OS INVISÍVEIS [tragédias brasileiras] de Carlos Nejar
Por Diego Mendes Sousa*
O visível Carlos Nejar enxerga o tempo
como uma ânfora testamental. Artista do poema, poeta incansável e autor de uma
poesia seminal e clarividente, eis que o grande brado, originário do Pampa,
regente do vento Minuano e ser do Rio Guaíba, retorna a me surpreender, e mais
do que isso, a me abismar, com uma obra monumental e imprescindível intitulada
OS INVISÍVEIS [tragédias brasileiras] (Bertrand Brasil, 2019), bela, profunda e
magnífica como a alma do Brasil.
Na epígrafe do livro desponta
Longinus: “O invisível é a teia do que é
muito visível. (...) A semente é uma águia. Enterrada, é que voa.”.
OS INVISÍVEIS [tragédias brasileiras]
é memória. Registro das dores nacionais. Nejar não se cala diante da dor que
vem do drama coletivo. Um poeta da sua estatura - mago e sábio - que abre o seu
verbo místico à voz social, merece total audição.
O que Nejar faz com as palavras é algo
extraordinário, as constrói com a consciência de um humanista que toca o
anímico das coisas. Transformar a realidade em espécime literária é raridade e
é silêncio na atual conjuntura da moderníssima Poesia Brasileira.
Carlos Nejar escreve sem jamais se
repetir e é muito fecundo e muito lúcido, sempre atento à razão, sempre zeloso
ao sentimento, sem vazar em digressões, porque tem dom, tem vidência, tem
fulgor criativo e sabe olhar com a preciosidade do que é inaugural.
A luminância de OS INVISÍVEIS
[tragédias brasileiras] passa a cintilar ruidosamente, as desgraças que
devastaram e arruínam o país: a tragédia de Mariana, a morte do Rio Doce, o
incêndio do Museu Nacional, a agonia de Brumadinho, a destruição da Amazônia e
o extermínio dos povos indígenas.
A largueza intelectual de Carlos Nejar
avulta não somente a força da poesia, mas também a memorialística da Nação,
triste República de mazelas. Rememora, reabita, revisita e reabilita para não
esquecer.
Nejar cria teorias existenciais, a
aguçar os signos da água, do fogo, da lama, da lâmina e da ganância. Nejar está
no auge da maturidade enquanto poeta, com imagens e sons em perfeição: “O
espírito é estrangeiro”; “O poder é movediço”; “Amor é fidalgo”; “Não dou
coração aos pássaros”; “Carnívoro é o futuro”; “O incêndio come”; “Lama mãe,
sob o regime de escavar o céu nas minas: matas a luz sozinha”, “O barro perdeu
sotaque”; “E não há velhice na
lágrima”; “Chorar de eternidade”; “A
nudez é do instinto”; “A pedra que chora a avoenga maternidade das estações”;
“É preciso conter a goteira do tempo”.
Tudo o que Carlos Nejar põe sob as
asas das cintilações vira imenso prazer estético, pois provoca o instinto (a
mudez interior) e alimenta a vida, tão precária de sonhos e de esperanças.
Escrevo impactado pelo mistério que
Carlos Nejar desvenda em sua poesia de calibre e de atualidade. São quase
quatrocentas páginas de ricas metáforas e metonímias, além da ascese e do
avassalador significado histórico. Um marco linguístico poderoso e humanitário.
O livro está dividido em quatro
movimentos: Memorial ao Rio Doce [água]; Martírio do Museu Nacional [fogo];
Brumadinho: Tocata de Barro em Dor Maior; e A Amazônia dos Awás [lâmina e
ganância].
OS INVISÍVEIS [tragédias brasileiras],
apesar de ser um épico, é uma elegia colorida, com toques de claridade. O título
do livro foi escolhido pelo filho do autor, Fabrício Carpinejar, que esclarece
acertadamente nas orelhas da obra: “OS
INVISÍVEIS fala em nome dos que desapareceram pelo simples fato de serem
brasileiros. Fala de nossa omissão histórica no presente. Fala sem fim do fim
iminente da honra e da dignidade.”.
Nejar vem de antes, uma das aves raras
desse mundo e do outro, que desconheço, mas que ele vê. Poeta e profeta, irmão
do tempo e da visão.
Li e reli OS INVISÍVEIS [tragédias
brasileiras], pois a sua criação me comove e me alerta.
Vaticina Carlos Nejar: “A poesia
existe, porque nos completa.”. E a poesia sempre é melhor do que nós, ou mesmo
maior, já que ela é círculo de girassol e de aventura.
*Diego Mendes Sousa é poeta e amigo
pessoal de Carlos Nejar, o servo da palavra.
TRECHOS TESTEMUNHAIS ESCOLHIDOS DA
OBRA-PRIMA “OS
INVISÍVEIS [tragédias brasileiras]”
de Carlos
Nejar
“Eu fui chamado Rio Doce
E
conto: virei defunto.
“Minha
pisada é no susto.
Erro
sem vara e sem grão.
“O
que transporto é de foice
Cortando
o afiado não,
“Sem
ter roçado na sorte.
Quando
emigra a viração.
“Então,
emigrei de mim,
Emigrei
na vitalícia
“Comunidade
das várzeas,
Bairros,
pontes, vilarejos.
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Ó
Mariana, Mariana,
Quantos
fios possui a História?
Que
profundeza te banha?
Onde
Alphonsus? Onde Ismália?
Onde
as casas de tua glória?
A
lama subiu nas calhas.
E
os gerânios, quem te escora?
Onde
o dilúvio sem arca,
E
espesso barro, a memória?
Quando
o Ararat do vento
Num
penedo nos atava.
Ó
Mariana, o que cala
No
terror, de horda em horda?
A
lama subindo as calhas.
Se
a morte nos põe sua corda,
Tiradentes
quem escuta?
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Não
dou coração aos pássaros,
E,
se tem cadência o amor,
Não
é a que faz o monge
Sob
o casulo e hábitos.
É
a que farfalha, plange,
E
dentro do fruto, é flor.
Não
dou coração aos pássaros.
Amor
precisa estrutura,
Não
de constelados lábaros,
Carece
de mais altura.
Se,
de amor, me nutro, rio,
Eu
cuido de amor que serve,
E
tolera e se há neve,
Amor
não morre de frio.
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Alma
de amor é de água:
Alma,
fundo da palavra.
Porque
a palavra guarda
O
que o silêncio não.
O
que é de tempo se fixa.
Paciente
na superfície,
E
com solidão no cume.
O
vento não tem velhice,
E
nem do espírito o nume.
Palavra
sobre palavra,
E,
se o mundo é excessivo,
Que
pode o mundo contigo?
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Queimamos
o Museu,
dormitório
de fantasmas.
Queimamos,
queimamos
a
eternidade.
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Cego
cego
cego
o espectro
do
medo.
A
amizade tem
crença.
O fogo
não.
O
fermento do homem
o
incêndio come.
A
força da fome
o
incêndio come.
A
erva do sossego
o
incêndio come.
O
cordeiro do nome
o
incêndio come.
A
lápide da infância
o
incêndio come.
O
aviário dos símbolos
o
incêndio come.
As
idades e vínculos
o
incêndio come.
Os
degraus dos mortos
o
incêndio come.
As
genealogias, cerimônias
da
corte o incêndio come.
As
ideologias, partidos
e
seitas o incêndio come.
Governo,
juizados
e
receitas o incêndio come.
A
política das tribos
o
incêndio come.
Todos
os versos no ventre
o
incêndio come.
Florestas
e raízes
o
incêndio come.
Fronteiras
e países
o
incêndio come.
(...)
Sempre,
sempre, sempre
o
incêndio come.
Com
suspeitoso estilo,
o
incêndio come.
Como
o tempo como
os
próprios filhos.
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O
fogo é patriarca de tulipas
e
a madureza já não tem sabor,
que
os frutos se desfazem
na
tristeza e é espaçoso
o
fogo em seu sestear.
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Mas
o silêncio dos profetas,
é
o de Deus.
A
justiça é veloz
como
um cavalo,
ao
punir. Não
interrompe
o intervalo,
na
defesa, a pé, lenta
nos
alcança.
Ou
chega tardia,
seca.
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O
domicílio
do
incêndio
é
a noite.
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O
que serviu, não serve.
O
que sonhou, não sonha.
Que
o impossível exponha
o
amor que nada deve.
A
terra devora os mortos.
O
fogo devora a terra.
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Lama
mãe, guardas
teus
filhos
para
a merenda,
ou
gatilho dos ossos.
Lama
mãe. Nenhum
remorso
tens
de
sufocar
seu
grito.
Lama
mãe, o que
pariste,
se não
te
ampara
o
limite?
Mãe
infecunda,
nem
a Mariana
lembras,
igual
a
ti nas raízes.
Lama
mãe, sob
o
regime
de
escavar
o
céu nas minas:
matas
a luz
sozinha.
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E
o chefe dos Awás
proclama:
-
Os brancos estão
matando
as árvores.
Vamos
enfrentá-los!
A
coragem é inocente.
A
morte não.
Engole
imagens
e
homens
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Amazônia,
Amazônia,
Quantas
entranhas
guardas,
para
serem resgatadas?
Quem
cantará
com
as aves?
E
onde cantam,
se
os ramos
tombam
sem
folhas?
Mas
árvores caem
no
sague, sobe
o
arcaico ganir
das
veias,
fonte
de
grossa
encosta.
E
o sangue
pedra
de
relâmpago,
rasga,
irrompe.
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Amazônia,
Amazônia
quantos
estados
de
morte
com
o despedaçar
das
árvores,
com
tua amásia energia
de
se volver
para
o eterno?
Os
Awás
puxam
viagens,
junto
à porta
dos
igarapés
descalços.
E
os charcos
cegos
de
infância.
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Amazônia,
Amazônia
por
que roubam
tuas
árvores,
criando
tamanhas
fendas
no
teu coração
de
aragem?
Amazônia
cerzida,
devastada,
descaso
de loucura
revezada.
OS INVISÍVEIS [tragédias brasileiras] de Carlos Nejar
Reviewed by Natanael Lima Jr
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