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O ELIXIR DO AMOR EM NÉLIDA PIÑON



Por Diego Mendes Sousa*






Capa: Reprodução




Na orelha da obra “Uma furtiva lágrima” (Record, 2019), o editorial antecipa que Nélida Piñon é uma civilização.

Dona de uma cultura verbal extasiante, Nélida Piñon armou o seu mais novo livro com as instantaneidades do seu pensamento progressivo e imaginoso, que agrega os rompantes de uma alma literária milenária, ao mesmo tempo civilizadora e de vanguarda, mas também aldeã, tradicional e rica em sondagens ancestrais e filosóficas.

Essa dualidade entre o sofisticado e a beleza primitiva, marca fortemente o discurso da romancista carioca Nélida Piñon (1937-), nascida em Vila Isabel. O título “Uma furtiva lágrima” é simbólico, remete de imediato a uma ária da ópera-bufa “O elixir do amor” de Donizetti, avassalada pelo tormento celestial e pela dor da finitude.

Gosto dessa ressurreição que Nélida promove através da sabedoria e da estética, salpicada do que o homem inventou para ser eterno. A vida é risível, no entanto, há nela a força dos sentimentos universais que a memória vai calhando com o passar dos anos.

Nélida sai recortando o tempo, exprimindo os amores, os afetos, as tragédias, os abismos, os refúgios, as utopias e os desacertos do coração. Existe em Nélida Piñon uma devoção ao abrigo misterioso e deslumbrante do destino.

São formidáveis as passagens: “A beleza prega o mistério e é uma bendição.”; “O amor é e será sempre teu melhor gesto na terra.”; “Falta-me vocação para ser triste. Tenho riso fácil. No entanto, sem aparentar, tenho feroz vocação para a solidão, que é o lugar metafísico onde melhor me encontro.”.

Nélida Piñon escreve testemunhando, mesclando realidade e fantasia. A sua escritura é de desassombro. Aliás, ousadia que me parece ser um fanal, uma paixão e um absinto na clarividência das suas narrativas.

“Uma furtiva lágrima” compõe-se de pequenos retratos. Trata-se de uma peça acabada para ser degustada vagarosamente, dia após dia, com retorno sazonal, para que o leitor reveja a face dos múltiplos significados que estão enlaçados ao previdente e ao angustiante da existência, porque o pulso estilístico e humanístico de Nélida, requer andar às voltas.

Nélida Piñon abre a sua obra com trechos fabulosos. Diz ela: “Não ando sozinha pelo mundo”; “Escrever é o que sei fazer. Narrar me insere na corrente sanguínea do humano (...)”; “Pai e mãe são os ancestrais que encarnam os primórdios da civilização.”; “Aprenda que o outro é o teu lar. É o teu corpo, o teu nome, o teu outro rosto. É o verso e o reverso de tuas entranhas. É o espelho de tua irrenunciável humanidade.”

Esses fulgores percorrem sem freios, o livro. Durante a minha leitura, fui sublinhando os seus pontos imagéticos elevados, o que atesta o valioso manancial de sua verve. Nélida encontra-se íntima das palavras. Ela mergulha densa e soberana nos serões da sua arte de elevar as voracidades sonhadoras.

“Não recorro ao dicionário. Limito-me a dizer para mim mesma, fazendo eco à minha voz: não desistir, clamar, esbravejar. Sempre prosseguir em defesa do uso pleno da língua. Ciente de que sem ela perco o mundo. Corto-me as veias. Sangro.”

Consciente do seu ofício de acertos com a linguagem, Nélida Piñon dissimula a chama da precariedade, com a líquida convicção da plenitude. Escritora inteira, mítica e intrigante.



*Diego Mendes Sousa é poeta piauiense e fascinado pela vastidão criativa de Nélida Piñon, escritora fundamental para a sua própria formação intelectual.



Ouça a ária de “O elixir do amor” na voz de Pavarotti:





Nélida Piñon é escritora e integrante da
Academia Brasileira de Letras I Foto: Reprodução



EXCERTOS DO PENSAMENTO
DE NÉLIDA PIÑON
ESCOLHIDOS
POR DIEGO MENDES SOUSA





AO PÉ DO LUME

Como todos, sou, inteira, um espetáculo. O pano de fundo do meu teatro que detalha minhas características. Neste palco, onde as ripas rangem, encontro-me contente entre acertos e fracassos. Meus preciosos bens. Os que deixarei de legado.

AMULETO

Vamos supor que a literatura, as pessoas, os saberes, a música, as artes são amuletos preciosos. Amuleto também, e amado, é o meu cachorrinho, conhecido como Gravetinho, pura alegria para mim. Rio com ele e fascina-me a sua percepção das coisas e dos seres.

ERAM TÃO FELIZES

Eis duas versões conciliadoras do humano. Simples diálogo escatológico captado no albor do medievo, que é uma longa estação nebulosa: - Eram tão felizes que mijavam ao mesmo tempo – disse alguém. Ao que o outro, prosseguindo com o diálogo conciso, expressou a miséria do real: - O que é uma hora cristã? - Uma hora em que se faz a barba e se começa a cagar. Seguida por orações. As matinas convencionais. - Ah, já sei. É quando se prega a casta luxúria e se pede ao Cristo uma boa morte.

A PAISAGEM

Que vida teria eu tido se apontasse uma única paisagem como favorita, quando o mundo é farto e múltiplo. Um riacho, simples fio de água, por exemplo, excede a um rio caudaloso, como o Mississippi ou o Amazonas. Recordo, porém, a visão de Micenas, cujas ruínas testemunham o desenrolar da tragédia de Agamemnon e Clitemnestra, que me prende ao submundo dos sentimentos, sem entender a minha humanidade. UMA DATA Dias alegres e dias de luto. Não sei arrolar estes tempos. Presto vassalagem à vida que é longa, e me ensina a esquecer e a recordar. E ainda a resistir.

CATEDRAIS

Há anos escrevi: era a época dos prodígios. Lembro-me de quando a Idade Média começou. A mãe levantou-se cedo para regar a horta e esquentar o leite recém-saído das vacas. Foi quando a mãe anunciou para uma família ainda sonolenta: - Venham ver as catedrais nascendo. Nos tempos atuais as catedrais já não nascem. Que lástima.

UM REFÚGIO

Minha casa é o coração dos que amo e amei. Meu escritório é uma caverna, onde brotam as palavras que servem de refúgio dos mortais. Aí incluindo-me.

O PODER DO CORPO

Constrange-me o poder do meu corpo capaz de superar o clamor da mente.

INCONFORMIDADE

Não sei se é carta de amor. Mas aqui seguem a minha ira e a minha inconformidade.

UMA NAÇÃO

Uma nação se constrói sobretudo com os olhos, o cansaço, o sonho, a ilusão e a morte dos que labutam diariamente, e desse modo se preparam para admirar Da Vinci, Cervantes e Machado de Assis.

A INTRIGA

A literatura torna visível a intriga humana. Ela é a casa permanente do nosso restaurado enigma. E que faço com o emaranhado dos meus pensamentos? Vale acaso seguir irrigando o coração nestes tempos conturbados?



O ELIXIR DO AMOR EM NÉLIDA PIÑON O ELIXIR DO AMOR EM NÉLIDA PIÑON Reviewed by Natanael Lima Jr on 00:21 Rating: 5

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