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A ESTRANHA ALQUIMIA DE ANTONIO CICERO



por Diego Mendes Sousa*







Imagem da Capa: Reprodução





Estranha alquimia (Editora Penalux, 2020) é a primeira antologia poética da carreira de Antonio Cicero e uma fusão artística das obras Porventura; A cidade e os livros; e Guardar.

Existe, na poesia de Antonio Cicero Correia Lima, um perceptível estrato de Filosofia, apesar de a formação intelectual do poeta carioca com ascendência piauiense estar envolta permanentemente, na sabedoria milenar dos pensadores de todos os tempos. É um espécime de Friedrich Nietzsche (1844-1900), onde a poesia ressuscita violenta.

Poeta da emoção, cuja sensibilidade alia sentimentos, sentidos e imaginação, seu desafogo lírico é estranho, no sentido de ser espantoso, invulgar e extraordinário. Há uma clave de palavras incomuns que percorrem os seus poemas sempre bem realizados, seja na contenção, seja na fuga. Os poemas de Antonio Cicero são feitos para serem lidos em voz alta, declamados por um menestrel, daí a origem do sucesso de muitos dos seus versos.

(...) Adoro esse olhar blasé
que não só já viu quase tudo
mas acha tudo tão déjà vu mesmo antes de ver.

Cicero não é somente o poeta e o filósofo, é também uma celebridade do cancioneiro brasileiro. Seus poemas são canções melódicas de apurado gosto que invadem os nossos lares - através de intérpretes de talento como Marina Lima e Adriana Calcanhotto - e emplacam, pela sutileza dos recados amorosos e pelo requinte da sua poesia.

(...) eu vi um avião
se espelhar no seu olhar até sumir

Antonio Cicero conhece a arte do poema e tem um quê de Konstantínos Kaváfis (1863-1933), não pelas temáticas que abrangem o enigma helênico e histórico, a arquitetura milenar dos mitos e a sensualidade velada de amores múltiplos e não convencionais, mas também pela concentração produtiva e pelo rigor na elaboração dos versos.

A alma mitológica de Antonio Cicero é modelar na história da Literatura Brasileira, em sua maneira de ser única. Há um apreço pelo vasto mundo clássico, que entoa um estilo erudito, recorrendo ao uso do Latim, com delegações primorosas pelas Línguas Inglesa, Francesa, Italiana e Alemã. Cicero dosa bastante as palavras, a gerar o rebuscamento da linguagem; E nada soa artificial ou mesmo petulante. Sua poesia é implacável, recheada de elementos vivos, modernos, complexos, relativos e, sobretudo, de intenso lirismo.

(...) Filho da diáspora
e dos encontros fortuitos, o poema
me esclarece: toda origem é forjada (...)

O estranhamento das cintilações ocorre, de pronto, em alguns títulos: Nihil, Blackout, La Capricciosa, Merde de Poète, Aufklärung, Huis Clos, Stromboli, Água Perrier, Ignorant Sky, que demonstram que o universo do poeta se amplia pela esfinge e não faz concessão às facilidades de inúmeros recursos poéticos disponíveis para o mais célere entendimento. O seu leitor deve ser um experimentado na cosmovisão literária, filosófica e artística.

A alquimia de Antonio Cicero reside em transformar a sua consciência sobre o tempo, em percepções simbólicas. No corpo a corpo da sua linguagem, flui o advérbio “jamais”, amiúde, por diversos poemas. Cicero recorre ao léxico para mover a transitoriedade da vida. Seu olhar agnóstico não permite repetições. A casa da poesia quer perfeição, quer o absoluto, sendo essa universalidade uma obsessão de raro estímulo eternal à sua dicção de humanista.

(...) Poesia,
na prisão destes meus dias
ensina-me a elogiar-te.

Às vezes hermética, a poesia de Antonio Cicero transcende pelo passageiro que alimenta as imagens sensuais e/ou sexuais, de amor em substância mística, a desnudar o nome do seu amado Marcelo. O mar, o céu e a claridade do dia vibram para além da beleza das coisas terrenais, nada comezinho, que somente um poeta do seu escol e da sua largueza consegue desvelar.

(...) Os mares em que mergulho
são os homéricos, cor de vinho.

Marcelo é um mote amadurecido. Poemas magistrais como Balanço; Declaração; e Elo são sinônimos de maestria. Antonio Cicero alimentou-se em fontes cultas. Na planta-baixa do seu fôlego alquímico, percebo um manancial de referências desde citações bíblicas, aos clássicos, como Homero, Horácio, Catulo, Safo, até Dante, Camões, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, a desaguar em Hopkins, Auden, Yeats... Cicero torna-se atmosférico, intenso e profundo, com a sua matéria-prima: a cultura.

(...) O jovem nem desconfia
ser divino o próprio Tesão ou mesmo,
tremo só de lembrar, a Poesia

A transfiguração geográfica é outra nascente de forte lira em Antonio Cicero. Sua poesia é civilizatória, aberta ao continente das expressões labirínticas, na fronteira da vida e da morte. As reflexões se multiplicam em caminhos que refundam Esparta, Chipre, Tebas, Líbia, Babilônia, Acra, China, Bagdad, Londres, Alexandria, o Rio de Janeiro, a Amazônia e o Piauí.

A meu ver, a memória em Antonio Cicero é o percurso de Citera que constitui os seus voos mais altos e comoventes, o resgate da infância e do passado, que ergue poemas brilhantes como Na Praia, Nênia e Cidade.

A infância não foi uma manhã de sol:
demorou vários séculos; e era pífia,
em geral, a companhia. (...)

Antonio Cicero é um dos grandes poetas do Brasil, com intelectualidade, humanismo, sensibilidade e alteridade à flor da pele, sendo espelho indispensável à perplexidade existencial do seu tempo. 





 *Diego Mendes Sousa é poeta piauiense e organizador da primeira e histórica antologia poética da carreira do Imortal da Academia Brasileira de Letras, Antonio Cicero.

Disponível à venda no saite da Editora Penalux: https://www.editorapenalux.com.br/loja/estranha-alquimia 






Antonio Cicero / Crédito: Chico Cerchiaro





POEMAS DE ANTONIO CICERO
ESCOLHIDOS POR DIEGO MENDES SOUSA


QUASE

Por uma estranha alquimia
(Você e outros elementos)
Quase fui feliz um dia.
Não tinha nem fundamento.

Havia só a magia
Dos seus aparecimentos
E a música que eu ouvia
E um perfume no vento.

Quase fui feliz um dia.
Lembrar é quase promessa
É quase quase alegria.

Quase fui feliz à beça
Mas você só me dizia:
“Meu amor, vem cá, sai dessa”.


BALANÇO

A infância não foi uma manhã de sol:
demorou vários séculos; e era pífia,
em geral, a companhia. Foi melhor,
em parte, a adolescência, pela delícia
do pressentimento da felicidade
na malícia, na molícia, na poesia,
no orgasmo; e pelos livros e amizades.
Um dia, apaixonado, encarei a minha
morte: e eis que ela não sustentou o olhar
e se esvaiu. Desde então é a morte alheia
que me abate. Tarde aprendi a gozar
a juventude, e já me ronda a suspeita
de que jamais serei plenamente adulto:
antes de sê-lo, serei velho. Que ao menos
os deuses façam felizes e maduros
Marcelo e um ou dois dos meus futuros versos.


HISTÓRIA

A história, que vem a ser?
mera lembrança esgarçada
algo entre ser e não-ser:
noite névoa nuvem nada.
Entre as palavras que a gravam
e os desacertos dos homens
tudo o que há no mundo some:
Babilônia Tebas Acra.
Que o mais impecável verso
breve afunda feito o resto
(embora mais lentamente
que o bronze, porque mais leve)
sabe o poeta e não o ignora
ao querê-lo eterno agora.


O EMIGRANTE

Buscando o Ocidente com o olhar
Que desde sempre foi límpido e grávido,
Chegou à terra ao fim de todo mar.
Sem planos certos foi e até sem roupa,
Sem cada dia o pão e sem família,
Sem nem saber o que era o Ocidente,
Chegou chorando assim como quem nasce
E o mundo alumbra um segundo e assombra.


NA PRAIA

Na praia – parece que foi ontem –
Ficávamos dentro d’água eu,
Roberto, Ibinho, Roberto Fontes
e Vinícius, a água era um céu,
e voávamos nas ondas transparentes,
deslizantes, do azul
mais profundo do fundo ciã
do oceano Atlântico do sul.
Mas era outro século: Roberto
morreu, morreu Vinícius, Roberto
Fontes quase nunca vejo, e Ibinho
casou e mudou. Já não procuro
o azul. Os mares em que mergulho
são os homéricos, cor de vinho.


A ESTRANHA ALQUIMIA DE ANTONIO CICERO A ESTRANHA ALQUIMIA DE ANTONIO CICERO Reviewed by Natanael Lima Jr on 00:03 Rating: 5

2 comentários

  1. Parabéns pela resenha clara, elucidante e instigante, como devem ser as resenhas, como abertura de caminho e/ou meditação para os leitores.

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    1. Antonio Cicero é alicerce. A grandeza poética pertence a ele! Obrigado pelas palavras, caro Gerson Valle!

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