Ventas sedentas de novos ares: um contraponto
por Frederico Spencer*
Operários, de
Tarsila do Amaral (1933)
O
poeta Ferreira Gullar nos brinda com uma máxima: “a arte existe porque a vida é
pequena” - pequena frase de largo espectro, que só um poeta de seu tamanho é
capaz de criar. Frase esta que suscita o encantamento e o poder que a arte tem
sobre o homem e sobre toda a sociedade por tabela.
Seguindo
a máxima do poeta, beberemos na fonte da história do homem e sua trajetória no
processo de dominação da natureza e, consequentemente, na história da
literatura ou das artes sobre o mundo humano - ou melhor dizendo, da
humanização do homem como forma de garantir a perpetuação de sua espécie.
Desde
o começo de sua existência o homem produziu arte e literatura, se é que podemos
separar uma da outra, como condição primária para sua sobrevivência sempre com
o propósito de registrar a memória de suas derrotas e conquistas, através de
sua saga na busca da obtenção de alimentos e na defesa de sua prole.
Das
conquistas bélicas surgiram os relatos que enalteciam os heróis de um tempo sem
papel e tinta, e que, através dos menestréis tornaram-se conhecidos e sua fama
espalhada por várias cidades. Relatos estes que sempre receberam um dedinho a
mais de prosa, por parte do relator, para encantar aqueles que entupiam as
ágoras antigas.
Assim
nasceu a ficção, berço fecundo da linguagem, terreno fértil para uma das mais
ricas formas da criação humana, que entre o profano e o sagrado vem escrevendo
a história das experiências humanas através dos tempos.
A
cultura nada mais é que o acumulo das experiências do homem e o registro destas
em cada sociedade. Sem memória, não serÃamos capazes de formar os grupos
sociais. A Cultura difere os grupos humanos através de suas caracterÃsticas
vivenciadas através de sua produção industrial e artÃstica. Cria um modelo
estético que servirá como base para a formação ética de seu povo. A arte como
parte da cultura, constitui a memória e a herança de seus constituintes,
reproduzindo suas caracterÃsticas e suas peculiaridades.
No
mundo atual - a civilização da mercadoria e da informatização dos conceitos -
vivemos uma crise de identidade onde a arte e a literatura incorporaram, com a
crise do capitalismo, o conceito ideológico do consumo fácil; dos “mouses
inquietos” e das polÃticas públicas estabanadas que beiram o precipÃcio da
prestação de contas.
Hoje,
aqueles que se propõem à s artes e suas teses, vÃtimas do mecenato do erário
público, quase asfixiados pulsam por ares novos que sejam capazes de aerar seus
velhos pulmões. Mas como isso pode acontecer, qual o percentual de acerto? Se
ainda não criamos cabelos suficientes em nossas ventas, que possam nos creditar
a dizer quem somos!
*Frederico
Spencer é
poeta, produtor cultural, sociólogo e psicopedagogo clÃnico
Ventas sedentas de novos ares: um contraponto
Reviewed by Natanael Lima Jr
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07:06
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Parabéns, Frederico! Um belo contraponto.
ResponderExcluirComo sempre, sábias palavras para a reflexão!
Verdade que “ainda não criamos cabelos suficientes em nossas ventas, que possam nos creditar a dizer quem somos!”. Eis um dos grandes mistérios da existência sociológica, teológica e filosófica e, tentar desvendar tal enigma identitário, corroeu o juÃzo de muita gente boa que ser arvorou por essas bandas.
Em tempos de crises à la Hall parece que estamos perdidos diante de um novo mal-estar pós-freudiano, entretanto, os mal-estares são comuns ao longo do tempo, assumindo formas especÃficas conforme o perÃodo histórico.
Pois é, nossos velhos pulmões, carcomidos por frágeis alvéolos desencantados e esgotadas pleuras conceituais, mas ávidos por novos ares adentrando em suas ventas, esperam que as novas polÃticas de cultura possam oxigená-los de forma branda, mas profunda e, assim, permitir que muitos brasileiros passem a ter acesso aos bens culturais gestados com recursos públicos. Apesar de não podermos ‘creditar a dizer quem somos’, podemos, certamente, reivindicar nossos desejos.
Como lembra mestre Rouanet “A felicidade é virtualmente impossÃvel, mas temos que agir como se ela pudesse ser alcançada”.
Eis uma grande função do DCP: moer a discussão.
Valeu, Frederico!
Grande abraço,
Adriano Marcena
Pois é amigo, não podemos viver simplesmente como partes desta cadeia maluca sem a devida reflexão, só o ato reflexivo pode contribuir para o crescimento de nossas ventas, adubando nossos bulbos capilares.
ResponderExcluirUm abraço. Obrigado pelo comentário.