GALOS E GALINHAS: DIÁLOGOS, DESCOBERTAS E POSSIBILIDADES NOS CONTOS DE RONALDO BRITO



Por Neilton Limeira Florentino de Lima*





Ronaldo Correia de Brito I Foto: Reprodução





O conto tem algo da natureza indefinida e infinitamente variável de uma nuvem. H. E. Bates

Cada palavra é animal no pasto. Ou melhor, cada pasto é um rebanho de palavras que apenas procuram, ansiosamente, o pastor que as põe no redil da noite. Carlos Nejar


A escolha de um texto quer para leitura, quer para a análise e crítica, dá-se pelo prazer. Este tem que ser o princípio de uma escolha, claro, quando se é permitida tal liberdade. Foi prazer o fato primordial que levou este texto a ser feito, após a leitura dos contos, publicados na obra As noites e os dias (1996), do escritor e médico cearense do sertão dos Inhamuns, radicado em Pernambuco, Ronaldo Correia de Brito. Ele que, em 2013, representou o Brasil na Feira Internacional do Livro de Frankfurt, na Alemanha. Percebe-se nos seus primeiros contos, por exemplo, em: “O dia em que Otacílio Mendes viu o sol”, “Rabo de burro”, “Inácia Leandro”, “Eufrásia Meneses”, “Lobisomem”, entre outros que aqui serão apreciados, a temática do Bestiário como marca no seu fazer literário. É a partir deste eixo temático que a Coluna presente discorrerá, em dois momentos, sobre as narrativas de Brito, autor homenageado, após o primeiro texto aqui publicado, que anunciava o poeta Carlos Pena Filho.

Teatrólogo, Brito, para quem há três temas fundadores do teatro: “(...) vida, morte, celebração” (SUPLEMENTO CULTURAL, 2000), de alguns anos para cá vem despontando como um grande contista, trazendo brilho à literatura contemporânea. Em 1996 publicou, pela Bagaço, a coletânea As noites e os dias, base dos textos aqui comentados, e que no dizer de Mário Hélio, na orelha do citado livro: (...) é uma síntese do que foi escrevendo Brito em vários anos. Depuração. Cristalização. Feitas quase em segredo, como coisa feita, como aquela magia que exige preparo, concentração e disciplina de algum dom. (BRITO, 1996). Em 2008 publicou o romance Galileia, Prêmio São Paulo de Literatura (2009) e Melhor Livro do Ano; o livro de contos Retratos imorais (2010), eleito dentre os Dez Melhores Livros do Ano, segundo o Jornal O Globo; para citar algumas obras singulares. Muitas de suas obras já foram adaptadas para o cinema e para a televisão. Além de prosador, é Dramaturgo, conforme dito no início, autor das peças Baile do Menino Deus, Bandeira de São João e Arlequim, todas musicadas por Antonio Madureira, encenadas, gravadas em disco e editadas, quer no formato teatral quer em prosa. Sua vastíssima produção literária já foi traduzida para o francês, espanhol, hebraico, inglês e para o alemão.

Em sua narrativa, aqui apresentada aos leitores, um traço personalizado, forte, de caráter lírico e psicológico, em que os elementos regionais se universalizam. Plenos de amores, mortes, traições, emboscadas, bandidos, temas inseridos na geografia do Sertão, porém, com o olhar de um autor que busca o que há de Humano e Universal dentro daquele cosmo. É perceptível nos seus primeiros contos, por exemplo, em: “O dia em que Otacílio Mendes viu o sol”, “Rabo de burro”, “Inácia Leandro”, “Eufrásia Meneses”, “Lobisomem”, entre outros que aqui serão apreciados, a temática do Bestiário como marca no seu fazer literário. Ronaldo Brito abre seu livro As noites e os dias com o conto, já referido e que será destaque inicialmente: “O dia em que Otacílio Mendes viu o sol”, em que há passagens não lineares que remetem às lembranças das personagens, o flashback, ambientado em um espaço não muito variável, delimitado: a casa e seus cômodos, o terreiro, e de lugares citados pelos atuantes, pois a intenção do narrador é prender o leitor às ações das mesmas. Nesse, os leitores acompanham ‘angustiados’ e ansiosos uma possível atitude do personagem-título. Otacílio Mendes está trancado no quarto prestes a se matar, enquanto sua mulher Dolores e os doze filhos homens, ainda meninos, na sala aguardam sua decisão. O único ser que parece não sentir a atmosfera pesada da casa é uma galinha, que simplesmente pede para entrar no quarto. É a partir desta situação insólita que o autor constrói a narrativa, plena de elementos descritivos: físicos, psicológicos, jogando com o tempo e ação, fazendo dessa família sertaneja, de ‘posses’, e desse retrato um instantâneo da relação humana. O ‘duelo’ entre Otacílio — extenuado daquela vida: da mulher sempre se queixando, dos filhos inertes, das reclamações quanto ao “fedor” de sua roupa, a saudade da mãe que morreu após gerá-lo, a decepção da ida aos seringais na Amazônia, de onde retornou com malária— e Dolores — para quem a rotina da vida tinha chegado ao limite: o marido que não tomava uma atitude para mudar as coisas, nem sequer seu odor na hora da cama, que ela aguentava esses anos todos, sua submissão de mulher. Neles as angústias existenciais e diferenças de marido e mulher, tendo os filhos homens por testemunhas e reflexos das personalidades dos pais, além do papel ímpar da galinha, que quebra a atmosfera, dá a ideia da vida que levam aquelas personagens. A presença da ave é o fio condutor da narrativa, ela quer simplesmente seguir seu curso de vida, a associação com Dolores, cujo nome remete à palavra dores, é explícita: “A galinha voltara a cantar, queria sair do quarto, seu útero se esvaziara de um ovo, sua função de galinha estava justificada, a de Dolores também, como mãe e mulher, alimentando os filhos que comiam calados” (BRITO, 1996, p. 12-13). Desde o cacarejo que anuncia sua chegada, até o momento que deseja sair, pois se esvaziara do ovo, a galinha demarca seu terreno no texto. Na sua morte, no lugar de Otacílio, a metáfora da morte de Dolores Mendes, tem-se a redenção do homem que vivia, segundo seus pensamentos — informados pelo narrador de forma indireta livre — oprimido, um morto-vivo entregue à sujeira e tão submisso quanto seus filhos. A mulher que se dá, sofre, se humilha e no final ‘morre’ pelo marido, nas palavras de Otacílio: “Prepara esta galinha para o almoço. Pena que desperdicei o sangue” (BRITO, 1996, p. 15) é o simbólico renascimento para a vida como um novo homem; a morte da galinha o retorno à rotina de Dolores ao papel de esposa e dona do lar. É importante frisar que boa parte dos contos de Brito traz personagens femininas fortes, sofredoras, que buscam seus lugares em um mundo machista — enfatizado no espaço do sertão: Dolorida, Inácia Leandro, Eufrásia Meneses, Cícera Candóia e Maria Caboré, para citar algumas, representam e explicitam a crítica e ironia do autor. Para Eleuda de Carvalho, em artigo intitulado “Escritos de vida e morte”, publicado no Jornal “O povo” em 2005, o autor trabalha com três temas: o desejo erótico, a insatisfação e a crueldade, isto é: “(...) os três ingredientes encorpam a maioria das mulheres criadas por Ronaldo, sempre entre a submissão e a revolta”2 . E no final da narrativa a presença da luz que a intitula, quando Otacílio dirige-se ao terreiro — como um galo anunciador da manhã — e vê o sol, como se fosse pela primeira vez, representando metaforicamente seu renascimento. Logo no início do conto citado anteriormente, o simples gesto do filho pequeno de Otacílio, à espera do ato do pai, ao esmagar uma lagarta no dedo quando “despalhava” um milho e via uma poça de sangue na porta por baixo da porta do quarto, dá uma ideia de como Brito traz para a sua narrativa a presença dos animais como marca fundamental no texto. De Dolores a seguinte fala anunciadora do clima sombrio que reinava no lar: “Qualquer morte a este suspense de teias de aranha em que vivo nesta casa” (BRITO, 1996, p. 09), na sua linguagem peculiar de sertaneja, a sabedoria e poesia recriadas pelo autor. Nas ações e pensamentos de Otacílio a simbiose de um homem-bicho metamorfoseado naquela geografia seca e rude do sertão que o fez instintivo: seu urro de “animal acuado”, o cheiro “encardido e rançoso” do madapolão, e o ato natural de defecar e urinar no penico, como uma expurgação das tormentas da vida. O tempo é regido também pelas presenças dos animais, ora no silêncio cortado pelo zunir de uma mosca, ora na ausência de ordenha das vacas, definindo também uma paisagem própria daquele espaço em que, no caso em cena, a morte foi adiada pela ‘simples’ insistência de uma galinha, que teve seu fim adiantado em nome do renascer do galo.

Os elementos que foram notados neste conto, de certa forma fazem parte também dos demais apreciados, cada um com sua peculiaridade. Em “Rabo-de-burro” no desejo da personagem — não nomeada— que se sentia comida pelos homens e até pelo Padre — que hipocritamente a tudo condenava: “Olhos que mordiam, mastigavam, deixando equimoses doídas, em todo o corpo. Babavam, a respiração ofegante. Sentiu como um rosnado. Não tinha dúvida, estava sendo seguida, agora bem de perto. Já ouvia os passos. Eram fortes. De homem.” (BRITO, 1996, p. 21). Pleno de erotismo e animalidade. Ela, a moça interiorana recém-chegada da capital, fumando, dizendo os nomes dos filmes em inglês, andando sozinha na cidadezinha, e que não acreditava nos perigos daquelas ruas, apesar dos conselhos da irmã. Na sua ‘descrença’, quando percebeu era tarde, àquele que a perseguia já estava por demais próximo: “Correndo lá fora. Soltos. Os cães e os lobisomens. E só eu aqui, nesta quase madrugada da minha vida. Sem poder correr, a saia justa demais. Entre uma baforada e os pingos da chuva que aumenta. Já sentindo um hálito quente no pescoço. As luzes se apagaram de vez.” (BRITO, 1996, p. 25). O jogo estilístico de Brito explicita, via lenda e crença folclórica, os instintos humanos em busca do prazer. Em outro viés, o desejo transforma-se em amor misto de pena. É o caso de “Dolorida”, outra heroína criada pelo autor, que vela o corpo do marido morto faz três dias, já apodrecido, afastando os urubus que o querem devorar. Ao leitor ficam as correntes temáticas da morte e da vida em suas diversas faces: a que separa os que um dia se juntaram, sofrendo, penando na miséria, agora separados pela Ceifeira. E enquanto o Diabo não chega para levar mais esta alma, Dolorida — que remete a Dolores, do primeiro conto — canta uma incelença ao seu finado amado. A morte também é o mote da história de “Inácia Leandro” e sua vida: o ódio pelo irmão Pedro Leandro, a casa herdada após o falecimento do pai, motivo de brigas e diferenças. Talvez ‘amaldiçoado’, o casarão fora, no passado, local de vingança: o seu bisavô, o Coronel Leandro da Barra, assassinado pelos Feitosa, tudo por conta de um cachorro, morto com um tiro na testa, depois de avançar no cavalo do Coronel. No sertão dos sem-fins qualquer pretexto do Tinhoso é sopro para os desejos de raiva aflorarem e os homens virarem bichos. É por demais variada a quantidade de animais na narrativa do cearense: os bezerros que berram fazendo Inácia lembrar aos irmãos para não ordenharem as vacas naquela tarde; o velho papagaio da casa, que fugira e agora rezava ladainhas em homenagem aos mortos; o boi Ventania, desafiador e matador dos homens dos Inhamuns. Menos o grande amor de Inácia, o valente Lourenço Estevão, pegador do boi, mas que tinha sido emboscado e vingado com cinco balas pelo irmão da personagem, segundo as reminiscências dela e as histórias que o povo contava. Lourenço, uma sombra, lembrança do passado, parecido com o vulto que agora — no tempo presente da história — vinha à noite pedir rancho em sua casa.

No texto “Os bichos na fala da gente”, o poeta Mauro Mota, pelas veredas da prosa, relata sobre um breve painel da presença dos bichos na literatura brasileira. Como afirma, remetendo às histórias iniciais e como eles, os bichos, foram depois apresentados: “o ‘quando os bichos falavam’ sai das estórias da carochinha. Eles falavam para servir de intérpretes às relações humanas. (...) As vozes dos animais deixam, assim, de interessar nos tons específicos, de berros, uivos, zumbidos, guinchos, miados, pios, cacarejos. Interessa a sematologia desse “vocabulário” de selvas e quintais. Os próprios bichos fundem-se nele e chegam, com os hábitos e idiossincrasias, à nossa dicção popular” (MOTA, 1982, p. 73). E deste modo popular, a geografia do sertão como universo ímpar para a realização literária, aqui desenvolvida por Brito. De Mota as alusões e exemplos na poesia de Gregório de Matos, somadas à Fauna Brasileira de Portinari, ampliando para as artes plásticas, ou as diversas gravuras com animais, de Gilvan Samico, colhidas e relidas dos folhetos de cordéis, fonte que Brito também bebe, representando a fauna nordestina — bastando remeter aos títulos dos folhetos: “Os bichos que falavam”, “O homem que virou bezerro”, entre outros. Ainda na poesia, entre tantos nomes, Mota lembra-se do paraibano Augusto dos Anjos e seus “bichos reais”, como refere, em versos permeados de: morcego, cão, carneiro, por exemplo, e Ascenso Ferreira, poeta dos tristes bodes patriarcais e dos cavalos “batizados”, em que o sertão se revela, via poesia modernista. Passando, e não poderia deixar de aludir, às prosas de Jose Lins do Rego e de Graciliano Ramos e a personalíssima cachorra Baleia. Finalizando com o marcante cantador sertanejo, “intérprete da aridez de sua paisagem, da história do seu povo” (MOTA, 1982, p. 78), como bem define Mota.

Ronaldo Brito, assim como o cantador, transfigura-se em contador dos causos deste sertão infinito e deserto, anunciado pelas presenças marcantes dos animais, como na vida de “Eufrásia Meneses” à espera da fatalidade da existência: “bater de portas que se fecham, o balido de ovelhas se aconchegando, o fungar das vacas prenhes, o estralar das brasas que se apagam no fogão” (BRITO, 1996, p. 59). Na “Solidão” da casa, somente ela e o filho ainda pequeno, pois o marido estava a tanger o gado, e já era quase noite... no retorno diário deste último, a certeza de que os animais, assim como os homens, estão magros, famintos, esquálidos, queimados pelo sol. E a sede dos maridos é saciada nas camas com as esposas: “Deitam sobre nós, fungam, rosnam, machucam-nos sem olhar o rosto. Depois caem para o lado, satisfeitos, enquanto contemplamos o telhado e tocamos, com as pontas dos dedos, a mancha do seu sêmen morno” (BRITO, 1996, p. 61). A voz de Eufrásia Meneses representa as vozes de todas as mulheres, fêmeas naquela geografia. Ela, que deixou, por vontade própria, o verde do Paraí e mergulhou no marrom e cinza com o desejo de ser professora naquelas terras distantes. Agora, casada, cansada, espera o retorno do que a escolheu, pois o que ela sonhava escolher: João  Menandro, talvez já estivesse, nessas horas, morto pela mão do marido traído. Tudo é vaguidão e silêncio... Em “Cícera Candóia”, o autor apresenta mais uma heroína sertaneja. E traz a dura realidade dos retirantes, estando a personagem na situação de ter que abandonar sua terra, levando junto a mãe, já bastante velha e à espera da morte. O tempo é contando pelo ato de sua mãe em matar os piolhos, as pessoas fugindo, as portas batendo, os cachorros ladrando. “Os caminhões seguiam carregados dessa gente magra feito o gado que morria à fome e sede nos pastos secos” (1996, p. 88-89), as cabras comendo o que resta do mato, cabras que um dia, no passado, foram motivo de tragédia: na briga pela partilha delas, o irmão de Cícera Candóia assassinara a golpe de foices o próprio pai. Desse dia em diante o sumiço do irmão e a loucura da mãe eram perpétuas presenças. Agora, na presente seca, vem Sebastião, seu amado, insistir para que ela fuja com ele. Porém, como partir, se a mãe não aguentaria a viagem, por conta do reumatismo, além de que nunca, em vida, a deixaria sozinha?! Nas reminiscências da mãe, ao referir-se à seca antiga, quando o marido ainda era vivo, a história de um pequeno incidente caseiro: o pai de Cícera e mais um bando de homens contratados para a roça tinham ido almoçar na casa. Comida para um batalhão! Mas, por conta de um papagaio travesso que perambulava próximo à comida, um pouco do veneno guardado na cozinha, para matar formigas, caiu na panela. Quase todos morrem, felizmente tinha sido um grande susto. E ninguém nunca soubera do fato da história do veneno, que, segundo sua mãe, ainda estava no mesmo lugar. O retorno para as decisões da vida: a seca, a cidade deserta, Sebastião a chamando para partirem junto, enfim, o copo de leite levado para a mãe, que já a esperava... o gosto estranho na bebida, ‘justificada’ pela mudança de pasto dado às cabras, o desejo final da morte, e da partida. Em “A espera da volante” o personagem nomeado como Velho dá guarida ao cangaceiro Chagas Valadão, que fugia da volante ensandecida de vingança, e, assim como a terra que se abria em sulcos apta à colheita de frutos e cereais, e as vacas e as cabras gordas de leite abrindo seus úberes para saciar a sede e alimentar, ele deixa as portas de casa livres para quem precisa de ajuda. A volante estava cada vez mais próxima, o tempo aflito se anunciava, e nos pastos “as vacas emprenhavam entre carreiras e mugidos. Cumpria-se o ciclo da estação” (1996, p. 106), os animais rasteiros corriam, as árvores davam pistas da presença dos homens, as vacas, pressentindo tudo, retinham os leites nas tetas inchadas, “como bichos escapados de uma broca queimada, as pessoas passavam correndo, sem se deter” (BRITO, 1996, p. 111). E o Velho a tudo isso observava, sabendo da chuva, dos animais e das plantas, que a volante estava cada vez mais próxima, no horizonte os olhos já vislumbravam o verde das camisas suadas dos macacos — como eram chamados os soldados da volante, em busca dos cangaceiros, cabras-da-peste. Exemplos da peculiar linguagem, própria do sertanejo, ao qualificar os homens com atributos ou referências aos animais. No conto ímpar seguinte: “Maria Caboré”, Brito descreve toda uma trajetória da personagem título. Ela uma negra, neta de escravas, que desde menina dava duro na lida, e morava na rua, apesar de todos na cidadezinha utilizarem seus préstimos. Trazia na memória a África contada pela avó, e essas histórias permeavam seus sonhos: “Maria andava por todas as ruas e casas. Tomava banho no rio, nuinha. Tinha coxas grossas, a carne macia, as locas do corpo sempre quentes. Era preta. Despertava muito desejo e quando passava com o rosto longe, pensando, os homens esquentavam o sangue. Se passavam perto dela, beliscavam-lhes as pernas. Se ela subia num pé de cajarana pra chupar fruta, eles subiam atrás e ficavam a persegui-la de galho em galho, até conseguirem segurá-la e amassar os seus peitos. Maria não queria daquele jeito. Sonhava com rostos negros, vindos de longe”. (BRITO, 1996, p. 116). E a passagem, deveras longa, é fundamental para observar como o autor ‘pinta’ seu personagem com cores negras da pele e vermelho de desejo. Misto de mulher-animal-fêmea, deixando por onde passa o odor do cio, transformando cada homem que, de galho em galho, a referência é explícita, persegue sua presa. Mas ela foge desse tipo de posses... desde o homem branco e rico que lhe oferece jóias, aos dois filhos de seu Antonio Meneses que a tentaram ‘derrubar’. Maria não desejava aqueles homens, e sim os das histórias de sua avó: o Príncipe Odilon e Rei-de-Congo vindos da África. E neste esperar, o esquecimento de si mesma, misturando-se com os bêbados e mendigos da cidade, largando os trabalhos, aluando para a vida. Até que um dia a peste chegou por aquelas bandas, anunciada pelos ratos mortos nas ruas e dentro das casas. Maria, a única não contaminada, peregrinava pela cidade deserta, continuando sua labuta, agora maior, de lavar e passar as roupas dos pestilentos. Até que um dia a febre a pegou: “Maria Caboré tem febre e se contorce. Os bubões dilaceram-lhe a carne. O suor banha-lhe o corpo. Os olhos se fecham e vêem as estepes africanas. Príncipe Odilon e Rei-de-Congo estão sentados em seus tronos e têm, aos pés, leões mortos pelos guerreiros que foram à caça. Uma velha canta um hino de morte” (BRITO, 1996, p. 123). no delírio, as imagens febris dos causos da avó misturadas ao misticismo da negra, da peste que a fizera abandonar a cidade, dos desejos, todos permeados pelas presenças opostas dos ratos bexiguentos, causadores da morte, e dos leões mortos, representando a força destruidora do homem em acabar com aquele que simboliza a nobreza das selvas. Selvas que recebem a presença de Maria, nesta passagem encantada, realizando na sua morte a vida plena. Ela, coroada rainha, agora assume o papel para o qual foi destinada: cortejada pelos súditos a quem tanto imaginou, na terra quente e ancestral. Eis uma das facetas do autor, ampliando o leque para as raízes históricas e culturais do universo literário.

Por fim, ilustrando o percurso pelos contos do cearense, abarcando a questão tematizada, entre outras pertinentes, é destacado o “Lobisomem”, conto que fecha o livro. Tal texto é por demais exemplar, desde o citado título à maneira peculiar do autor construílo. A história retoma a temática trabalhada em outros artistas, porém diferenciada e singular, por exemplo, o famoso folheto de cordel heroico, na classificação de Ariano Suassuna, “Luta de um homem com um lobisomem”, criado pelo poeta Abraão Batista: “O lobisomem é uma face / que se desconhece no homem / são frutos da maldade / que os povos todos consomem / cada homem tem em si / de homem e de lobisomem” (BATISTA, 1976, p. 107). Mais uma vez são os animais os primeiros a perceberem e passarem para o leitor o que estão presenciando ou sentindo. No caso particular, a metamorfose de um ser que não é nem homem nem bicho, mas ambos! Os cães assombrados uivam, a coruja rasgou sete vezes a noite em fogo, as vacas silenciaram seus chocalhos, o vento se empesta do suor dos cavalos. Enfim, o narrador-personagem se apresenta: “O meu corpo pálido, mais transparente sob a lua, em breve não se conterá. Os sinais, que fazem a alquimia dessa noite, tecerão um zodíaco de casas marcadas em cujas portas me precipitarei” (BRITO, 1996, p. 129). Na sua fala a agonia que vive enquanto é besta-fera e se comporta como tal, classicamente rolando três vezes da direita para a esquerda nas urinas dos cavalos, como Licaon, o primeiro ancestral a oferecer carne humana a um Deus, sendo castigado eternamente. Daí a sina: se o animal dorme, o humano vela, ou o contrário, em sonhos eles se encontram. Ele, que um dia fora perseguido por cães e homens enfurecidos, em busca daquele que seduzira uma adolescente; que, transformando-se como um lobo, sentia as compridas orelhas, os pelos grossos, as unhas afiadas, as presas pontudas, sabedor que “o homem briga com o lobo e que uma vez um é vencedor e noutra, derrotado” (BRITO, 1996, p. 130). Ele o sétimo, filho do próprio irmão ao prevaricar com a mãe; o que espera um Salvador na noite a retirá-lo dessa agonia em vida. Será chegado o dia? A lua está cheia, conforme se aconselha. A cidade sonha. O gado dorme, os cães, porém, estão a espreita de algo. Será essa a noite da emboscada que tanto procurou, anos a anos? O gosto de suspenso mistério fica no ar, e a mão magistral de Brito faz de seu conto final um novo começo para o leitor: recomeçar a leitura, infinitamente.

Como visto, as narrativas de Ronaldo Correia de Brito são exemplares do labor artístico de um contista que, bebendo na fonte do mundo rico que o sertão oferta, permeado de temas como: família, fé, crendice, morte, amor, sexo, retirantes, cangaços, interior e capital, recria, via vivência, imaginação, memória e pesquisa, toda uma paisagem em que os animais são personalíssimas presenças nos causos. Desde uma sutil, que só vai se anunciar fundamental no final da história, a serem elementos marcantes em cada linha das narrativas. Nos homens e mulheres as ações e pensamentos enquanto reflexos dos comportamentos instintivos em alusão aos animais dentro de cada ser, daí o Bestiário nas narrativas. Em suas belas palavras, A invenção do sertão: “O sertão habita em nós, mesmo quando já não o habitamos. O sertão é como Deus definido por Hermes de Trimegisto, uma circunferência cujo centro está em todas as partes e a periferia em nenhuma. O sertão é essência, o miolo, o cerne. É marca de ferro que nos queima e não se desfaz. O sertão é o silêncio das pedras, as ausências. O sertão não existe, é pura invenção dos poetas. No sertão, origens e tempos se misturam. O aboio, que chama para o curral o gado de semente indiana, lembra o canto de um muezim muçulmano. O sertanejo habita uma casa de arquitetura portuguesa. Come o pão em que o trigo foi substituído pelo milho de lavra indígena. Acende um cigarro de fumo da terra, e põe na cabeça um chapéu de palha com traçado africano. Dentro de casa, a esposa vê televisão, e o filho pequeno brinca num videogame. E o homem nem imagina que nele deságuam civilizações e saberes” (CONTINENTE MULTICULTURAL, 2006, p. 84-85). Na prosa, Brito, percorrendo os caminhos trilhados pela literatura, descobre novas maneiras de contar e encantar o leitor ávido pelo cheiro da terra seca, e do sol a lhe queimar a pele, enriquecendo a frutífera árvore literária nordestina.


REFERÊNCIAS

BATES, H. E. The Modern Short Story. In: FERREIRA, Aurélio B. de H; RÓNAI, Paulo. Mar de Histórias: antologia do conto mundial I: das origens ao fim da idade média. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
BATISTA, Abraão. Literatura de cordel, antologia vol 2, São Paulo: Global Editora e Distribuidora Ltda, 1976.
BRITO, Ronaldo Correia de. As noites e os dias. Recife: Bagaço, 1996. CONTINENTE MULTICULTURAL. Ano V, nº 54, junho, Recife: CEPE, 2005.
CONTINENTE MULTICULTURAL. Ano VI, nº 68, agosto, Recife: CEPE, 2006.
LIMA, Neilton Limeira F. de. Galos e galinhas: Diálogos, Descobertas e Possibilidades. In: SCIENTIA UNA n. 14, Olinda, 2014.
MOTA, Mauro. Antologia em verso e prosa. (Org.). Prof. Ivan Cavalcanti Proença, Rio de Janeiro: J. Olympio; Recife: Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco, 1982.
NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino: a poesia armorial de Ariano Suassuna. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1999.
SUPLEMENTO CULTURAL, ano XV outubro, Recife: CEPE, 2000.




*Neilton Limeira Florentino de Lima é poeta, escritor, Mestre em Teoria da Literatura (UFPE), Professor de Língua Portuguesa e Literaturas (Focca), Professor e Orientador na UNISÃOMIGUEL (Letras)


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2 comentários

  1. Deve ser interessante os escritos de Ronaldo Correia de Brito. Falando de nosso sertão, a citando seus elementos regionais.
    Vou ler mais textos.

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