Ventas sedentas de novos ares
por Adriano Marcena*
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A
velha pergunta Pra que serve a literatura? Parece não esmorecer diante das
agonizantes certezas das fragmentações utópicas. Servirá ela para o exercÃcio
através da palavra com fins de deleite estético e refinamento das emoções
humanas? Exercerá a função de plataforma para defesa de causas
polÃtico-ideológicas? Será transmissora dos conhecimentos de uma coletividade e
o escambau a quatro? Tentar explicá-la nos parece um ato irrealizável diante
das inúmeras possibilidades interpretativas e pragmáticas: o que fazer com ela?
Inegavelmente
óbvio é que ela deve ser ‘útil’ no seio de uma sociedade excentricamente
consumista. Aliás, o sonho de qualquer ser das letras (escritores, editores,
crÃticos, pesquisadores, livreiros e leitores) não é que a obra literária deva
ser consumida ao extremo, literalmente devorada? Contudo, muitos defendem a
ideia de que a literatura não é produto para consumo frÃvolo, descartável, puro
passatempo: guarda em si uma tênue fatia do gênero humano que pode ser enlaçada
e transformada em linguagem. Deverá a literatura também questionar a futilidade
do consumo desmesurado?
No
Brasil, se o consumo desmedido estivesse enraizado em ‘consumir’ de forma voraz
a produção literária, haveria algum questionamento? Parece-nos que não, pois
acreditamos que a obra literária só traz benefÃcios aos humanos. Ela não
carrega em si algum malefÃcio, mesmo sendo arte e não ‘produto’? Então, não há
um lado desumano na literatura? Ou este lado de desumanização se manifesta
somente quando a obra não captura a suposta fatia das contraditórias
experiências humanas? No tocante, estarÃamos falando de literatura pobre,
subutilização da linguagem ou em um discurso que não ajuda a mover as molas
precÃpuas da sociedade ou das nossas emoções individuais? Que anseios nossos
discursos se encaixam melhor? Será que só os discursos artÃsticos confortam a
insaciável alma atordoada e os sonhos de uma coletividade? Claro que não.
Será
que não é preciso desglamourizar mais uma vez a visão redentora da literatura e
das outras formas de arte? Mas é evidente que essa provocação aqui levantada já
caducou. A visão que a arte é uma espécie de ‘elixir salvador’ que purificará
aqueles que manterão contato com ela, beira ao risÃvel. Literatura não é livro
sagrado e, quanto mais profana, mais humana.
Válido
mesmo é que a literatura existe (nem que seja para questionarmos sua ‘função’
em nossas vivências ou para abalar nossas funções diante da sua existência) e
pulsa feroz para ser na realidade imaginária e social um fragmento das nossas
subjetivações. Sem a capacidade de fabular serÃamos humanos? Será que tal
aptidão não seria mais uma ação que nos diferencia das demais espécies?
Não
se pretende salvar o mundo com as artes, pois esta utopia dodecafonicamente
parece que desafinou e perdeu seus belos adornos. Sem perder o ânimo por
inteiro e montado no lombo de um discurso cidadão, luta-se por uma polÃtica
pública de cultura democrática – inclusiva e participativa – que não enfraqueça
os brasileiros que se debruçam sobre o ofÃcio da palavra, justo aqueles que só
enxergam parte do sentido da vida em produzir ou estudar literatura, e também o
acesso dos brasileiros ao Brasil literário, um Brasil imaginado pela riqueza da
oralidade e pelos mouses inquietos e inventivos ofertados pela palavra escrita,
concreta e virtual. É preciso literalmente não aturar os modelos mofados que
são esfregados em nossas ventas sedentas de novos ares.
Não
desalentar e cobrar das gestões públicas proposições concretas para o segmento
cultural, pois muitas conquistas foram alcançadas ao longo dos últimos anos,
porém, outras, teimosamente imperam e emperram nossos sonhos cidadãos.
Muitos
mandatos são como saborosos confeitos, causam forte impacto de agradabilidade
ao primeiro contato com a boca, mas têm data de validade na embalagem. E a
velha pergunta insiste em vagar entre nós: Pra que serve a literatura?
*Adriano
Marcena é escritor, historiador, professor e dramaturgo
Ventas sedentas de novos ares
Reviewed by Natanael Lima Jr
on
09:05
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Parabéns, Adriano Macena, extraordinária matéria.... Continue nos brindando com seu saber. Cordiais abraços de Verluce Ferraz.
ResponderExcluirO Adriano sempre é enfático quando fala, suas opiniões são sempre abalizadas e tem endereço certo. Obrigado pela visita, volte sempre.
ExcluirGostei da matéria, continue nos brindando com outras. Parabéns!
ResponderExcluirOlá Verluce, ficamos felizes com seu comentário. Realmente um excelente artigo do Adriano.
ExcluirMarcena, em cena com afiadas e objetivas explanações. Parabéns, véi!
ResponderExcluirValeu pelas contribuições! Abraços, Neilton!
ExcluirBela matéria, Adriano. Parabéns!!
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