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O DEMIURGO CARLOS NEJAR FALA AOS PEIXES E AOS HUMANOS



Por Diego Mendes Sousa*










Todos nós temos o desejo de voltarmos um dia à casa da nossa infância, ou mesmo, à cobiça avassaladora de retornarmos a algum lugar solar e redivivo onde fomos contentamento.

O que trazemos no íntimo das nossas verdejantes buscas acaba sendo feliz epifania e entusiasmo.

O gaúcho Carlos Nejar declara que a praia da Urca, no Rio de Janeiro, é a morada da sua primeira saudade, com endereço e com identidade:

Voltei à rua João Luís Alves, Urca.
Voltei de novo à casa pelo extremo
de andar de barco às costas, já sem remo
e certo de chegar, livre de culpas.

(...)

Voltei, sim, a mim mesmo, junto ao mar,
que é pampa, quando a terra me apascenta,
ou é infância que não sabe, onde se assenta.

Em um livro de belíssimos sonetos intitulado “Esconderijo da nuvem” (Bestiário/Class, 2019), Carlos Nejar quer ser a memória e o esquecimento de uma Nuvem que transporta o tempo e a dor. A Nuvem personifica-se no Vate. E a Urca é a paisagem arcana desse delírio. Encobrir a alma, mascarar a vida, embuçar a si mesmo, como quem se perde revelado. A poesia de Carlos Nejar se inflama de múltiplos significados:

O mar incha de mar. Mas nada esboça
na forte e velha dor, a dor mais moça.

(...)

E de encantado o mar jamais se acorda,
Quando a saudade é mar dentro da onda.

(...)

O mar é belo, belo e desatado,
com nó das águas, que o azul alarga,
até na solitude, em que naufraga
ao fundo ou dentro de seu próprio afago.

Fico abismado com a fertilidade lírica de Carlos Nejar. Sua palavra é divinizada e deslumbrante. O arrebatamento da sua poesia atravessa a própria
claridade e o poeta se esfarela em luz. Nejar sabe transcrever a galope e reacender em beleza, a sua escritura lampejante e febril.

E sobre a popa a luz, com luz ao leme.

(...)

O absoluto, sim, o eterno eu sondo.

(...)

Nada, nada, nem sequer um jorro.
Como irá reter a luz na treva?
Nem para esquecer a morte serve.

A eternidade de Carlos Nejar reside nesse mistério transcendental que contagia o seu verbo numinoso. Tudo na poesia nejariana é feito para durar, porque a sua vivacidade criativa é imorredoura. Tudo é nascente e tudo é novidade. A originalidade de Nejar abre-se em voragem. O seu canto carrega o vento, devolvendo a aurora.

Irmãos, não tenham medo. Pois reforço
antes de suceder, antes e após.
Antes de me saber posto entre os mortos.
Que a dor não vai parir-me de tão só.

A morte e os desígnios do humano percorrem pelos sonetos de Carlos Nejar. A transmutação do seu olhar é comovente. Parece-me que o poeta está se despedindo do sol branco, da espuma, do regaço, do desvelamento, do destino... A dicção é de retiro, de solidão, de suspiro, de desamparo... Nejar diz ter saudade do futuro!

E, Destino, se luto, com que parte
há de ficar, humano, esta saudade?

Carlos Nejar atinge-me com os seus mergulhos imagéticos fora de série. É realmente um grande poeta, com lastro, vasto e incomum. Vulcão, maremoto, tsunami que devastam o lume da linguagem para reinventar o mundo.

“Esconderijo da Nuvem” é uma obra primorosa, com cuidadoso acabamento gráfico, editada pelo sul rio-grandense Roberto Schmitt-Prym; com posfácio de Fernanda Mellvee e fotografia de capa do saudoso João Ricardo Moderno, a quem o livro é dedicado.



 

*Diego Mendes Sousa é poeta piauiense e admirador da loucura criativa de Carlos Nejar.









Carlos Nejar I Foto: Reprodução




SONETOS DE CARLOS NEJAR
ESCOLHIDOS
POR DIEGO MENDES SOUSA


CASA

A casa tem escadas, como a infância
o círculo de águas, fogo. Nada
lograva se apagar, junto à distância.
Era menino e agora desaguava

no mesmo túnel, rente, rente à estância
à dura humanidade, dura alva,
por onde a alma também tinha escada.
E a casa com sonâmbula fragrância.

E vi, sim, quanto o círculo girava
no tempo e o tempo em voltas se movia
nalgum sonho remoto. E se chovia,

a casa navegava tal navio.
E toda a infância vinha no pavio
do vento que nas telhas se encantava.


DECLARO

Direis ao ler estes sonetos claros,
obscuros, plenos deste mar sereno,
que, eu Carlos, já sou Nuvem, roda, jarro,
Nejar tão límpido: nenhum veneno.

Não reparto convosco o desamparo,
o infortúnio, este travo, o que é de menos.
Há coisas que de luz em mim declaro,
ou em águas, que furtadas, não tem remos.

Mas o que escrevo, aos poucos, me convive.
O que, pela memória se enternece
tem o prenúncio de captar o vento.

Mas, Nuvem, Nuvem, homem, o que esquece
é o que, pela minúcia, me acrescento.
Carlos Nuvem: infância que retive.


ESCREVO SOBRE A ÁGUA

O que fundei de amor, fundei de vento:
fundei de sol nas coisas consentidas.
Fundei de escuro em mágoa repetida
no pátio da manhã, onde me assento.

O que fundei na mansidão, reinvento,
Mas nada se acrescenta pela vida,
se a vida não se vê no que acrescento.
Ou se a chegada é a mesma que a partida.

O cordeiro com lobo sobre o pasto,
entendidos de paz. Que fogo é neve.
Não pode ser fundado o que não deve,

se cada solidão na pedra abarco.
Porém, se há descuido no que fundo,
escrevo sobre a água o chão do mundo.


HUMANO, HUMANO

Eu me sustento deste amor sem nada
em troca, salvo a testa e ardor do vento.
Ou ardor no fogo com a severa água.
E o que parece inerte, desce no eito.

O que parece morto, surge na alva.
O verde no penedo sobe lento.
Urca, o amor não carece de palavra,
mas a palavra arde quando invento.

Arde, arde na pedra o largo oceano.
E como hei de viver diante do medo,
ou conter nos desejos o sol posto?

Amar é desfazer-se, sopro a sopro.
E quando mais contemplo, menos cedo,
por difícil tornar-se mais humano.


SUBIR

O sol se mede, Urca, pelo céu,
que nunca adormece, sob o nicho
de ar com tanto azul, que é esconderijo
desta Nuvem que sou, refém e réu

do assombro de existir, junto ao chapéu
das estações, dos séculos, tão rijo,
por ser humano, quando o paraíso
é uma forma de ver, preso ao anel

das espécies, mesmo pressentir
o respirar dos pássaros e a grei
dos velhos sonhos, sim, ao pé das árvores.

Ou gravar sobre o tronco ou sobre o mármore,
que resistimos na graça ou na lei.
E é preciso morrer para subir.


FALEI AOS PEIXES

Falei aos peixes, Urca: o desencanto
é coisa tão ferrenha dos humanos.
Pois eles, peixes, vivem sem reclamo,
contentes de existir, nadam no manto

ardiloso dos seixos, nadam tanto
e com tal estima, que assim ufanos
não lastimam a sorte, nem os (t)ramos
da solitude, o esquecimento e o pranto.

Falei e vi que alguns peixes escutavam,
Ascendendo à tona, de viços e olhos,
como investigando a alma que lhes fala.

E, Urca, percebi quanto deslizava
no espinhar das ondas, o rosal de escolhos.
Que a palavra no mar jamais se cala. 


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