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JOAQUIM CARDOZO, O POETA QUE CONSTRUIU SONHOS



Por Maria de Lourdes Hortas*







Joaquim Cardozo / Foto: Reprodução




Joaquim Maria Moreira Cardozo, um dos mais brilhantes intelectuais do país. Nasceu em 26/08/1897, no Recife. Foi engenheiro estrutural, poeta, contista, dramaturgo, professor universitário, tradutor, editor de revistas de arte e arquitetura, desenhista, ilustrador, caricaturista e crítico de arte.

Especializado em cálculo de estruturas, notabilizou-se pela sua colaboração com o arquiteto Oscar Niemeyer na construção de Brasília e do Conjunto Arquitetônico da Pampulha. Para Niemeyer, Joaquim Cardozo era "o brasileiro mais culto que existia".

Foi autor de onze livros, dos quais destacam-se o seu livro de estreia “Poemas” (1947), cujo prefácio foi escrito pelo poeta Carlos Drummond de Andrade, um dos seus incentivadores; outras duas para o teatro, “O Coronel de Macambira” (1963) e “De uma noite de festa” (1971), e suas “Poesias Completas” (1971).

Sobre a poesia e a arquitetura Joaquim Cardozo afirmou em certa ocasião: “Não visualizo qualquer incompatibilidade entre poesia e a arquitetura. As estruturas planejadas pelos arquitetos modernos são verdadeiras poesias. Trabalhar para que se realizem esses projetos é concretizar uma poesia”.

Joaquim Cardozo faleceu no dia 04 de novembro de 1978, em Olinda/PE., aos 81 anos. 








POEMAS DE JOAQUIM CARDOZO SOBRE O RECIFE E OLINDA
ESCOLHIDOS POR MARIA DE LOURDES HORTAS




TARDE NO RECIFE

Tarde no Recife.
Da ponte Maurício o céu e a cidade.
Fachada verde do Café Maxime,
Cais do Abacaxi. Gameleiras.

Da torre do Telégrafo Ótico
A voz colorida das bandeiras anuncia
Que vapores entraram no horizonte.

Tanta gente apressada, tanta mulher bonita;
A tagarelice dos bondes e dos automóveis.
Um camelô gritando: - alerta!
Algazarra. Seis horas. Os sinos.

Recife romântico dos crepúsculos das pontes,
Dos longos crepúsculos que assistiram à passagem dos fidalgos
                                                                            [holandeses,
Que assistem agora ao movimento das ruas tumultuosas,
Que assistirão mais tarde à passagem dos aviões para as costas
                                                   [do Pacífico;
Recife romântico dos crepúsculos das pontes
E da beleza católica do rio.

(1925)


OLINDA

Olinda,
Das perspectivas estranhas,
Dos imprevistos horizontes,
Das ladeiras, dos conventos e do mar.

Olho as palmeiras do velho seminário,
O horto dos jesuítas;
E neste mar distante e verde, neste mar
Numeroso e longo
Ainda vejo as caravelas...

Sábio silêncio do Observatório
Quando à noite as estrelas passam sobre Olinda.
Muros que brincam de esconder nas moitas,
Calçadas que descem cascateando nas ladeiras.

Olinda,
Quando o luxo, o esplendor, o incêndio
E os Capitães-mores e os jesuítas
E os Bispos e os Doutores em Cânones e Leis.

E ainda
Com as velhas bicas, os velhos pátios das igrejas:
Amparo, Misericórdia, S. João, S. Pedro,
Nossa Senhora de Guadalupe;
E os Beneditinos e as irmãs Doroteias
E os padres de S. Francisco.

Neste silêncio, neste grande silêncio,
No terraço da Sé,
Sentindo a tarde vir do mar, tão doce e religiosa,
Com a alma celestial de S. Francisco de Assis.

(1925)


RECIFE MORTO

Recife. Pontes e canais.
Alvarengas, açúcar, água rude, água negra.
Torres da tradição, desvairadas, aflitas,
Apontam para o abismo negro-azul das estrelas.
Pátio do Paraíso. Praça de São Pedro.
Lajes carcomidas, decrépitas calçadas.
Falam baixo na pedra as vozes da alma antiga.

Gotas de som sobre a cidade,
Gritos de metal
Que o silêncio da treva condensa em harmonia.
As horas caem dos relógios do Diário,
Da Faculdade de Direito e do Convento
De São Francisco:
Duas, três, quatro... a alvorada se anuncia.

Agora a ouvir as horas que as torres apregoam
Vou navegando o mar de sombra das vielas
E o meu olhar penetra o reflexo, o prodígio,
A humilde proteção dos telhados sombrios,
O equilíbrio burguês dos postes e dos mastros,
A ironia curiosa das sacadas.

As janelas das velhas casas negras,
Bocas abertas, desdentadas, dizem versos
Para a mudez imbecil dos espaços imóveis.

Vagam fantasmas pelas velhas ruas
Ao passo que em falsete a voz fina do vento
Faz rir os cartazes.

Asas imponderáveis, úmidos véus enormes.
Figuras amplas dilatadas pelo tempo,
Vultos brancos de aparições estranhas.

Vindos do mar, do céu... sonhos!... evocações!...
A invasão! Caravelas no horizonte!
Holandeses! Vryburg!
Motins.  Procissões.  Ruído de soldados em marcha.

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Os andaimes parecem patíbulos erguidos

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Vão pela noite na alva do suplício
Os mártires
Dos grandes sonhos lapidados.

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Duendes!
Manhã vindoura. No ar prenúncio de sinos.

Recife,
Ao clamor desta hora noturna e mágica,
Vejo-te morto, mutilado, grande,
Pregado à cruz das novas avenidas.
E as mãos longas e verdes
Da madrugada
Te acariciam.

(1924)


RECIFE DE OUTUBRO

Ó cidade noturna!
Velha, triste, fantástica cidade!
Desta humilde trapeira sem flores, sem poesia,
Alongo a vista sobre as águas,
Sobre os telhados.
Luzes das pontes e dos cais
Refletindo em colunas sobre o rio
Dão a impressão de uma catedral imersa,
Imensa, deslumbrante, encantada,
Onde, ao esplendor das noites velhas,
Quando a noite está dormindo,
Quando as ruas estão desertas,
Quando, lento, um luar transviado envolve o casario,
As almas dos heróis antigos vão rezar.

Sinto no meu sangue a carícia da noite...

No silêncio as horas morreram;
E ao saimento
Das horas mortas
Um sino toca.

Caminho a passo lento.
Creio que alguém me espia do alto, das cornijas.
Vai passando na sombra a ronda dos meus sonhos.

Toda a cidade, eu vejo, está transfigurada:
É um campo desolado, negro, enorme,
Onde rasteja ainda
O último rumor de uma batalha;
E a massa negra dos edifícios,
As torres agudas recortando o azul sombrio,
Cadáveres revoltos, remexidos,
Com braços mutilados
Erguidos para o céu.
Ó minha triste e materna e noturna cidade
Reflete na minha alma rude e amargurada
O teu fervor católico, o teu destino, o teu heroísmo.





*Maria de Lourdes Hortas é poeta, ficcionista e ensaísta






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