A última entrevista de Cecília Meireles
A escritora morreu alguns meses depois de ter
concedido o depoimento ao jornalista Pedro Bloch, em maio de 1964.
“Tenho um vício terrível” — me confessa Cecília Meireles, com ar de quem
acumulou setenta pecados capitais. “Meu vício é gostar de gente. Você acha que
isso tem cura? Tenho tal amor pela criatura humana, em profundidade, que deve
ser doença.” “Em pequena (eu era uma menina secreta, quieta, olhando muito as
coisas, sonhando) tive tremenda emoção quando descobri as cores em estado de
pureza, sentada num tapete persa. Caminhava por dentro das cores e inventava o
meu mundo. Depois, ao olhar o chão, a madeira, analisava os veios e via
florestas e lendas. Do mesmo jeito que via cores e florestas, depois olhei
gente. Há quem pense que meu isolamento, meu modo de estar só (quem sabe se é
porque descendo de gente da Ilha de São Miguel em que até se namora de uma ilha
pra outra?), é distância quando, na realidade, é a minha maneira de me
deslumbrar com as pessoas, analisar seus veios, suas florestas.”
Cecília é carioca. Nasceu em novembro, dia de S. Florêncio (filha de Matilde e Carlos Alberto de Carvalho Meireles, funcionário do Banco do Brasil), em Haddock Lobo, na Rua São Luís. Seriam quatro irmãos, mas nunca chegaram a ser dois sequer, porque, mal nascia um, o outro já tinha morrido. Só ficou Cecília. Perdeu a mãe com três anos e meio, tendo sido criada pela avó, Jacinta Garcia Benevides, da Ilha de São Miguel, Açores, descendente de gente que andou do lado do Infante D. Henrique. A ela dedica Cecília:
Cecília é carioca. Nasceu em novembro, dia de S. Florêncio (filha de Matilde e Carlos Alberto de Carvalho Meireles, funcionário do Banco do Brasil), em Haddock Lobo, na Rua São Luís. Seriam quatro irmãos, mas nunca chegaram a ser dois sequer, porque, mal nascia um, o outro já tinha morrido. Só ficou Cecília. Perdeu a mãe com três anos e meio, tendo sido criada pela avó, Jacinta Garcia Benevides, da Ilha de São Miguel, Açores, descendente de gente que andou do lado do Infante D. Henrique. A ela dedica Cecília:
Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos
Tive medo de a enxugar: para não saberes que havia caído...
No dia seguinte, estavas imóvel, na tua forma definitiva,
Modelada pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mãos.
Tive medo de a enxugar: para não saberes que havia caído...
No dia seguinte, estavas imóvel, na tua forma definitiva,
Modelada pela noite, pelas estrelas, pelas minhas mãos.
Cecília Meireles: Minha
primeira escola foi a Estácio de Sá, que depois passou a Escola Normal, onde me
formei. Olhando para trás me sinto uma criança extremamente poética. Em casa de
meu padrinho, Louzada, onde brincava, sempre silenciosa e observando-a, via
estátuas, pinturas, coleções de pequeninos, objetos e leques em vitrinas,
coisas que me levaram a fazer o “Inventário Lírico”.
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Cecília Meireles: Vovó
era uma criatura extraordinária. Extremamente religiosa, rezava todos os dias.
E eu perguntava: “Por quem você está rezando?” “Por todas as pessoas que
sofrem.” Era assim. Rezava mesmo pelos desconhecidos. A dignidade, a elevação
espiritual de minha avó influíram muito na minha maneira de sentir os seres e a
vida.
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face?
Cecília Meireles: Uma
das coisas que mais me encantavam em minha vida de infância era o eco que vivia
em casa de minha avó. Eu vivia procurando o meu eco. Mas tinha vergonha de
perguntar. Recolhida, tímida, deslumbrada, me debruçava no mistério das
palavras e do mundo. Queria saber, mas tinha imenso pudor de confessar minha
ignorância.
Nós merecemos a morte,
porque somos humanos
e a guerra é feita pelas nossas mãos,
pelo nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra,
por nosso sangue estranho e instável, pelas ordens
que trazemos por dentro, e ficam sem explicação.
porque somos humanos
e a guerra é feita pelas nossas mãos,
pelo nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra,
por nosso sangue estranho e instável, pelas ordens
que trazemos por dentro, e ficam sem explicação.
Cecília Meireles: Terminada
a Escola Normal, fui lecionar o primário, ainda com um jeito de menina, num
sobrado da Avenida Rio Branco. Ali, na mesma sala, havia duas turmas e duas professoras,
a metade voltada para cada lado. Pois as crianças, vendo-me quase tão menina
quanto elas, viraram quase todas para mim. Sempre gostei muito de ensinar.
Trabalhei na Escola Deodoro, ali junto ao relógio da Glória. Fui professora de
Literatura da Universidade do Distrito Federal. Criei a primeira biblioteca
infantil, ali onde era o Pavilhão Mourisco. Criança que não tivesse onde ficar
podia encontrar o livro que lhe faltava, coleção de selos, moedas, jogos de
mesa, sonhos, histórias e as explicações de professoras prontas e atentas.
Acabou, depois de quatro anos, mas frutificou em São Paulo onde hoje existe até
biblioteca infantil para cegos. Também ensinei História do Teatro na Fundação
Brasileira. O resto da minha atividade didática está nas conferências em que
sempre procuro transmitir algo.
Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre de meus dedos
colore as areias desertas.
Cecília Meireles: Você
sabe que eu tenho muito medo da literatura que é só literatura e que não tenta
comunicar?
Ando à procura de espaço
para o desenho da vida.
Em números me embaraço
e perco sempre a medida.
Se penso encontrar saída,
em vez de abrir um compasso,
protejo-me num abraço
e gero uma despedida.
para o desenho da vida.
Em números me embaraço
e perco sempre a medida.
Se penso encontrar saída,
em vez de abrir um compasso,
protejo-me num abraço
e gero uma despedida.
Cecília Meireles: Vivo constantemente com
fome de acertar. Sempre quase digo o que quero. Para transmitir, preciso saber.
Não posso arrancar tudo de mim mesma sempre. Por isso leio, estudo. Cultura,
para mim, é emoção sempre nova. Posso passar anos sem pisar num cinema, mas não
posso deixar de ler, deixar de ouvir minha música (prefiro a medieval), deixar
de estudar, híndi ou o hebraico, compreende?
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
Cecília Meireles: Casei
com vinte anos. Tenho três filhas: Maria Elvira, Maria Matilde e Maria
Fernanda. As três são bibliotecárias mas a minha biblioteca não está fechada.
Maria Fernanda você conhece como atriz, não é mesmo? As três têm em comum uma
bondade comovente mas são de temperamentos completamente diferentes. Tenho
cinco netos. Viúva, casei em 1940 com Heitor Grilo, um homem admirável pela sua
extraordinária fé no ser humano, em sua ânsia de tudo elevar. Basta dizer a
você que, nesta primeira e única doença que tive e que me segurou cinco meses,
ele não arredou pé, um momento de carinho, gesto e palavra prontos, apesar de
suas inúmeras responsabilidades e ocupações. Conheci-o quando fui entrevistá-lo
certa vez. Depois... nunca mais o entrevistei. Entendemo-nos até calados.
No fio da respiração,
rola a minha vida monótona,
rola o peso do meu coração.
Cecília Meireles: Estudei canto e
violino. Abandonei. Era preciso ganhar a vida e poesia se pode criar até numa
viagem de bonde. Mesmo nas reuniões em que muita gente discutia eu era capaz de
me ausentar em meu mundo e construir. Aos poucos pude criar a minha Ilha de
Nanja, a São Miguel transfigurada pelo sonho. Acho linda a continuidade humana
através da poesia. Só viajo com a Bíblia. A Bíblia é uma biblioteca. Tem tudo:
história, poesia, religião. Já disse que, se tivesse que escolher o meu livro
para uma ilha deserta, levaria a Bíblia. Ou um dicionário.
Minha esperança perdeu seu nome...
Fechei meu sonho, para chamá-la.
A tristeza transfigurou-me
como o luar que entra numa sala.
Fechei meu sonho, para chamá-la.
A tristeza transfigurou-me
como o luar que entra numa sala.
Cecília Meireles: Mas
comigo aconteceu uma coisa deliciosa, deixe-lhe contar. Neste Natal eu estava
doente em São Paulo. Pois bem. Ao voltar para esta minha casa (Cecília vive ao
lado do bondinho que sobe pro Corcovado) encontrei cartões de gente de todos os
cantos do mundo que se lembrou de mim. De todas as raças e religiões. Todos
unidos pelo Natal. E o mais curioso é que eu olhava um cartão e outro e dizia
comigo mesma: “Fulano talvez não combine com Beltrano, mas eu servi de elo
entre os dois. A mim eles escreveram!” Me fez um bem enorme aquele meu Natal
atrasado!
Na quermesse da miséria,
fiz tudo o que não devia:
se os outros se riam, ficava séria;
se ficavam sérios, me ria.
Cecília Meireles: Se eu
inventei palavras? Não. Isto nunca me preocupou. No inventar há um certa dose
de vaidade. “Inventei. É meu”. O que me fascina é a palavra que descubro, uma
palavra antiga abandonada e que já pertenceu a tanta gente que a viveu e
sofreu! No “Romanceiro do Rio de Janeiro”, que estou preparando para o IV
Centenário, procuro usar, em cada capítulo, a linguagem da época.
Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...
Cecília Meireles: Tenho
amigos em toda parte. Mas sou feito o Drummond que é tão amigo quase sem a
presença física. Esse meu jeito esquivo é porque eu acho que cada ser humano é
sagrado, compreende? Eu sou uma criatura de longe. Não sei se me querem mas eu
quero bem a tanta gente! Sou amiga até dos mortos. Amiga de muita gente que nem
conheci. Você não imagina quanta gente eu levo ao meu lado. E fico emocionada
quando penso como uma criatura só recebe tanto de tantos lados, de tantas
pessoas, de tantas gerações!
Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.
derrame luz na minha testa.
Deixe esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.
Cecília Meireles: Tenho pena de ver uma
palavra que morre. Me dá logo vontade de pô-la viva de novo. “Solombra”, meu
novo livro, é uma palavra que encontrei por acaso e que é o nome antigo de
sombra. Era o título que eu buscava e a palavra viveu de novo.
Que procuras? Tudo. Que desejas? — Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.
Cecília Meireles: Cada lugar aonde chego
é uma surpresa e uma maneira diferente de ver os homens e coisas. Viajar para
mim nunca foi turismo. Jamais tirei fotografia de país exótico. Viagem é
alongamento de horizonte humano. Na Índia foi onde me senti mais dentro de meu
mundo interior. As canções de Tagora, que tanta gente canta como folclore, tudo
na Índia me dá uma sensação de levitar. Note que não visitei ali nem templos
nem faquires. O impacto de Israel também foi muito forte. De um lado, aqueles
homens construindo, com entusiasmo e vibração, um país em que brotam flores no
deserto e cultura nas universidades. Por outro lado, aquela humanidade que vem
à tona pelas escavações. Ver sair aqueles jarros, aqueles textos sagrados, o
mundo dos profetas. Pisar onde pisou Isaías, andar onde andou Jeremias ...
Visitar Nazaré, os lugares santos! A Holanda me faz desconfiar de que devo ter
parentes antigos flamengos. Em Amsterdã, passei quinze dias sem dormir. Me dava
a impressão de que não estava num mundo de gente. Parecia que eu vivia dentro
de gravuras. Quanto a Portugal, basta dizer que minha avó falava como Camões.
Foi ela quem me chamou a atenção para a Índia, o Oriente: “Cata, cata, que é
viagem da Índia”, dizia ela, em linguagem náutica, creio, quando tinha pressa
de algo, chá-da-índia, narrativas, passado, tudo me levava, ao mesmo tempo à
Índia e a Portugal.
Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
a vida só é possível
reinventada.
Cecília Meireles: A babá
Pedrina me contava a história do Palácio de Louça Vermelha. Eu achava que devia
ser muito fresco viver num palácio assim e, em menina, já estava pronta a
transformar um jarro imenso que havia em casa em palácio, quando, querendo
escondê-lo de meus sonhos, de tanto procurarem lugar para ocultá-lo, o partiram
em mil pedaços.
Traze-me um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
— vê que nem te peço alegria.
que as nuvens transportam por cima do dia!
Um pouco de sombra, apenas,
— vê que nem te peço alegria.
Cecília Meireles: Viagens,
folclore e idiomas são uma espécie de constante em minha vida. Comprei livros e
discos de hebraico. Estudei hindi, sânscrito. O desejo de ler Goethe no
original me obrigou a estudar alemão. Não estudo idiomas para falar, mas para
melhor penetrar a alma dos povos.
Cecília Meireles: Meus amigos, é curioso, ou vivem longe ou estão distantes. Minha casa já é contramão. Gosto de estudar o que me dá conhecimento melhor das pessoas, do mundo, da unidade. Por meio dos idiomas e do folclore, vejo até que ponto somos todos filhos de Deus. A passagem do mundo mágico para o mundo lógico me encanta.
Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.
E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.
Cecília Meireles: Meus amigos, é curioso, ou vivem longe ou estão distantes. Minha casa já é contramão. Gosto de estudar o que me dá conhecimento melhor das pessoas, do mundo, da unidade. Por meio dos idiomas e do folclore, vejo até que ponto somos todos filhos de Deus. A passagem do mundo mágico para o mundo lógico me encanta.
Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.
E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.
Cecília Meireles: Nunca esperei por momento algum na vida. Vou vivendo todos os momentos da melhor maneira que posso. Quero realizar coisas, não para ser a autora, mas para dar-me, para contribuir em benefício de alguém ou de alguma coisa. Quando adoeci e tinha que repousar uma hora depois do almoço, ficava calculando quanto poema deixava de escrever, quanta coisa linda deixava de ler e conhecer naquelas horas perdidas. Mas aprendi também a renunciar. Não tenho poema predileto. Ainda não o escrevi. A intenção é que é perfeita. Às vezes, um poema viaja comigo muito tempo sem ser escrito. Se não lhe dou muita importância, vai embora. Tenho muita pena dos poemas que não escrevo. E também muita dos que escrevo.
E minha alma, sem luz nem tenda,
passa errante, na noite má,
à procura de quem me entenda
e de quem me consolará...
passa errante, na noite má,
à procura de quem me entenda
e de quem me consolará...
Cecília Meireles: A juventude de hoje?
Acho que são meninos que não têm tempo de crescer. Saltam do apartamento
fechado para a calçada de mil solicitações, sem armadura, sem objetivo, sem a
necessária religiosidade. A vida passa a ser uma coisa zoológica. Muitos
crescem zoologicamente. Inventam modas, mas como não têm essência de verdade,
as modas não pegam. As frustrações crescem. Felizmente muitos se realizam
apesar de tudo. Cada geração acredita que traz uma nova voz e uma nova
mensagem.
Permite que eu volte o meu rosto
para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo.
para um céu maior que este mundo,
e aprenda a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo.
Cecília Meireles: A arte
abstrata? Nós, pouco a pouco, vamos caminhando para o subentendido, não é? A
arte abstrata é uma alusão. Você constrói dentro de si. Muita gente faz coisas
com nomes concretos que geram um mundo abstrato e vice-versa.
Aquilo que ontem cantava
já não canta.
Morreu de uma flor na boca:
não do espinho na garganta.
já não canta.
Morreu de uma flor na boca:
não do espinho na garganta.
Cecília Meireles: Tenho, nos lugares mais diferentes, amigos à minha espera. Você já reparou que, entre centenas, em cada país, nós temos sempre aquela pessoa, que, sem mesmo saber, espera por nós e, quando nos encontra, é para sempre? Por isso é que eu gosto tanto de viajar, visitar terras que ainda não vi e conhecer aquele amigo desconhecido que nem sabe que eu existo, mas que é meu irmão antes de o ser.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Cecília Meireles: Educação, para mim; é botar, dentro do indivíduo, além do esqueleto de ossos que já possui, uma estrutura de sentimentos, um esqueleto emocional. O entendimento na base do amor.
Em prosa Cecília dá lições de grandeza. Vejam como
descreve o barquinho Elenita: “parece uma nuvenzinha a correr por um espelho”.
E o “Anjo da Noite”: “À noite o mundo é bonito, como se não houvesse
desacordos, aflições, ameaças. Há muitos sonhos em cada casa. O gato volta
apressado, com certo ar de culpa”. “Chuva com Lembranças”: “Começaram a cair
uns pingos de chuva. Tão leves e raros que nem as borboletas ainda perceberam”.
Outro: “Com estas florestas de arranha-céus que vão crescendo, muita gente
pensa que passarinho é coisa de jardim zoológico”.
Cecília Meireles: Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul onde costumava pousar um pombo branco. Nos dias límpidos o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa e me sentia completamente feliz. Mas houve épocas em que a janela abria para um canal em que oscilava um barco carregado de flores. Outras em que se abria para um terreiro, sobre uma cidade de giz, para um jardim que parecia morto. Outras vezes abre a janela e encontra um jasmineiro em flor, nuvens espessas ou crianças que vão para a escola, pardais que pulam pelo muro, gatos, borboletas, marimbondos, um galo que canta, um avião que passa. E Cecília se sente completamente feliz. E conclui: “Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim”.
Olho para Cecília encolhida em sua poltrona, iluminando a penumbra do canto da sala. Vejo-a tão menina olhando o solo e descobrindo na madeira floresta e lendas, deslumbrada de azul! Uma ilha cercada de pontes por todos os lados. Pontes para a ternura, pontes para a poesia, pontes para a alma de cada um. E olhando-a assim, poesia ela mesma, tão alta e tão pura, percebo porque continua a ser a garotinha à procura do eco, correndo por todos os cantos e por todos os deslumbramentos, sem poder recolher o eco da própria voz: nós somos o seu eco, cantamos o seu canto, sem que ela perceba; somos todos um pouco habitantes de sua Ilha de Nanja “onde as crianças brincam com pedrinhas, areia, formigas”. “Solombra”, a última obra de Cecília, quer dizer só sombra. Cecília, para nós. é só luz.
Nota: Entrevista publicada
na revista “Manchete”, edição nº 630, em 16 de maio de 1964. E posteriormente
no livro “Pedro Bloch Entrevista”, Bloch Editores, em 1989.
A última entrevista de Cecília Meireles
Reviewed by Natanael Lima Jr
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