Apenas o fim (conto) de Paulo Rocha*
(Pintura “Juizo Final”
Afrescos por Giorgio Vasari – 1511 – 1574, Italy)
Sempre ouvira
sua mãe falar de que haveria um julgamento divino depois que tudo acabasse, mas
nunca se preocupara. Agora, tinha medo. Não medo do julgamento, medo de que
tudo simplesmente acabasse.
Depois de uma
longa existência sem nenhum problema de saúde, há cerca de oito, nove meses,
sentira o primeiro sinal: uma fisgada longa e angustiante no coração, que se
repetiu por vários dias, com menor intensidade mas cada vez mais presente, a
ponto de obrigar-lhe a procurar um médico.
Depois de
exames minuciosos, de reuniões entre os homens de branco nas quais não lhe era
permitido nem participar nem ouvir, viera por fim o aviso: chegara a sua hora;
não teria, a estas alturas, mais de três meses, talvez dois.
Claro, sempre
chega a hora de todos, mas cada um encara à sua maneira esta partida. Alguns
fazem um demorado exame de consciência, pesam o bem e o mal que fizeram a si e
a outros. Outros capricham no testamento, praticando ali, quem sabe, as últimas
maldadezinhas.
Ele, que não
era religioso, nem bom, nem mau, simplesmente aceitara, com medo, mas aceitara.
Era o fim. Já imaginava a hora em que, subjugada a dor pelas pílulas coloridas,
só a mente teria a percepção do momento derradeiro, do último pulsar, o negror
súbito apagando o cérebro de todo, restando só a carne a apodrecer a partir do
próximo segundo, um ponto cinza a menos no universo.
Apenas o fim,
nada de Céu, Purgatório, Inferno, Paraíso, Eternidade. Nada de anjos, de encontro
com parentes falecidos, de roupas diáfanas e nuvens brancas, apenas o fim.
Aconteceu
enquanto dormia, mas sentiu tudo, minimamente: do puxão rápido a uma espécie de
névoa que envolvia os sentidos, ao mesmo tempo inibindo os exteriores e
reacendendo os interiores, ele girando sobre si mesmo mas sem movimento algum,
um sísmico interno revelando novas cores em transparências vermelhas, dobras
insuspeitadas e movimentos liquefeitos, pela primeira vez ouvindo o próprio
coração dentro do cérebro TUM!, o grande túnel lhe abduzindo depressa, a luz
branca temida e esperada em toda a extensão das esferas oculares, suas formas
se espichando em um vórtice desesperador, a agonia definitiva misturando
energias e massas num teorema inexplicável que lhe faz sentir primeiro a
pressão no que pode ser uma faísca de consciência ou a ponta pegajosa da
primeira dobra de uma massa encefálica virgem e atônita, suas forças se
reagrupando como um exército que renega esta nova batalha e mas continua em
frente porque só pode seguir em frente, todos para a frente, buscando com mãos
vermelhas de sangue e com narinas vermelhas de sangue e com lábios vermelhos de
sangue o grito primevo que liberta, o urro maior que diz eu não vou, eu não
concordo, eu não pedi isso, eu não sei quem sou, eu não sei quem são vocês que
me olham, que me acolhem, que me limpam e me põem nos braços desta mulher
suada, que me oferece um seio que sugo sem amor nem nome, com pavor e fome, eu,
de novo.
*Paulo Rocha é escritor e
editor do Jornal Gazeta Nossa
Apenas o fim (conto) de Paulo Rocha*
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