O Conto da Semana
Descrição de uma sala (conto) de Paulo Rocha
Paulo Rocha é editor dos Jornais
O Litoral e Gazeta Nossa
Estou
aqui porque aqui deveria estar. Verticalmente alinhado com o centro da sala,
onde você normalmente imaginaria uma lâmpada, se fosse engenheiro, arquiteto,
construtor, pedreiro, eletricista ou um morador qualquer não visualmente
danificado, não portador de deficiência ocular, não pessoa destituÃda de visão.
Eu,
quase lâmpada, estou aqui.
Quatro
ângulos me comprimem, formatados em igual número de paredes mistas em cores, em
fungos, em bactérias luminescentes, em sólidas marcas de mãos infantis
designando ontens lentamente cumpridos, em veias de tempo instaladas e
circulantes, entre areias e gessos, entre massas e cimentos, subestruturas
roÃdas e abertas, agora que eu vejo através de tudo a sala, apenas a sala.
Vejo
com calma, com paciência, com dedicação.
Parede 1 com
quadro
Pela
minha direita desce devagar meu olho direito, perscrutante, lambendo primeiro o
claro da tinta ainda não totalmente maculada, depois alisando as pequenas
traças que se disfarçam. Roça a rigidez e a ferrugem do prego que sustenta o
arame que sustenta a armadura de madeira que sustenta a tela onde aderida está
a tinta que um pintorzinho espremeu de seus tubos sujos, misturou com aguarrás,
com secante, com óleo, e distribuiu displicentemente para formar: a figura
começa nos óculos (porque o olho ainda não desacostumou do acostumado, do
elemento principal que nos distrai do essencial) e se espraia não pelo rosto,
que só vai ser percebido depois, mas pelo colorido das fitas, todas
serpenteantes, fazendo um arco de cores repetidas que giram, esbarram na flor
branca pendurada em lábios grossos, desafinam e se perdem na imitação de uma
lança, depois voltam atordoados e recompõem o quadro, sinalizando a figura
escondida entre as pinceladas de ocre, laranja, amarelo, as cores do chão de
Carpina sujas de um verde cana, o maracatu rural não tem olhos de ver, tem
olhos de ser vistos, a luminescência das cores substituindo o que eu já disse,
desço o olhar mais ainda.
O chão, meu
cachorro e seus ganidos
Não
aprecio o rés-do-chão, não e não às linhas sujas, caminhos de baratas, de
carrapatos assustados como assustado está Pingado, meu cachorro que me olha e
gane e forma incerta, inédita, sem ousar seus latidos de: forte e repetido até
eu acordar porque alguém passara pela calçada; forte e seco, se alguém estava Ã
porta; longo e desesperado, se uma cadela no cio estivesse a quadras; intermitente,
se fogos espocavam pela vitória do Sport; miúdos, repetidos e incrustados
quando queria pão à mesa; silenciosos, inaudÃveis depois de minha ausência e
pelo reencontro, agora rastejando lateralmente pelas paredes todas, na
tentativa de repartir uma agonia que é só dele.
Parede 2 com
churrasqueira
Em
frente, meus dois olhos calmos absorvem a churrasqueira abandonada e suas
sombras negras volutando parede acima, Seus retângulos impecáveis no conjunto,
a harmonia nascendo da forma imperfeita de cada tijolo preso a outro em sua
função inalterada, desde que eu os sobrepus sem pena, um a um, e me quedei
ancho, feliz na ilusão com que nos submetemos à arquitetura de uma caverna ou
de uma torre, como se o sólido das paredes erigisse em nós também um centro
férreo que não arqueasse a coluna, não decimentasse os ossos, não lasseasse os
músculos, não traçasse as veredas nas faces. E não cito os ritos da boca e dos
olhos, traiçoeiros como o sal nessas mesmas edificações, a nos desdizer e a nos
desfazer, e certamente como se sangue, envelhecendo ao se alimentar de si
mesmo, numa estúpida circular extenuante, que renegamos e alimentamos, todo
dia, todo dia.
Parede 3 com
estantes
Trago
devagar a textura das estantes e dos armários na parede à direita, quase que sobrepostos
em meu ângulo de visão, desfilantes em suas quadraturas, em seus nichos com as
garrafas de vinho cheias; as de vinagre, com pimentas gordas, inchadas de
vermelhidão e dor, sufocadas em suas próprias essências, apenas rastros de cor
na composição aérea de uma decoração inútil. Vejo o Buda e suas parcas moedas
que não tinem, mais uma nódoa no mosaico escuro das religiões, já já veremos a
nossa senhora de alguma coisa em outra solidão consentida, fraca, acho que mais
pra cima, Ã direita.
Meus
olhos perdoam tudo o que vejo, principalmente a pia, lugar de despojos, anexada
somente pela fatal decorrência da tortura biológica do comer e do lavar e do
excretar, irmã gêmea dos inconcebÃveis do banheiro lá do fundo, fora da órbita
ocular mas não dos meus sentidos, de igual parâmetro para perfumes franceses,
odores vaginais ou excrementos, todos sentidos e medidos e catalogados nas
extensas prateleiras postas em filas neurônicas ou massinzentadas de
conscientes, inconscientes ou subscientes, como diz meu amigo alemão.
Alemão
é um desses experts em chafurdar nas sinapses pervertidas de cérebros indefesos
a teorias ditas, desditas e pósditas de escreventes observadores do conceito
alheio, todos eles enganados e enganadores, vejo eu agora, pois o que presumem
é apenas um nada denso sobreposto a tudo, açambarcador, proeminente, mas
subjugado a um outro eu que não somos enquanto somos, só depois.
A parede de
que não falei
É
lisa a quarta parede, desprovida como eu, que nunca fui de muito, (pobreza, se
é assim que dizem e nominam e rotulam e catalogam a parcimônia), eu nos meus
poucos tantos nunca precisei de outros, sempre me serviram, sempre me foram
bons e bastantes os quase-nada. Lisa de recados ou de significados, em brancura
suja da minha história somente, ela que me viu e fotografou e espelhou sem
critérios nem poréns, tanto nos dormir no sofá em frente à TV quanto nos roçar
de fêmeas, passando incólume pelas conversas dos amigos também poucos, estes
mais estendidos pelas horas do único ornamento ainda ali, redondo, vÃtreo e
apontador das horas extensas ou compactas conforme a lua, conforme o amigo,
conforme a tensão das peles, conforme a expansão dos pensamentos. Mais das
vezes deslizantes, expandidos, quase nenhum voltando ao centro inútil de minha
vida, fugitivos que escapavam com a conivência explÃcita e solidária da mente
preguiçosa. Assim lisa desce a parede e se irradia, obra de muita lixa e massa,
toda espalhada por mão e obra de homem dedicado, simulando espaço maior ao
reduzido espaço, a magia dos claros, clara magia.
O teto
O
teto descrevo rápido: Da minha direita até aqui, cinco braços de cimento e
ócio, entre eles a pardacenta sequência de cerâmica bruta, que esqueci ou não
quis pintar; de mim para a direita, repete-se o alinhamento com parcas nódoas,
interrompidas tanto de um lado como de outros por lâmpadas fluorescentes.
No
centro de tudo, como uma coluna central que sustentasse a estrutura, meu corpo
esquecido, cinzento, os pés juntos e arqueados, meu membro ereto, meus braços
pendentes, minha lÃngua longa e fria.
Acho
que esqueci de citar a cadeira caÃda.
O Conto da Semana
Reviewed by Natanael Lima Jr
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10:36
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