre Furtado e parabéns pela iniciativa do Domingo com Poesia em te receber! Ganhamos todos! Avante!
ResponderExcluirMuito enriquecedor o seu texto, Alexandre! Concordo com Lívio Meireles, quanto ao irmos de encontro ao nosso Mateus. Uma frase no seu texto que me tocou muito foi: "de como entender a vida senão passando pelas dores?" Ainda tenho muitos livros adquiridos e que ainda não li. Mas com certeza quando terminar, o primeiro que lerei será este!
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