Um Jeito de Viver
por Fátima Quintas*
fquintas84@terra.com.br
Imagem: Reprodução
Nenhuma ostentação me agrada. Sou uma
eterna amante das coisas miúdas. De temperamento introspectivo, observo o que
se mostra sóbrio, frugal, singelo. Pequenos nadas me atraem: uma xícara de
leite quente pingado com café forte, uma folha seca quase invisível, um beijo à
sorrelfa, o sorriso do menino desdentado, cabelos molhados, o sino da igreja a
tocar, roupa limpa, aliança no dedo, mesa posta, doce de goiaba...
Não me escapam fundos de quintal,
terrenos baldios e terra molhada. Trago um atavismo que vem de longe, de épocas
imemoriais, alimentado à sombra de vivas ancestralidades. A terra me agrada com
o seu toque germinal. No entanto, sou urbana, nunca morei no interior, transito
frequentemente pelos recapeamentos do asfalto; mas é mistério dos caminhos
virgens que me comove. A terra molhada remonta a passados, alguma coisa
inexplicável que habita dentro de mim sem que eu me esforce por recorrer ao exercício
da lembrança. De imediato, a imaginação corre para trás, tal qual uma marcha ré
inadvertidamente encaixada. O caminho inverso me invade e logo, logo, os
aconchegos maternos e paternos me renovam. A genealogia, desenho-a na partitura
de um sachê afetivo. Todos nós, adolescentes ou adultos, somos tocados pelo
olor da terra molhada. De um jeito ou de outro, há sempre um retorno a um lugar
de outrora.
Fundos de quintal e terrenos baldios
trazem sentimentos indefinidos. Adejam-lhes fantasmas do inconsciente. Cada
pegada no chão de areia corresponde a um retrocesso na memória - toda memória é
remissiva. Não há nada mais fustigante que o vento soprando na solidão dos
espaços vazios, um dia habitados por famílias ou pessoas anônimas; ou mesmo por
consanguinidades próximas. Os enredos deságuam numa história, traduzidos em
biografias inscritas na alma, a realçar o rastro da vivência. Resíduos se fixam
do plano material ao emotivo. Que dizer de um balde abandonado, de uma corda
estendida entre dois troncos de árvore, pronta para acolher roupas molhadas? Ou
de um tanque de cimento sem mãos buliçosas, quieto, abarrotado de lodo, às
vezes até com restos de sabão amarelo? Fundos de quintal mexem comigo;
vasculham intimidades, minhas e dos outros.
Terrenos baldios falam de ruínas, mato
silvestre, abandono, silêncio quase sepulcral. Não consigo explicar, mas
enxergo algo de nobre na decadência. Um quê de dignidade emerge desse ambiente
desolador. Repito Drummond: “De uma torneira/ pinga esta gota absurda./ meio
sal e meio álcool, salta esta perna de rã,/ este vidro de relógio partido em
mil esperanças”. E os rescaldos dos incêndios da vida proliferam no pires de
porcelana jogado ao chão, no copo de vidro grosso que um dia guardou água para
beber, na panela sem fundo que dorme sob o sereno em completo desamparo.
Coisas tão simples permanecem dentro
de mim. Preciso de pouco para construir a felicidade. Dos pequenos nadas
extraio o sumo da existência. Por enquanto, o vidro de lavanda antigo, repousa
na discreta penteadeira, me devolve o cheiro penetrante de uma infância
longínqua.
*Fátima
Quintas é escritora, ensaísta, professora universitária,
presidente da Academia Pernambucana de Letras.
Poemas de Lya Luft, Lucila Nogueira,
Sophia de Mello Breyner Andresen, Taciana Valença e Márcia Maracajá
Canção na plenitude*
Lya Luft
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Não tenho mais os olhos de menina
nem corpo adolescente, e a pele
translúcida há muito se manchou.
Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura
agrandada pelos anos e o peso dos fardos
bons ou ruins.
nem corpo adolescente, e a pele
translúcida há muito se manchou.
Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura
agrandada pelos anos e o peso dos fardos
bons ou ruins.
(Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.)
O que te posso dar é mais que tudo
o que perdi: dou-te os meus ganhos.
A maturidade que consegue rir
quando em outros tempos choraria,
busca te agradar
quando antigamente quereria
apenas ser amada.
Posso dar-te muito mais do que beleza
e juventude agora: esses dourados anos
me ensinaram a amar melhor, com mais paciência
e não menos ardor, a entender-te
se precisas, a aguardar-te quando vais,
a dar-te regaço de amante e colo de amiga,
e sobretudo força — que vem do aprendizado.
Isso posso te dar: um mar antigo e confiável
cujas marés — mesmo se fogem — retornam,
cujas correntes ocultas não levam destroços
mas o sonho interminável das sereias.
*texto extraído do livro "Secreta Mirada", Editora Mandarim - São Paulo, 1997,
pág. 151.
Náufraga de si mesma*
Lucila Nogueira
a Antônio Campos
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náufraga de si mesma
eu a vi perambular pelo metrô
descalça nas calçadas
eu a vi naquela manhã de domingo
olhos cheios de água
eu a vi sob a chuva que não termina
deitada sobre a grama
eu a vi enfim e afinal ser possuída
e ela se evaporar sem resistência
vitoriosa em direção ao sol
*poema extraído do
livro “mas não demores tanto”, Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2011, pág.
63.
Porque
Sophia
de Mello Breyner Andresen*
(1919
– 2004)
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Porque
os outros se mascaram mas tu não
Porque
os outros usam a virtude
Para
comprar o que não tem perdão
Porque
os outros têm medo mas tu não.
Porque
os outros são os túmulos caiados
Onde
germina calada a podridão.
Porque
os outros se calam mas tu não.
Porque
os outros se compram e se vendem
E
os seus gestos dão sempre dividendos.
Porque
os outros são hábeis mas tu não.
Porque
os outros vão à sombra dos abrigos
E
tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque
os outros calculam mas tu não.
*Sophia
de Mello Breyner Andresen foi uma das mais importantes poetas portuguesas do
século XX. Foi a primeira mulher portuguesa a receber o mais importante galardão
literário da língua portuguesa, o Prêmio Camões, em 1999.
Momento
Taciana
Valença*
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Contudo
restou-me desabar no sofá
Cabelos molhados, camiseta
Um filme bobo, meio cabeça
Um resto de vinho do porto
Uma sombra de tristeza...
A saudade rondando a sala
Vinha ébria d'algum lugar....
Aproveitando-se da noite insone
Resolvida a me acompanhar....
Um rastro de luz
Vindo do corredor
O olhar perdido
Entre a alegria e a dor...
Um filme bobo, meio cabeça
Um resto de vinho do porto
Uma sombra de tristeza...
A saudade rondando a sala
Vinha ébria d'algum lugar....
Aproveitando-se da noite insone
Resolvida a me acompanhar....
Um rastro de luz
Vindo do corredor
O olhar perdido
Entre a alegria e a dor...
Poema para
este dia
Márcia
Maracajá*
![]() |
Imagem: Reprodução |
Por
todo sim e não,
Mulheres-mães
com ou sem filhos,
Estamos
ligadas à criação,
Cuidando
do mundo agredido,
Que
pede socorro embrutecido,
E
carinho e atenção
Somos
filhas das filhas de quem outrora
Tinha
legião de seres aprendido
Que
a natureza merece adoração,
Ante
qualquer homem na terra em beleza,
Inteligência,
força e argumentação
Somos
mães, mulheres, pungentes
Na
dança da vida em celebração
Mãos
dadas para o todo,
Eternamente
Luz
divina em carne, osso
Somos
o caldeirão
Sagrado,
profanado
Castigado
Pelo
seu legado, vida em profusão
Pelejante,
avante!
Mãe,
mulher
Faça
de sua vida o que quiser
Respeitando
a sagrada força de Esther
Primaverando
nos invernos de nossas vidas!
*Márcia Maracajá é escritora blogueira, performer literária e consultora textual
Sou um gato (conto) de Lygia Fagundes
Telles*
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Ele fixaria em Deus aquele olhar verde-esmeralda com uma leve poeira de
ouro no fundo. E não obedeceria porque gato não obedece. Quando a ordem
coincide com sua vontade, ele atende mas sem a humildade do cachorro, o gato
não é humilde, ele traz viva a memória da liberdade sem coleira. Despreza o
poder porque despreza a servidão. Nem servo de Deus. Nem servo do Diabo. Lembro
agora daquela história que ouvi na infância e acreditei porque na infância a
gente só acredita. Mais tarde,
conhecendo melhor o gato é que descobri que jamais ele teria esse
comportamento, questão de caráter. Dizia a história que Deus pediu água ao
cachorro que lavou lindamente o copo e com sorrisos foi levá-lo ao Senhor.
Pedido igual foi
feito ao gato e o que ele fez? Escolheu um copo todo rachado, fez pipi
dentro e dando gargalhadas entregou o copo na mão divina. Conheço bem o gato e
sei que ele jamais se comportaria conforme aquela antiga história. O cachorro,
sim, bem- humorado faria tudo o que fez ao passo que o gato ouviria a ordem
divina mas continuaria calmamente deitado na sua almofada, apenas olhando.
Quando se cansasse de olhar, recolheria as patas no calor do peito assim como o
chinês antigo recolhia as mãos nas mangas do quimono. Elegante. Calmo. E mergulharia no sono sem sonhos, gato
sonha menos do que o cachorro que até dormindo parece mais com o homem. Outro
ponto discutível: dando gargalhadas? Mas gato não dá gargalhadas, é o cachorro
que ri abanando o rabo naquele jeito natural de manifestar alegria. Os meus
cachorros — e tive tantos — chegavam mesmo a rolar de rir, a boca
arreganhada até o último dente. O gato apenas sorri no ligeiro movimento de
baixar as orelhas e apertar um pouco os olhos como se os ferisse a luz, esse o
sorriso do gato. Secreto. E distante. Nem melhor nem pior do que o cachorro mas
diferente. Fingido? Não, porque ele nemse dá ao trabalho de fingir. Preguiçoso,
isso sim. Caviloso. Essa palavra saiu demoda mas deveria voltar porque não
existe definição melhor para um felino. E para certas pessoas que falam pouco e
olham muito. Cavilosidade sugere cuidado, afinal,
cave é aquele recôncavo onde o vinho fica envelhecendo em silêncio, no
escuro. Na cave o gato se esconde solitário, porque sabe do perigo das
aproximações. Mas o cachorro, esse se revela e se expõe com inocência, Aqui
estou!
*Texto extraído do
livro “A disciplina do amor”, Companhia das Letras, 2010
Um Jeito de Viver
Reviewed by Natanael Lima Jr
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Que momento taciana!
ResponderExcluirÀs vezes, mesmo com alguém ao nosso lado, temos esse olhar perdido...