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AUGUSTO DOS ANJOS: O SOLILÓQUIO DE UM POETA VISIONÁRIO

 Postado por DCP em 24/01/2023


Por Neilton Limeira Florentino de Lima*








Augusto dos Anjos I Pintura: Flávio Tavares






Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos, nordestino do Engenho Pau d’Arco, município de Cruz do Espírito Santo, na Paraíba, nasceu a 20 de abril de 1884. Oriundo de uma família que, ainda com posses, vivia e gerava o engenho de úcar. Em 1900 fez os exames para o Liceu Paraibano, ele que aprendera as primeiras letras com o pai, Alexandre Rodrigues dos Anjos, acompanhado por D. rdula de Carvalho R. dos Anjos (a Sinhá-Mocinha), mãe zelosa e austera. É desse ano a publicação do seu sonetoSaudade”, no Almanaque do Estado da Paraíba. Nos anos seguintes, em contato com o meio intelectual paraibano, publica outros: Abandonada”, dedicado ao irmão Alexandre e A Pecadora”, gerador de uma polêmica, por conta de um crítico anônimo que o denegriu, levando o poeta a, em 20 de agosto, responder através da basilar Carta Aberta, plena de ironia e atingindo em cheio o crítico. Em 1903 vai para o Recife tentar cursar a Faculdade de Direito, sendo posteriormente aprovado. Dois anos depois morre seu pai, a quem dedica três imortais sonetos. Neste ano começa a produção em prosa com as Crônicas Paudarquenses. Em 1907 encerra o Curso de Direito, ofício que nunca exerceu. No ano seguinte, muda-se para a capital da Paraíba (hoje João Pessoa) onde começa a dar aulas (ensinando no Instituto Maciel Pinheiro, e mais tarde, via influência do Governador João Machado, no Liceu Paraibano). É dessa época suas contribuições no Nonevar, jornal da cidade. Como também, após a morte do padrasto Aprígio Pessoa de Melo (o Doutor do sonetoRicordanza della mia Gioventú), o início da derrocada do engenho e das posses da família. Em 1909, no Teatro Santa Rosa, discursa em comemoração ao 13 de maio, chocando a plateia ao utilizar o léxico cnico e retórico, novo para o público presente. 1910 é um ano primordial para Augusto, pois entre tantas publicões dos seus poemas, casa-se com Ester Fialho, de quem estava noivo há dois anos, e vende o Engenho Pau d’Arco, arruinado em dívidas. Demite-se do Liceu (após severa discussão com João Machado, que negara licença trabalhista ao poeta, que desejava dedicar-se à publicação de seus versos) e parte com a esposa para o Rio de Janeiro à procura de emprego. O ano a seguir não traz uma boa nova para o poeta: Ester perde o primogênito, a quem Augusto também dedica um soneto. Após os períodos de tristeza, ele consegue ser nomeado professor de Geografia, Corografia e Cosmografia no Ginásio Nacional, e em novembro, depois de constantes mudanças de endereço, nasce a primeira filha: Glória. 1912 é a data marcante na vida do paraibano, pois terminada a impressão de 1.000 exemplares, com a ajuda financeira do irmão Odilon dos Anjos, o poeta lança sua única obra: o Eu. Seu filho, Guilherme Augusto, nasce no ano posterior. Por fim, em 1914, o poeta d’“O lamento das coisas”, é nomeado Diretor do Grupo Escolar de Leopoldina, mudando-se para Minas Gerais, desejoso de equilibrar-se profissional e financeiramente. Viveu por lá quatro meses, ensinando, participando da sociedade local, enfim, fazendo-se presente e querido. Pom, adoecido desde 30 de outubro, falece no mês seguinte, dia 12, acometido de pneumonia.


Em 1910, ano em que chegou ao Rio de Janeiro, Augusto encontrou uma sociedade de sorrisos, no dizer de Afrânio Peixoto, em que ainda reinavam as poesias parnasiana e simbolista, contrapondo-se, temática e linguisticamente à primeira e influenciado pela segunda, principalmente por Cruz e Sousa. Pom, diferente deste, o poeta cultivou versos de um antilirismo arrebatador, espelhado nas novas (para a época) concepções das ciências biológicas e fisiológicas, calcadas em Spencer e Haeckel, de onde retirou muito do seu universo linguístico. O filho de Pau d’Arco inseriu na lírica, além das teorias científico-filosóficas, uma original expressão poética, o que levou a crítica a situá-lo ora no Simbolismo, ora no Pré-Modernismo, inclusive sendo ignorado pelos modernistas de 22, por só verem nos seus versos a forma parnasiana e o linguajar dito científico, não percebendo a Modernidade dos poemas.


Arte ingrata! E conquanto, em desalento,

A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,

Busca exteriorizar o pensamento

Que em suas fronetais células guarda!

 

Tarda-lhe a Ideia! A inspiração lhe tarda!

E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,

Como o soldado que rasgou a farda

No desespero do último momento!

 

Tenta chorar, e os olhos sente enxutos!...

É como o paralítico que, à míngua

Da própria voz, e, na que ardente o lavra,

 

Febre de, em vão, falar, com os dedos brutos

Para falar, puxa e repuxa a língua,

E não lhe vem à boca uma palavra!


A partir do título percebemos o tema a ser desenvolvido. Mas que artista seria esse? O parnasiano angustiado pela ideia e pela forma perfeita? O romântico em busca de inspiração? O simbolista criador das musicalidades que os recursos estéticos possibilitam? A voz em 3ª pessoa que nos anuncia, via olhar poético, a angústia do artista, nos desenha um poeta aflito com dois conceitos: a razão e a emoção, ambos essenciais para o seu ofício. Da primeira, o sacrifício com a produção do cérebro, biologicamente analisado: buscando trazer à luz organicamente os versos que lhe surgem e que lhe ferem o olhar; emotivo, em meio às turbulências da sua impotência de Homem em luta com a Musa maior, personificada na Arte. Instintivamente apto a agir desesperado, mas paradoxalmente tomado pelos controles da racionalidade.


Não podendo ser enquadrado em nenhuma Escola ou Movimento fechado, Augusto, diferente dos Neoparnasianos, como exemplifica Lúcia Helena (1977), desenvolve sonetos não meramente formais, descritivos ou objetivos, mas produzidos por uma consciência em conflito e paradoxal: não positivista, nem de linguagem científica somente, mas técnica, elaborando a sua verve, repleta de prosaísmos, coloquialismos, rupturas e experiências estilísticas, tudo em nome da Arte. Segundo Walter Benjamin (1989), não cabe mais à arte contemporânea a função de conforto ou consolo, porém denunciar a alienação dos sujeitos decorrente das transformações sofridas pela sociedade capitalista. Baudelaire representa o declínio da figura clássica do artista. Ao escrever suas Flores do Mal, o poeta francês “teve em mira leitores que se veem em dificuldades ante a leitura da poesia lírica”, dedicando seu livro “àqueles que lhe são semelhantes” (BENJAMIN, 1989, p. 103). Não obstante, ele identificará o artista moderno à figura do herói. Consagrado a signo da Modernidade, este homem teria assumido em sua obra os temas e atitudes que perfazem o artista de seu tempo. Em algumas passagens do poema de Augusto “Monólogo de uma Sombra”, temos:


Com um pouco de saliva quotidiana / Mostro meu nojo à Natureza Humana. / A podridão me serve de Evangelho... / Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques / E o animal inferior que urra nos bosques / É com certeza meu irmão mais velho! [...] // Quis compreender, quebrando estéreis normas, / A vida fenomênica das Formas, / Que, iguais a fogos passageiros, luzem. / E apenas encontrou na ideia gasta, / O horror dessa mecânica nefasta, / A que todas as cousas se reduzem! [...] //  Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa, / Abranda as rochas rígidas, torna água / Todo o fogo telúrico profundo / E reduz, sem que, entanto, a desintegre, / À condição de uma planície alegre, / A aspereza orográfica do mundo!


Neste poema inicial do EU, o projeto maior da obra anjosiana: expor em versos as dores e aflições humanas, em meio às evoluções, mudanças e caos do mundo. Cabendo à Arte e, consequentemente, ao poeta, serem vozes divulgadoras destes preceitos, desestruturando as formas gastas. Nele encontramos temas e recursos estilísticos correntes em seus outros poemas: as vozes que ele personifica (a Sombra, O Filósofo Moderno, o sátiro peralta e a do próprio poeta); a presença de Haeckel, do Orientalismo, a podre procriação humana, além das inovações poéticas: os vobulos técnicos: Raio X, magnetismo; as proparoxítonas: vilíssimas, requintadíssimas; as rimas dos seguintes versos:Toma conta do corpo que apodrece... / No cadáver malsão, fazendo um s, graficamente substituindo a palavra, porém mantendo a métrica por meio da sonoridade; e as intertextuais adjetivações literárias e pictóricas: “Macbeths da patológica vigília / Mostrando, em rembrandtescas telas várias (...)”, pois em Augusto, além da forma e da métrica distintas, são ressaltadas a linguagem e o mergulho no Humano enquanto Ser em decomposão, filosofando sobre oamaldiçoado’ destino de homem, ser verme em uma hereditariedade infinita.


Em seu livro Cinco Paradoxos da Modernidade, que se insere na grande tradição crítica que explora os tópicos ou tendências que, ainda que tenuamente, unificam as várias correntes modernas, Antoine Compagnon (2003) diz-nos que o moderno em si não é tanto a negação da tradição quanto a tradição da negação. Não se trata somente do fato de que o programa moderno traz em seu bojo seu próprio mecanismo de superação ou mesmo destruição, como alguns teóricos da arte e principalmente os dadaístas notaram; antes, talvez seja mais um apelo a uma consideração mais apropriada do Modernismo à luz das contradições românticas que não só o precederam, mas são, em última análise, uma de suas partes essenciais. O primeiro tópico é histórico ou político, isto é, a contrarrevolução. O segundo tema, por sua vez, é filosófico; nas palavras do autor: “pensa-se naturalmente no anti-iluminismo, na hostilidade contra os filósofos e a filosofia do século XVIII”. O terceiro tópico é moral ou existencial, o qual implica a relação pessimista do indivíduo com o mundo. Segundo Compagnon, estes três primeiros temas antimodernos estão conectados a uma visão de mundo inspirada pelo mal. Daí surge, portanto, uma quarta coluna, que é religiosa ou teológica, mais especificamente a realidade do pecado original, a crença não só na imperfectibilidade do homem, mas no fato de que sua natureza, se deixada à sua autonomia, é irredimível e inclinada à iniquidade. Se esses quatro temas constituem a visão de mundo dos antimodernos, os dois últimos definem seu tom e forma: a estética antimoderna associa-se ao sublime; e seu estilo, por sua vez, assume o fervor retórico da vituperação ou imprecação. Nos fragmentos do poema “Os Doentes”, que se inicia com um soneto na primeira parte, (1º quarteto e último terceto, e as demais seguem em quadras), observemos:



Como uma cascavel que se enroscava, / A cidade dos lázaros dormia... / Somente, na metrópole vazia, / Minha cabeça autônoma pensava! [...]

E via em mim, coberto de desgraças, / O resultado de biliões de raças / Que há muitos anos desapareceram! [...] // Ah! Somente eu compreendo, satisfeito, / A incógnita psiquê das massas mortas / Que dormem, como as ervas, sobre as hortas, / Na esteira igualitária do teu leito! [...] // Perfurava-me o peito a áspera pua / Do desânimo negro que me prostra, / E quase a todos os momentos mostra / Minha caveira aos bêbedos da rua. / [...] // O letargo larvário da cidade / Crescia. Igual a um parto, numa furna, / Vinha da original treva noturna, / O vagido de uma outra Humanidade! // E eu, com os pés atolados no Nirvana, / Acompanhava, com um prazo secreto, / A gestação daquele grande feto, / Que vinha substituir a Espécie Humana!



Nos versos, o eu poético (coberto de desgra, hiperbolizando o destino e a tragédia como seu ofício) percorre a cidade (comparada a uma cascavel, analogia que nos remete às serpentes baudelaireanas, vis, medonhas, sibilante e rastejando. Imagem sugerida pelo uso das consoantes: /c/ /s/ e /v/) temporalmente cruzando a noite até o amanhecer, passando pelos locais doentes e vis da urbe; é justamente neles que a simbiose da vida que habita: os que trafegam e sobrevivem, irmanados com o eu. Os lazarentos, tuberculosos, as prostitutas, os bêbedos e morféticos, corpos e matériassem vida’, todos em comunhão, angustiados e desejosos da morte, desagregados em um mundo decrépito. Pom, assim como anunciado, desejoso de um novo renascer: substituindo a espécie humana. Notemos que o poeta, por meio das palavras e aliterações, elabora imagens de asco e ao mesmo tempo, atração, despertando no leitor os sentimentos que o eu vivenciava.


Até o ano de 1908 Augusto viveu no engenho pau D’Arco, com as idas à Paraíba e ao Recife, estudar e fazer as devidas provas para entrar na Faculdade de Direito da Veneza Brasileira, cidade-cenário do extenso poema “Cismas do Destino”, aqui selecionadas algumas estrofes:


Recife. Ponte Buarque de Macedo. / Eu, indo em direção à casa do Agra, / Assombrado com a minha sombra magra, / Pensava no Destino, e tinha medo! [...] // Tal uma horda feroz de cães famintos, / Atravessando uma estação deserta, / Uivava dentro do eu, com a boca aberta, / A matilha espantada dos instintos! [...] // Ah! Com certeza, Deus me castigava! / Por toda a parte, como um réu confesso, / Havia um juiz que lia o meu processo / E uma forca especial que me esperava! [...] // Escarrar de um abismo noutro abismo, / Mandando ao Céu o fumo de um cigarro, / Há mais filosofia neste escarro / Do que em toda a moral do Cristianismo! [...] // Nisto, pior que o remorso do assassino, / Reboou, tal qual, num fundo de caverna, / Numa impressionadora voz interna, / O eco particular do meu Destino: // Homem! por mais que a Ideia desintegres, / Nessas perquirições que não têm pausa, / Jamais, magro homem, saberás a causa / De todos os fenômenos alegres!



O poema é repleto da linguagem fragmentada e visual de Augusto, dramática e em cortes de descrições internas e paisagísticas. Neste, “o eu e a relação com o personalizado Destino não-religioso, eu este hiperbólico, kafkiano, demasiadamente humano, é o pagador dos males terrenos. Daí sua repulsa à divinização feita pelo Clero”, conforme Lima (In: PAIVA e FERREIRA, 2007, p. 211-212). Nos versos o eu lírico nos põe a acompanhá-lo em dantesca peregrinação pela cidade transfigurada em imaginário boulevard baudelairiano, local de procriação e vícios carnais. Nesta assombrosa caminhada, o eu misturado às sombras dos sobreviventes da urbe, se põe afilosofar’ sobre o seu destino de homem, abandonado, inquirindo o Ser divino, que aparece como Julgador medieval, castigador, explicitando a relação entre o eu, que em suas aflições sarcasticamente rompe com os dogmas cristãos: No poeta uma única e mortal certeza: a de nunca ter certeza nenhuma, vivendo as agonias poéticas da eterna dúvida. Em homenagem à Augusto o busto na Praça da República, próxima à versificada ponte Buarque de Macedo.



Na visão de José Miguel Wisnik, no texto “Iluminações profanas (poetas, profetas, drogados)”, há uma ambivalência fundamental que marca a figura do visionário: ele representa crise, mas também caminho. Expressa, por um lado, o desconforto e, por outro, a procura, a tentativa de ir além do conhecimento aparente, superficial. Buscando transpor regiões limítrofes, trabalha com o que está vedado aos outros homens, procura fazer a “representação do irrepresentável.” (WISNIK, 1988, p. 283). Isto posto, no soneto “Solilóquio de um Visionário”, Augusto nos revela:



Para desvirginar o labirinto

Do velho e metafísico Mistério,

Comi meus olhos crus no cemitério,

Numa antropofagia de faminto!

 

A digestão desse manjar funéreo

Tornado sangue transformou-me o instinto

De humanas impressões visuais que eu sinto,

Nas divinas visões do íncola etéreo!

 

Vestido de hidrogênio incandescente,

Vaguei um século, improficuamente,

Pelas monotonias siderais...

 

Subi talvez às máximas alturas,

Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,

É necessário que inda eu suba mais!



Em seus versos quedespertam’ o(a) leitor(a), em comunhão com o eu, para um questionar-se aflito: na “Agonia de um Filósofo”: O inconsciente me assombra e eu nele rolo / Com a eólica ria do harmatã inquieto!; na incômoda presença d’ “O Morcego”: A consciência Humana é este morcego! / Por mais que a gente faça, à noite, ele entra / Imperceptivelmente em nosso quarto; na comiseração e consciência do fatal destino, emPsicologia de um Vencido”: Eu, filho do carbono e do amoníaco, / Monstro de escuridão e rutilância, / Sofro, desde a epigênesis da infância, / A influência má dos signos do zodíaco; fatalidade melancolicamente aceita e que o poeta transforma em originalíssima arte, quer nas limitações do labor n’ “A Ideia” que: quebra a força centrípeta que a amarra, / Mas, de repente, e quase morta, esbarra / No mulambo da língua paralítica!, quer noBudismo Moderno”: Tome, Dr., esta tesoura, e... corte / Minha singularíssima pessoa. / Que importa a mim que a bicharia roa / Todo o meu coração, depois da morte?!, consciente da sua passagem terrena, homem-poeta, em simbiose com as coisas do mundo, a aguardarO Deus-Verme”: Ah! Para ele é que a carne podre fica, / e no inventário da matéria rica / cabe aos seus filhos a maior porção!; rezando o “Último Credo”: Creio, perante a evolução imensa, / Que o homem universal de amanhã vença / O homem particular que eu ontem fui! Eu,solirio’ em meio à multidão dos homens, gritando no Solilóquio de um Visionário: Para desvirginar o labirinto / Do velho e metafísico Mistério, / Comi meus olhos crus no cemirio, / Numa antropofagia de faminto!Solitário”: Levando apenas na tumbal carcaça / O pergaminho singular da pele / E o chocalho fatídico dos ossos!; expurgando seus males contra uma Humanidade decadente e falsa, nosVersos Íntimos”: Se alguém causa inda pena a tua chaga, / Apedreja essa mão vil que te afaga, / escarra nessa boca que te beija!. Enfim, ele oPoeta do Hediondo”, que derradeiramente se anuncia: Eu sou aquele que ficou sozinho / Cantando sobre os ossos do caminho / A poesia de tudo quanto é morto!



Conceito central do pensamento de Bauman (1989), a “modernidade líquida” seria o momento histórico que vivemos atualmente, em que as instituições, as ideias e as relações estabelecidas entre as pessoas se transformam de maneira muito rápida e imprevisível. A Modernidade líquida, no entanto, não se confunde com a Pós-modernidade, conceito do qual Bauman é crítico. De acordo com ele, não há Pós-modernidade (no sentido de ruptura ou superação), mas sim uma continuação da Modernidade, porém com uma lógica diferente – a fixidez da época anterior é substituída pela volatilidade, sob o domínio do imediato, do individualismo e do consumo. Nessa dialética, Augusto nos traz um dos poemas mais lidos e conhecidos de sua obra singular, “Versos Íntimos”, cuja linguagem é peculiar no seu projeto poético: enterro, quimera, lama, miserável, fósforo, escarro, vil, termos correntes em seus versos, entre outros, rompendo ohorizonte de expectativa” dos leitores dos versos parnasianos e simbolistas:



Vês?! Ninguém assistiu ao formidável

Enterro de tua última quimera.

Somente a Ingratidão — esta pantera —

Foi tua companheira inseparável!

 

Acostuma-te à lama que te espera!

O Homem, que, nesta terra miserável,

Mora, entre feras, sente inevitável

Necessidade de também ser fera.

 

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!

O beijo, amigo, é a véspera do escarro,

A mão que afaga é a mesma que apedreja.

 

Se a alguém causa ainda pena a tua chaga,

Apedreja essa mão vil que te afaga,

Escarra nessa boca que te beija!



E no sonetoDebaixo do Tamarindo”, os seus proféticos versos



No tempo de meu Pai, sob estes galhos,

Como uma vela fúnebre de cera,

Chorei biliões de vezes com a canseira

De inexorabilíssimos trabalhos!

 

Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,

Guarda, como uma caixa derradeira,

O passado da Flora Brasileira

E a paleontologia dos Carvalhos!

 

Quando pararem todos os relógios

De minha vida, e a voz dos necrológios

Gritar nos noticiários que eu morri,

 

Voltando à pátria da homogeneidade,

Abraçada com a própria Eternidade

A minha sombra há de ficar aqui!



Atestando, poeticamente a consciência crítica e ‘esperançosa’ do artista, homem não pessimista, eu melancólico e triste, mas sabedor do papel simbólico, biológico e filosófico do Ser:na paleontologia dos Carvalhos” em maiúscula, aludindo tanto à árvore, local sagrado e tumular, representativo da sua terra e raízes, como ao nome de sua família paraibana. Ambos irmanados e, depois da morte, abraçados com a Eternidade, dando sequência à vida nos elementos que deles brotarem: os frutos e os versos. O que, em nossa leitura, esclarece em Augusto a maturidade artística de se colocar como crítico moderno da própria arte, sabedor da singularidade dos versos que deixou aos leitores futuros, enfatizada nos tercetos e nos versos finais: “Abraçada com a própria Eternidade / A minha sombra há de ficar aqui!”.



É por meio da linguagem e dos temas poéticos que o bardo paraibano anuncia as novidades nos versos: transformando em poesia as experiências concretas do ser humano. Esteticamente rompendo, mas dialogando com as formas tradicionais, porém consciente do novo papel que o poeta, em meio a esse caos da passagem dos séculos, deveria assumir. Utilizando, no dizer de Gullar (1976), as inusitadas construções sinticas, a ruptura do ritmo, a montagem de palavras e imagens, das enumerações, a mescla de vobulos coloquiais e eruditos, as palavras comuns e vulgares, ditas não poéticas com as poéticas, e, antes mesmo dos modernistas de 22, criando em versos umprosaísmo’ peculiar e exemplar do cotidiano, com frases fragmentadas. A celebração da dor e da morte, o gosto pelo cruel e pelo mórbido, oriundos do Decadentismo, o expressionismo (nas pinturas de Munch), a metasica, o pessimismo schopenhaueriano, os termos científicos decorando estruturalmente seus versos, tornando-os kitsch, são marcas, segundo José Paulo Paes (1985), doartenovismo” na poesia de Augusto.


O que nos faz mais uma vez, ainda que discordando dosrótulos’ utilizados pelo estudioso, confirmar a singularidade deste poeta inclassificável, ora por trazer tons do mal do século, decadentista e romântico, paisagens naturalistas, a fôrma fechada dos parnasianos, a musicalidade dos simbolistas, dialogando com as formas tradicionais, ora não pertencente a nenhuma Escola ou Movimento, paradoxalmente por romper com os mesmos, e possibilitar o surgimento de ‘novas estéticas’, voz atemporal e que se encontra, estética e tematicamente, pleno de contemporaneidade, Modernidade e Pós-Modernidade, crítico e aberto aos futuros leitores.


REFERÊNCIAS

 

BENJAMIM, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. (trad.) José Martins Barbosa et al., São Paulo: Brasiliense, 1989.

 

BUENO, Alexei. (org.). Augusto dos Anjos. Obra Completa, volume único. Organização, fixação do texto e notas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

 

COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. (trad.) Cleonice P. Mourão et al., Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

 

GULLAR, Ferreira. Augusto dos Anjos ou a vida e morte nordestina. In: ANJOS, Augusto dos. Toda a poesia de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

 

HELENA, Lucia. A cosmo-agonia de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977.

 

LIMA, Neilton Limeira Florentino de. Antero, Augusto e Pessoa o interrogar-se sobre si ou a inquietude religiosa. In: Em Pessoa: Estudos decorrentes da execução do projeto Na Véspera de não partir nunca, 70 anos sem Fernando Pessoa. (org). PAIVA, José Rodrigues de; FERREIRA, Ermelinda Maria Araújo. Recife Ed. Universitária da UFPE, 2007.

 

LIMA, Neilton Limeira Florentino de. Diálogos Poéticos entre Antero de Quental e Augusto dos Anjos: a Modernidade Luso-Brasileira. (2007). Pesquisado em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/7776 acesso em 4 jan 2023.

 

LIMA, Neilton Limeira Florentino de. Augustos dos Anjos: o solilóquio de um poeta visionário. In: Letras em luta: as senhas da esperança. (org). QUEIROGA, L. F. A. RS, 2021.

 

PAES, José Paulo. Gregos e baianos. São Paulo: Brasiliense, 1985.

 

PAZ, Octavio. Os Filhos do Barro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1974.

 

WISNIK, José Maria. Iluminações Profanas (poetas, profetas e drogados). Pesquisado em https://www.artepensamento.com.br/item/iluminacoes-profanaspoetas-profetas-e-drogados/ acesso 4 de jan 2023






*Neilton Limeira Florentino de Lima é escritor, revisor, crítico, mestre em Teoria da Literatura (UFPE), professor executor do EAD de Letras e Pedagogia no Grupo Ser Educacional, membro da UBE e colunista literário no site DCP






  










AUGUSTO DOS ANJOS: O SOLILÓQUIO DE UM POETA VISIONÁRIO AUGUSTO DOS ANJOS: O SOLILÓQUIO DE UM POETA VISIONÁRIO Reviewed by Natanael Lima Jr on 22:06 Rating: 5

14 comentários

  1. Augusto realmente atuou em solilóquio em seu tempo, e, sinda hoje não encontra par na poesia brasileira.

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  2. Grato Natanael por mais esta singular publicação em prol da Literatura e um dos Poetas brasileiros, nordestinos, maiores da língua portuguesa

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  3. Tive a honra de tê-lo como Professor e orientador em meu TCC. Mestre Neilton, trabalho Genial. Parabéns por todas as conquistas.

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  4. Belo artigo e excelente análise. Augusto dos Anjos se mostra em seu caminhar dono das dores em corpos sem vida para transmutar as tragédias em seus versos.

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  5. Parabéns pelo texto e pesquisa sobre a vida de Augusto dos Anjos

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    1. Obg, nobre! Este breve texto é parte de um maior, minha dissertação de Mestrado, bem como contínuo estudo sobre Augusto!

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  6. Parabéns pelo texto mestre Neiton!

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  7. Parabens pelo belo texto, ótima pesquisa mestre Neiton

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  8. Diante deste artigo, fico cada vez mais defensor da poética de Augusto dos Anjos, um grande e irretocável nome da poesia brasileira. Um incompreendido na época, sobretudo, por aqueles que o criticavam, e o escorraçavam do cenário literário dominado por nomes como, Olavo Bilac. Hoje, a poética Contemporânea, principalmente a de Vital Correa de Araújo, a partir de nomes como, Stéphane Mallarmé, Arthur Rimbaud, Charles Baudelaire e Augusto dos Anjos a poesia recebeu uma dimensão maior, na perspectiva da poesia não-óbvia, hipermetafórica e extremamente subjetiva, hermética, tal qual a arte plástica abstrata, seja lírica ou geométrica, nos sugerindo infinitas interpretabilidades. Deixando ao leitor a exortação de que ele mesmo, dê sentido ao poema lido. Salve, salve Augusto, VCA e o autor do presente Artigo. Porque nesses eu me motivo e me amplio poeticamente nas letras da sabedoria de cada um.

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    1. Prezado Gleidistone, muito grato pelas excelentes colocações sobre o vate paraibano, tema de meus estudos! De fato, Augusto é singular, mas dialoga com a tríade francesa, afinal, a Modernidade, pós-Modernidade não existem sem eles. Quanto à VCA, nosso querido poeta, seus poemas são 'socos' no estômago do leitor...ee sua zona de conforto; Vital o sacode, o desperta!

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