Velocidade, Solidão e Poesia
Frederico Spencer*
Num
fragmento do poema “Oração pelo Poema”,
o poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo, considerado como um dos maiores da
língua portuguesa, nos fala: “a cem quilômetros por hora/solto a direção do
automóvel/para escrever alguma coisa/mais urgente que minha vida”.
Nesse
instante do poema, o poeta desiste da vida ou corre o risco de perdê-la por
dois motivos aparentes: para não perder o verso que o atravessa ou porque foge
da angústia da solidão que o entorpece. “A cem quilômetros por hora” nega a
própria existência se esta não for pela poesia que o persegue, sombra e mito da
saga de se nascer poeta.
É
na solidão e na velocidade das ocorrências das coisas da vida que a poesia
eclode e quebra a casca do ovo que a aprisiona. Sobressaltado, o poeta se
presta à gestação precipitada dos seus símbolos/filhos mal criados, donos de
suas verdades. Assim acontece em “Nasce o
Poema”, de Ferreira Gullar: “e a poesia irrompe/donde menos se espera/às
vezes/cheirando a flor/às vezes/desatada no olor/da fruta podre/que no podre se
abisma”.
Há
sempre, na gestação da poesia, a condição prematura do vir a ser no mundo - seu
gesto ditatorial. Urgência e razão se contextualizam no momento onde acontece a
quebra da castidade do papel e a poesia materializa-se como gente, para matar a
fome do mundo. O poeta simplesmente dedica-se à dor do parto e apara sua
sangria, qual o Édipo, olha sua cria no seu momento mais delicado e o
reconstrói para soltá-lo no mundo.
Nas
suas mais variadas formas de expressão, a poesia reclama seu momento único para
nascer dentro da solidão, como está em Belchior: “dentro do carro/ sobre o
trevo /a cem por hora, ó meu amor/só tens agora os carinhos do motor. Nesta
busca de um infinito que demora a chegar, há algo que se perdeu na profusão da velocidade
e dos afetos, onde o tempo corrói os amantes, deixando a solidão como o momento
necessário para nascer, desobedecendo à ordenação de um mundo mecânico.
Casada
com a música, a poesia assume outra identidade: “Vou cavalgar por toda a
noite/numa estrada colorida/usar teus beijos como açoites/e a minha mão mais
atrevida”, esta canção de Roberto Carlos, além de outras, de tantas velocidades
e estradas nos levam a uma procura suicida pelo amor através de versos que
requerem a supressão das horas, como condição de se vencer a dicotomia
espaço/tempo, onde o amor dorme descansado. E sonhamos.
A
poesia vence o poeta e a barreira do tempo porque não obedece fronteiras nem os
limites do humano, possibilitando-nos viajar em suas naves/metáforas, para além
do arco espaço/tempo concedendo-nos a possibilidade de viver, mesmo assim, com
os pés no chão. Parafraseando o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, a
“ave/bala” encontrará o destino certo porque sempre haverá um verso perdido a
nos espreitar.
*Frederico Spencer é poeta,
sociólogo e psicopedagogo
Os invasores
Paulo Azevedo Chaves*
Desenho de Albrecht Durer
Eles chegaram às primeiras horas do dia.
Pareciam inocentes auxiliares realizando os serviços domésticos. O telefone
estava mudo. A internet não funcionava. As casas vizinhas estavam à venda,
desocupadas. Quando os dois saíram para fazer o serviço de jardinagem, fechei
rapidamente todas as portas a chave. Mas findas suas tarefas lá fora, ei-los de
novo no interior do imóvel. Ambos sérios e mudos, uma palidez cadavérica nas
faces. Um deles, baixinho e com início de calvície, vestia uma camiseta com
estampas vermelhas, parecendo sangue. A bermuda, larga e cobrindo os joelhos,
tinha idêntico padrão de estamparia. O outro, alto e magro, parecendo um
coveiro padrão de cemitério, usava uma camisa branca e suja de terra, as mangas
compridas arregaçadas até os cotovelos. Eles olhavam fixo para mim, sem nenhuma
emoção no olhar. Senti um súbito cansaço e fui deitar-me em meu quarto. As
cortinas estavam cerradas, mas ainda não escurecera por completo. Deitei-me na
cama e cruzei as mãos sobre o peito. Os invasores estavam ali, um de cada lado
do leito bem posto, olhando-me com seus olhares frios, distantes. O baixinho parecia
meu antigo empregado, executado com seis tiros numa viela suburbana do Recife.
“Eu amo você, Rodrigo” -- pensei. Não estava triste ,nem alegre, Apenas muito,
muito cansado. O sol finalmente se pôs e em meu quarto tudo eram trevas. Mas eu
pressinto que os invasores continuam ali, parados, um de cada lado da velha
cama antiga de jacarandá . Estou vivo ou estou morto? Moribundo, talvez?
Realmente não sei e acho que nunca saberei.
Jaboatão
dos Guararapes, 28 de setembro de 2012
*Paulo Azevedo Chaves é advogado, jornalista e
poeta, assinou no Diário de Pernambuco, nos anos 70/80, a coluna cultural Poliedro, e de meados dos anos 80 até
1993, a coluna Artes e Artistas,
especializada em artes plásticas.
POEMAS DE NATANAEL LIMA JR,
ALMÉSIO NASCIMENTO, ANTONIO DE CAMPOS E JUAREIZ CORREYA
Elegia a
Hamlet II*
Natanael
Lima Jr
[...] A natureza está em desordem... Execrável inquietação!
Oh! Nunca eu tivesse nascido para
castigá-la!
Shakespeare, Hamlet
compadece-te
de nós
que
albergamos as dores
as
aflições, os tormentos
& as traições
que retalham os corações
tudo
está consumado
não
haverá palavra sobre palavra
& a voz
altissonante
emudecerá
o
amanhã
nada
mais nos resta a crer
a
palavra jaz morta
ah!
inquietação execrável!
o
que virá depois
nada
mais importa
quero
o silêncio das horas
& a vertigem
dos passos
incautos
*do livro “À
espera do último girassol & outros
poemas”
O fantasma
Almesio Nascimento
Deus é esse grito a esmo
Na hora imprecisa
Em que depositamos nele
O fantasma da nossa agonia..
Deus é um suporte.
É uma invenção das nossas fugas..
Uma mão que atua
Nas inconsequências, nas ruínas...
Na hora do pavor.
Deus em volta de nós
No mundo em que pisamos
Essa semelhança desconhecida.
Deus é essa nossa insistência de busca.
De saber como ele é.
Esse Deus que fingimos conhecê-lo,
De não fazê-lo existir.
Deus quer sair de dentro de nós
Deus está enterrado em nós.
Nas articulações sanguíneas
Nos pulsos das veias.
Talvez em
Babilônia
Antonio
de Campos
Outrora
este monte foi tempo
e
aquele, um palácio de reis.
Estas
cinzas foram libido viva
E
aquelas rodas levavam belezas.
Na
areia há um trono submerso
e as
filhas da cidade, agora,
são
poeira que daqui se levanta
e ali
se deita pra fecundar ainda.
Aqui,
guerreiros abatidos
gritavam
na esperança
que uma
palavra pudesse
emendar
um círculo partido.
Ali, os
sábios foram achados
sem
estrela pra dissecar
e uma
lua pra predizer a dor
que
seria como, sem lua, foi.
Estranho
este presente
que
daquelas terras vem
e
revela restos de desejos
que
teimam em partir.
Mas uma
legião já foi chamada
pra
desenterrar aqueles
que
amei no passado –
talvez
em Babilônia!
Poema suspenso
dentro do Recife*
Juareiz
Correya
Moro no Alto Recife
libertário como todo nativo
de nuvens concretas que as cores sangram
num canto edificado
sem margens e rios
ruas me habitam sem medo
árvores abrem portas e janelas
e a cidade tem mais igrejas
do que as 365 igrejas da Bahia
todos os dias as formas ganham sonhos
a sorte é um poema experimental de Deus
nas paredes aéreas do meu bairro
antigo como a história de ontem
e o menino que fala por mim
na várzea urbana do meu cérebro
além deste lugar a cidade é uma festa
fabricada como um carnaval
e eu nunca poderei escrever sobre a tristeza
porque no Alto Recife onde moro
o mar se enche de céu
e o sol abraça todo mundo
sem hora marcada
libertário como todo nativo
de nuvens concretas que as cores sangram
num canto edificado
sem margens e rios
ruas me habitam sem medo
árvores abrem portas e janelas
e a cidade tem mais igrejas
do que as 365 igrejas da Bahia
todos os dias as formas ganham sonhos
a sorte é um poema experimental de Deus
nas paredes aéreas do meu bairro
antigo como a história de ontem
e o menino que fala por mim
na várzea urbana do meu cérebro
além deste lugar a cidade é uma festa
fabricada como um carnaval
e eu nunca poderei escrever sobre a tristeza
porque no Alto Recife onde moro
o mar se enche de céu
e o sol abraça todo mundo
sem hora marcada
*da Antologia Poesia Viva do Recife
Velocidade, Solidão e Poesia
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