SER CANIDAE
Por Diego Mendes Sousa*
Novo
livro do poeta Nejar I Capa:
Divulgação
“A rosa da palavra de um
cão não carecia de terra:
apenas da semente de ser
cão”
Carlos Nejar
Candeia de uma fábula – Lelé e eu (LE
CHIEN, 2019), de Carlos Nejar, ancora-me a uma luz alegórica sobre o afeto
entre uma cadelinha e um poeta extraordinário, cuja imortalidade foi abraçada
há exatos trinta anos, pela Academia Brasileira de Letras (ABL). E faço uma
ressalva - não é afeto, encadeamento de emoções apenas, e sim, Amor, em sua
grandeza mais universal de encantamento, que alimenta a relação entre Lelé e
Nejar.
Na Literatura em Língua
Portuguesa, Miguel Torga, ainda no início dos anos quarenta, imprimiu o seu
apreço pelos canídeos na obra Bichos,
e me contava de Nero, o cão que
pressentia que iria morrer e desejava saber-se amado.
No Brasil, a cachorrinha
Baleia, do mestre Graciliano Ramos em
Vidas Secas, que peregrina com a miséria dos seus donos. E lembro também do
Amor de Nélida Piñon por Gravetinho e
Suzy, que passaram a ser personagens
centrais no ideal criativo da imensa romancista carioca, além de uma nova
pérola artística, que atende pelo nome de Pilara
Piñon, que antevejo como representação no repertório inventivo de Nélida. E
vale ressaltar que o livro Candeia de uma
fábula – Lelé e eu é dedicado à amável Nélida,
que “descobriu que, sem o amor dos cães,
ignoramos uma boa parte de amor.”.
Sobre esse amor à
‘canilidade’, também posso dar o meu próprio testemunho, pois conheci o amor da
minha cadela Kiss e bem sei da
lealdade desses bichinhos. Kiss está gravada em meu livro Metafísica do Encanto (2008), como matéria de poesia.
Carlos Nejar e a sua
Lelé, “cinzenta, da raça poodle, dentes
para fora em teclado, olhos grandes e remotos”, como descreve o bardo. Essa
foi uma estória escrita durante o luto anunciado (Lelé padecia de câncer), que
revestiu o poeta de muita tristeza, exposta com a força da saudade avassaladora
que contaminou a sua imaginação.
Poeta
Carlos Nejar
É um poema longo, com
distribuição espacial, que enriquece o olhar à medida em que se prossegue a
leitura, com muita música e com estilhaços de sabedoria:
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Não sei quantos lados
tem o amor,
mas basta um lado
para reconhecê-lo.
Nejar opera com a
dimensão do lírico, faz a inscrição elegíaca para manifestar a perda e
reestabelecer o vínculo de quatorze anos de convivência com Lelé. O poeta rasga
o coração em lembranças, carregado de confissão ou mesmo como quer Geraldo
Carneiro, quando evidencia que Candeia de
uma Fábula – Lelé e eu é “uma cordilheira de metáforas”.
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Lelé tinha um pátio
imenso
no “ Paiol da Aurora”
para correr
e corria com velocidade de vento,
em ziguezague e era feliz –
eu via.
Saber ver, essa é a
permanência que deve habitar a poesia; e Carlos Nejar tem cosmovisão única,
enlaçada em um elã metafísico e fotográfico; e em “frêmito de emoção ponta a ponta”, como analisa o abalizado crítico
Antonio Carlos Secchin sobre a presente obra.
Mas se assustava com as
borboletas
Aos passarinhos não:
enfrentava e perseguia e
queria voar.
Falei a ela: - Lelé, passarinho é
sagrado!
Mas o que entendia do sagrado?
Também porque a
inocência
é o começo do sagrado.
O mais impressionante
nos versos de Nejar é que a beleza jamais se acaba - desanda a jorrar sempre no
tempo - e ela cresce ao ritmo da magia que o vate emprega sem peias e
transcende também pela eternidade, na busca perene de uma luz que seja sagração
na gravidade da sua lúcida e vasta alma:
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Um dia,
triste, chorei.
Que tristeza gosta de atrasar-se
nos olhos e
no corpo.
Lelé viu tudo
e veio vindo e me lambeu
o rosto.
Como se me lambesse a alma à vista.
E me consolou.
Tinha amor de muito
olhar.
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O poder de criação de
Carlos Nejar reside na fronteira. Nas margens, ele consegue sem medo,
atravessar a palavra. A estética madura reluzente da dicção nejariana é pinçada
de velocidade. Ele sabe ultrapassar o entendimento e armar a poesia com imensa
claridade. Raríssima é a riqueza das imagens, um lume aberto ao paraíso secreto
das coisas terrenas, como mar e espinhos, as perdas de uma vida.
Como Lelé, certa vez,
quis
pular o muro, talvez
com vontade de ver o mar
grandão,
bramindo lá fora:
ficou presa na
cerca
espinhenta. Gemia.
Tive de cuidar de suas
feridas. Nunca mais
tentou.
Lelé entendeu,
cabisbaixa,
que o perigo era transpor o
muro do mundo.
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Ouvi Nejar dizer que “a
poesia ajuda a viver, mas quem cura e salva é a palavra.”. Se a palavra é
deslumbramento, se pela palavra um poeta renasce (mata ou morre), é em Carlos
Nejar que a palavra é morada, porque é a própria palavra reencarnada. Poeta vero,
absoluto, dono de um manancial de palavras e mais do que isso, proprietário
indômito da universalidade das palavras. Pela palavra, preservo admirado (com
todas as artimanhas da linguagem) a grande poesia que sobrevive em Nejar.
O que se encanta,
é porque por dentro
acordou.
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Enquanto choro,
não posso
segurar
o meu amor.
Candeia de uma Fábula – Lelé e eu
emociona. Poema de alma profunda, calhado na sensibilidade, réquiem de uma dor,
liturgia de um Amor “sem pedra na cabeça,
ou peso de voar.”.
*Diego Mendes Sousa é
poeta e fiel leitor das iluminações de Carlos Nejar, poeta maior, como
prescreveu João Cabral de Melo Neto em livro dedicado, de próprio punho, a
Nejar, o servo da palavra.
Candeia de uma Fábula –
Lelé eu (LE CHIEN, 2019) está disponível à venda pelo e-mail: editoralechien@gmail.com
SER CANIDAE
Reviewed by Natanael Lima Jr
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00:20
Rating:
Excelente o artigo do poeta Diego Mendes. Mil vivas ao nosso eterno Carlos Nejar!
ResponderExcluirMeu primeiro contato com sua palavra, Diego. Flutuei. Parabéns!
ResponderExcluirMaria Martins, obrigado pela valiosa leitura e também pelo comentário!
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