A Crônica da Semana
*Blues
para Cortázar (crônica) de Antônio Torres
Foto: Reprodução
Ele não foi um
garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones. Pertencia a outra geração.
Adorava mesmo era Duke Ellington, Louis Armstrong, os velhos cantores
de blues. E podia ficar horas a fio falando de Thelonious Monk. Isso desde
que ouviu no rádio, pela primeira vez, uma estranha música ainda desconhecida
nas suas bandas.
Não custou a
perceber que o que o encantava nessa música era o fenômeno maravilhoso que
constitui a sua essência: a improvisação. Mas, no começo desta história, o
garoto tornou-se apenas um chato, aos ouvidos da família. Porque ele só
sintonizava o rádio num programa que tocava a tal música. O que dava sempre em
briga. Seus pais detestavam aquela coisa de negros. Queriam ouvir mesmo era um
tango, música de brancos. Afinal, estavam na Argentina.
O garoto
cresceu, foi embora e se tornou um dos escritores mais importantes do mundo. E
nunca perdeu a sua paixão pelo jazz. Sorte dos seus leitores. Uma de suas
melhores histórias é uma viagem em torno do coração e mente, corpo e alma de um
saxofonista drogado – e genial. Que soprava o seu instrumento como se quisesse
arrebentar o mundo, a música – toda a música havida antes dele – e a si mesmo.
O conto se
chama O perseguidor. Nele, Júlio Cortázar mergulha em águas pouco
navegadas até o fundo da esquizofrenia de um artista de gênio, a apostar
corrida com a loucura e a morte. Era mais um daqueles negros fantásticos que
enchiam de calor as noites de Paris. Só que esta tinha toda a pinta de um
Charlie Parker, a quem a história é dedicada. Logo, não era apenas mais um.
Tudo isto vem
a propósito de um livro publicado no Brasil pela Editora José Olympio, em
tradução de Eric Nepomuceno. Trata- se de O fascínio das palavras, que
reúne entrevistas de Júlio Cortázar ao uruguaio Omar Prego. Para este leitor, o
livro se torna ainda mais fascinante quando ele fala de jazz, da sua relação
com a literatura, aquela coisa da escrita automática, de improvisação da
escrita, do jazz como o equivalente ao surrealismo nas letras,
do swing que pode dar ritmo a uma frase capaz de entrar no leitor por
via subliminar, atingindo sua inteligência sem que ele perceba. E mais: um
conto tem que chegar ao fim como chega ao fim uma grande improvisação de jazz
ou uma sinfonia de Mozart. E assim o contista vencerá o leitor por nocaute.
Por essas e
outras é que achei que havia qualquer coisa de O perseguidor no
filme Round midnight (Por volta da meia noite), do franco-suíço Bertrand
Tavernier. Tanto quanto senti a falta desse conto no filme Bird, de Clint
Eastwood, que conta a história de Charlie Parker.
Júlio Cortázar
não chegou a vê-los. Ele morreu em 1984. E perdeu dois bons momentos de jazz no
cinema. Mas muitos de seus leitores ainda continuam por aqui. Nem que seja para
ouvir um blues em sua homenagem.
(Do livro “Sobre Pessoas”,
Editora Leitura, BH, 2007)
*Disponível em: http://www.antoniotorres.com.br/
A Crônica da Semana
Reviewed by Natanael Lima Jr
on
14:25
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