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O INTERTEXTO NA CANÇÃO “BOM CONSELHO”, DE CHICO BUARQUE

 

Postado por DCP em 13/05/2023

 

Por Neilton Limeira Florentino de Lima*










Chico Buarque I Imagem: Reprodução







O escritor e crítico Silviano Santiago, em seu livro Uma Literatura nos Trópicos — ensaios sobre a dependência cultural (2000), dedica um dos textos, publicado no Suplemento Literário de Minas Gerais, em 1973, a respeito da obra dos cantores, compositores e escritores Caetano Veloso e Chico Buarque. Deste último, ele destaca a canção intitulada “Bom Conselho”, música de 1972, cantada por Maria Bethânia, composta para o filme de Cacá Diegues: Quando o Carnaval chegar. É a respeito desta canção que a presente análise trata, percebendo na letra a presença da intertextualidade, que no conceito de Norman Fairclough (2001, p. 4) é a “propriedade que têm os textos de ser cheios de fragmentos de outros textos” quantitativamente.

 

 

Santiago destaca na música “Bom Conselho”, e em outras canções de Chico Buarque, a influência do discurso poético de João Cabral de Melo Neto, bem como, nesta específica composição o explícito uso de provérbios e máximas populares, afinal “a versão dos provérbios nos indica também o lugar onde sempre foi a questão da verdade comunitária, lugar este — frisemos — que está sendo substituído e ao mesmo tempo ocupado pela voz do cantor” (SANTIAGO, 2000, p. 173). Desta assertiva se compreende a importância de Buarque, desde o início da carreira, em 1964, no I Festival de Música Popular Brasileira, sua popularidade, musicalidade e posicionamento político, até os dias atuais, tornando uma das maiores referências do Brasil para o mundo e, em 2019, vencedor da 31ª edição do Prêmio Luiz Vaz de Camões de Literatura, só entregue agora, em 2023, pelas mãos do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, pois o anterior se negou a fazê-lo, reforçando sua pequenez na História do Brasil.

 

 

O cantor, escritor de peças e roteiros teatrais, como: Roda Viva (1967) em pleno auge da Ditadura; Ópera do Malandro (1974), a partir de Estorvo (1991), vencedor do Prêmio Jabuti no ano seguinte; Budapeste (2003) também premiado em 2004, e em 2009 adaptado para o Cinema; Leite Derramado (2009); O irmão alemão (2014), mescla de ficção e biografia; Essa gente (2019), tem enveredado de corpo e alma no universo literário, principalmente na prosa, pois, segundo o mesmo “Nunca publiquei nem creio que venha a publicar um livro de poemas. Não escrevo poemas” (BUARQUE, 2023), evidenciado nele a distinção entre as suas letras de música e os versos poéticos, o que podemos problematizar, diante das belas e complexas canções dele.

 

 

A Intertextualidade implica, segundo Kristeva (apud FAIRCLOUGH, 2001, p. 134). “A inserção da História (sociedade) em um texto e deste texto na História”. É aconselhável contextualizar o(a) leitor(a) no tempo de qualquer criação artística. Do fim da década de 60 ao início de 70 houve uma fase crítica para o mundo. Focalizando no Brasil e o momento político-sociocultural, existiram temas proibidos e privilegiados. Várias foram as saídas encontradas por artistas e literatos para expressar, em tempos de medo e perseguição por conta da Ditadura, suas ideias.

 

 

É deste período, após o lançamento de “Construção” (1971), grande sucesso, que Buarque reinicia sua verve ácida e irônica. A canção já traz no título “Bom Conselho”, uma maneira de chamar atenção ao ouvinte-leitor(a); a melodia é simples, a música curta dá o seu recado rápido. A letra, de 18 versos, divididos em 3 estrofes, é iniciada pelo verso “Ouça um bom conselho”, no qual se encontra o verbo em sua forma imperativa: “Ouça”. Toda a letra é marcada por verbos desta mesma característica — na voz do cantor, em gravação ao vivo de 1972 percebe-se as ênfases nestes verbos: “dou”, “Espere”, “Venha”, “Deixe”, “Brinque”, “Faça” e “Aja”, com a voz lírica ‘aconselhando’ o(a) ouvinte-leitor(a); além das expressões: “Corro”, “Vim”, “semeio”, “Vou” e “bebo”, nos quais a voz lírica assume suas atitudes. É com o uso destes verbos e a ’voz’ imperativa que se constrói a canção, porém, o toque do artista engajado em seu tempo (que se perpetua e não se data), traz nos ‘conselhos’ dados o traço da fina ironia, e desta a desconstrução dos provérbios e máximas populares: “Ouça um bom conselho / Que eu lhe dou de graça / Inútil dormir que a dor não passa”. Deste a negação dos conselhos dados pelas mães aos filhos: “Durma meu filho, que a dor logo passa”, que na letra anuncia uma ideia irônica e paradoxal: nem o sono aliviará a dor. Sobre a ironia e a intertextualidade, segundo Sperber e Wilson (apud FAIRCLOUGH, 2001, p. 158): “Os estudos tradicionais sobre a ironia a descrevem em termos de dizer uma coisa e significar outra. Tal explicação é de utilidade limitada, porque o que falta é a natureza intertextual da ironia: o fato de que um enunciado irônico ‘ecoa’ o enunciado do outro”.

 

 

É este tom que perpassa toda a letra, desta natureza a temática e contexto da canção: “Espere sentado/ Ou você se cansa / Está provado, quem espera nunca alcança”. Nestes versos a retórica às avessas dos ‘conselhos’, já que na voz da sabedoria popular: “Quem espera sempre alcança” e “Espere deitado ou você se cansa”. É importante frisar aqui o pessimismo nas palavras, que deriva do contexto realista da época. Na sequência há “Venha meu amigo/ Deixe esse regaço / Brinque com meu fogo / Venha se queimar / Faça como eu digo / Faça como eu faço / Aja duas vezes antes de pensar”. O chamamento íntimo “meu amigo” reforça a marca da ironia; a sugestão para que o ‘amigo’ deixe o “regaço” leva o(a) leitor(a), em uma leitura livre, a um dos conceitos da Antiguidade Clássica, o Locus Amoenus (lugar ameno, tranquilo, refúgio dos pastores), desde Homero, presente na poesia bucólica de Teócrito e Virgílio, ecoando, séculos depois no Renascimento, no Barroco e, pincipalmente, no Arcadismo, que na canção presente representa metaforicamente justamente o contrário, pois sabemos que no momento histórico e político dos anos 70 não havia esse lugar de paz, como compositor mais uma vez demonstrando seu traço crítico e irônico. A seguir tem o provérbio “Não brinque com fogo ou você se queima” desconceituado de seu valor semântico, somado a “Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço” e “Pense duas vezes antes de agir”, também desvirtuados dos sentidos originais, transformados em frases de efeito moral para ‘despertar’ o “amigo”, aos ouvintes-leitores, à realidade.

 

 

Finalmente, na última estrofe “Corro atrás do tempo / Vim de não sei onde / Devagar é que não se vai longe / Eu semeio o vento / Na minha cidade / Vou pra rua e bebo a tempestade”. A partir desta parte a voz assume sua persona e se define como alguém que, após dar ‘nobres conselhos’ a outro(a), traz em seu ser uma impetuosa atitude, declarando-se sem origem e sem destino, fazendo deste o ato presente, rebelde, senhor das mudanças, trazendo nas mãos e nas palavras a verdade contrária a tudo que é e está estabelecido. Dos provérbios e máximas “Devagar é que se vai longe” e “Quem planta vento colhe tempestade”, definindo e fechando de forma perfeita a temática da canção. Deste modo, fica clara a importância da intertextualidade na construção artística do aqui homenageado Chico Buarque, levando em conta sua habilidade para desenvolver letras bem elaboradas, líricas e, neste caso, tematizando o universo da cultura popular e os contextos político-sociais.

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

 

BUARQUE, Chico. Bom Conselho. In: http:www.chicobuarque.com.br Acesso em 9 de maio 2023.

 

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

 

CONTINENTE MULTICULTURAL. Ano I, nº 7, 2001.

 

SANTIAGO, Silviano. Uma leitura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 3ª edição. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

 

 

  

 

 

*Neilton Limeira Florentino de Lima é Mestre em Teoria da Literatura (UFPE, 2007). Licenciado em Letras Português/Inglês (UFPE, 2003). Professor Executor do EAD de Letras e Pedagogia no GRUPO SER EDUCACIONAL; Prof. na Escola Monsenhor Fabrício; Membro da UBE — União Brasileira de Escritores; Sócio correspondente do IHO — Instituto Histórico de Olinda; Colunista Literário no site www.domingocompoesia.com.br



 

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